Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
434/04.1TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GRAÇA SANTOS SILVA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CRÉDITO BANCÁRIO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DEVER DE INFORMAR
PEDIDO
Data do Acordão: 03/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 9º A 11º DO DL 446/85 DE 25/10, E AOS ARTIGOS 239º, 236º 227º E 334ºDO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: 1. O contrato de seguro de crédito à habitação é, por regra, um contrato de adesão, integrado por cláusulas contratuais gerais, sujeitas do regime do DL 446/85 de 25/10;
2. Consideram-se excluídas as cláusulas contratuais gerais contidas no contrato de seguro, limitativas dos direitos do segurado, quando incumprido o dever de informação emergente, quer do regime do contrato de seguro, quer do regime do DL 446/85 de 25/10,
3. Em consequência da exclusão, o sentido da declaração negocial correspondente é o que lhe daria um declaratário normal colocado no lugar do tomador do seguro e de acordo com os ditames da boa fé.
4. Ainda que o pedido esteja deficientemente formulado, ele pode e deve ser interpretado em correspondência com o efeito jurídico pretendido, revelado pela causa de pedir invocada
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que compõem a segunda secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra:
I- Relatório:
A…. intentou contra B…. Companhia de Seguros Vida, S.A, a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, pedindo a condenação da ré a reconhecer que está afectada de invalidez total e permanente para todo o trabalho, em consequência de doença, e a condenação da ré a liquidar-lhe a importância igual ao capital em risco para o seguro principal, cujo montante informará nos autos, actualizando-se tal importância à data em que for proferida a sentença, sendo o montante do crédito hipotecário em 27 de Fevereiro de 2004, de € 60.129,13 euros.
Fundamentou tais pedidos em que a si e a seu marido foi imposto pelo Banco C…um seguro de vida crédito à habitação, titulado pelas apólices nº 09/98/96; 09/64465; 09/64446 e 09/96915, cujas condições gerais receberam mais tarde pelo correio, sendo que, aquando da contratação assinaram os papéis que o Banco lhes apresentou e nem sabiam qual era a seguradora que o Banco lhes referiu. Tais seguros visavam garantir o pagamento do crédito à habitação, cujo valor da prestação mensal é de € 585,13, caso ocorresse algum risco que impedisse a sua capacidade de ganho ou a do seu marido;
Em Abril de 2003, já depois da celebração do contrato de seguro, a autora veio a sofrer de carcinoma mamário, com extracção parcial do peito direito, pelo que ficou totalmente incapacitada para o exercício da profissão de ama que, até então exercia, ou para qualquer outra actividade, tendo-lhe sido atribuída uma IPP de 80%, desde Abril de 2003. Participada a situação à R., esta declinou a sua responsabilidade, por entender que a autora não sofre de invalidez total e permanente, tal como definida nas condições que lhe foram enviadas, sendo que este conceito não foi previamente negociado com a autora, nem pelo Banco, nem pela seguradora e do qual nenhuma destas entidades deu prévio conhecimento à autora, tendo-lhe sido imposta a celebração deste seguro.
A Ré apresentou a sua contestação, na qual impugnou o desconhecimento invocado pela A. quanto à seguradora com a qual viria a contratar o seguro dos autos, bem como que a IPP de 80% que foi lhe atribuída em resultado da doença seja susceptível, só por si, de integrar o conceito de invalidez total e permanente, tal como o mesmo vem definido no parágrafo 3.3. do artigo III da cobertura complementar de invalidez total e permanente por doença ou acidente das condições gerais da apólice, sendo que a autora não ficou portadora de incapacidade funcional absoluta para todo e qualquer tipo de trabalho, como é exigido por aquelas condições gerais, das quais lhe foi dado conhecimento, sem que tenha tido a iniciativa de resolver o contrato. Concluiu pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
A autora replicou, reiterando os fundamentos de facto expostos na petição inicial e concluindo pela procedência da acção.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, que absolveu a R. dos pedidos contra si deduzidos.
Não conformada com a decisão a A. recorreu, aduzindo as seguintes conclusões de recurso:
a) A inclusão num contrato de seguro associado ao crédito à habitação de cláusula que estipula invalidez total ou permanente para o desempenho de qualquer profissão, remunerada ou não, viola o princípio da boa – fé e da confiança;
b) Tal cláusula configura abuso de direito, por contrariar o fim social e económico subjacente ao contrato celebrado
c) O conceito de invalidez total e permanente para todo o trabalho equivale, na prática, e do ponto de vista material a uma situação vegetativa próxima da morte, desprovido de qualquer utilidade social e económica,
d) Provando-se que a A. está impossibilitada de exercer, definitivamente, a profissão que exercia à data do contrato de seguro e com base na qual o mesmo foi celebrado, deve considerar-se afectada de invalidez coberta pelo contrato de seguros celebrado
e) Ao não accionar a garantia, tendo cobrado o prémio em função daquela concreta profissão, a seguradora age em abuso de direito
f) Ao contrato de seguro é aplicável o regime das clausulas contratuais gerais,
g) provando-se o incumprimento pela seguradora do dever de informação de determinada clausula, impõe-se a exclusão da mesma;
h) ) Essa exclusão decorre da lei, não se tornando necessário que seja pedida pela parte
i) A douta sentença interpretou e aplicou, incorrectamente, os artigos 271, 280, 334 do C. C.; 664, 660, 659/2 do CPC e o art° 8 do Regime das Clausulas Contratuais Gerais.
Contra alegou a Ré pugnando pela manutenção da sentença, com “conclusões” tão extensas como o próprio teor da contra alegação, pelo que se não considera as mesmas como efectivas conclusões ( artº 690º do CPC).
Colhidos os vistos cumpre decidir:
II- Questões a decidir:
Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs e 684, nº 3, e 690, nº 1, do CPC, na versão anterior ao D.L. nº 303/07 de 24/8), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – fine - do artº 660º nº2 do CPC).
O tribunal deve resolver todas que as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (a não ser aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras), todavia, mas, como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” (referido naquele normativo) não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vide, por todos, Acs. do STJ, de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
Compulsadas as conclusões da motivação do presente recurso, e as contra-alegações, verifica-se que as questões que importa apreciar são:
A) Aferir se ao contrato de seguro é aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais, de forma a que o incumprimento do dever de comunicação possa levar à exclusão, e se a exclusão é matéria de conhecimento oficioso ou carece de ser alegada pelas partes;
B) Aferir se há violação do princípio da boa fé e confiança, e abuso de direito, na cláusula do seguro, associado ao crédito à habitação, que estipula o pagamento do capital seguro apenas em situações de invalidez total ou permanente para o desempenho de qualquer profissão.
III- Factos Provados:
A sentença recorrida considerou provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. A autora A…. e a ré B…. – Companhia de Seguros Vida, S.A. celebraram, em 23 de Novembro de 1999, 22 de Março de 2000, e 8 de Março de 2001, contratos de seguro em que a primeira figurava como tomadora e pessoa segura e a segunda como seguradora, denominados «seguro de vida grupo crédito à habitação», um com o capital seguro de esc. 3.300.000$00 e outros com o capital seguro de esc. 5.000.000$00, titulados pelas apólices 09/64465; 09/96915; 09/98196 e 09/64446, referentes a empréstimos de dinheiro concedidos à autora para aquisição de habitação e realização de obras (alínea A) da matéria assente e documentos de fls. 12 a 18 e 32 a 48);
2. Tal seguro de vida garantia o pagamento do capital referido se a autora falecesse por acidente, por acidente de circulação, ou ficasse em estado de invalidez total e permanente para todo o trabalho, durante o período de vigência do contrato (alínea A) da matéria assente e documentos de fls. 12 a 18 e 32 a 48);
3. De harmonia com as condições especiais do contrato de seguro de vida referido (cláusula terceira, ponto 3 sob a epígrafe «definições» e o título «seguro complementar de invalidez total e permanente para todo o trabalho») «para efeitos deste seguro complementar considera-se uma pessoa em estado de invalidez total e permanente para todo o trabalho quando, em consequência de doença ou acidente, se encontre totalmente incapaz de exercer qualquer relação laboral ou actividade profissional remunerada ou não, e não haja possibilidade, de acordo com os conhecimentos actuais de medicina, de esperar uma melhoria do estado de saúde, pela continuação do tratamento médico aplicável» (alínea A) da matéria assente e documentos de fls. 12 a 18 e 32 a 48);
4. A autora efectuou o pagamento dos prémios referentes a tais acordos mencionados em A) (alínea B) da matéria assente);
5. A ré enviou à autora a declaração mencionada em B) (alínea D) da matéria assente);
6. À autora foi diagnosticado um carcinoma da mama, com ablação parcial do seio direito (alínea E) da matéria assente);
7. Em 21 de Julho de 2003, o Ministério da Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, no âmbito de Junta Médica, atribuiu à autora uma incapacidade permanente global, de 80%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades prevista no D.L. 341/93 de 30.09, a ser revista em Abril de 2013 (alínea C) da matéria assente e documento de fls. 8);
8. A partir de 23 de Outubro de 2003, a autora passou a receber do Centro Nacional de Pensões, uma pensão por invalidez de 238,43 euros mensais (alínea F) da matéria assente e documento de fls. 9);
9. Em virtude da doença de que padece a autora ficou totalmente incapacitada para exercer a sua actividade profissional de ama (resposta ao nº 7 da base instrutória);
10. O estado de saúde da autora é estacionário, não susceptível de grandes melhorias (resposta ao nº 8 da base instrutória);
11. A autora não exerce, actualmente, qualquer actividade profissional (resposta ao nº 9 da base instrutória);
12. O Banco Santander emitiu o extracto combinado referente à conta 11.0343.0020003461, titulada por C…. (alínea G) da matéria assente);
13. A autora e seu marido aceitaram, como condição para a obtenção de crédito para habitação, do Banco Santander, a celebração dos acordos mencionados em A) (resposta ao nº 1 da base instrutória);
14. Que assinaram, aquando da contratação do crédito, os papéis que o Banco lhes apresentou (resposta ao nº 2 da base instrutória);
15. Posteriormente, pelos Correios, foi-lhes enviada cópia das condições gerais das apólices mencionadas em A) (resposta ao nº 4 da base instrutória).
IV- Fundamentos.
A) Aferir se ao contrato de seguro é aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais, de forma a que o incumprimento do dever de comunicação possa levar à exclusão, e se a exclusão matéria de conhecimento oficioso ou carece de ser alegada pelas partes
Considerando a ordem lógica de apreciação dos vícios que a recorrente aponta à sentença recorrida para obter a sua revogação, a primeira questão que se coloca é a de saber se a cláusula contratual se há de manter, como pressuposto da consideração da validade do acordado, ou não. Só no caso de se manter é que tem cabimento discutir a questão do alegado abuso de direito.
A recorrente pugna, tal como a sentença recorrida, pela aplicabilidade ao contrato dos autos do regime do diploma relativo às cláusulas contratuais gerais ( DL nº 446/85 de 25/10, com as alterações introduzidas pelos DL nº 220/95 de 31/8, 249/99 de 7/7 e 323/2001 de 17/12), Entende que aos contratos de seguro, em geral, é aplicável tal regime jurídico.
A recorrida pugna pelo contrário, com os seguintes fundamentos:
- a recorrente não alegou, nem provou, nos momentos próprios os factos que permitam concluir que o contrato em causa reveste essa natureza;
- a questão agora suscitada é nova, não é de conhecimento oficioso, e como tal não é sujeita a apreciação nesta sede.
Comecemos pela natureza do contrato de seguro. Eis algumas das definições que encontramos na doutrina:
- “é o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto” (José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra, 1999, p. 94, que entende que esta é a definição que simultaneamente abrange toda a realidade do fenómeno social e económico que lhe subjaz, indica os intervenientes e as suas obrigações principais, e identifica o motivo determinante da sua conclusão);
- “é o contrato em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização do risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos, ou tratando-se de evento relativo à vida humana, entregar um capital ou renda, ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de prestação a realizar em data determinada” – Moitinho de Almeida, em “O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado”, Lisboa, 1971, pág, 23 ( definição com elementos da teoria dualista, que distingue os seguros de danos dos das pessoas);
- “é a operação pela qual uma das partes ( o segurado) obtém, mediante certa remuneração ( prémio) paga à outra parte (segurador), a promessa de uma indemnização para si ou para terceiro, no caso de se realizar um risco”- Marcello Caetano, em Boletim de Seguros, Lisboa, nº 2, pág. 130.
Tem por características: bilateralidade, o carácter oneroso e aleatório, ser acto de mera administração, consensual, formal, ser de execução continuada (característica não uniformemente aceite, porque há quem considere, como Fernando Simões, em “Algumas Reflexões sobre a natureza jurídica do Contrato de Seguro”, em Boletim Informativo da Secção Portuguesa da Associação Internacional do Direito dos Seguros, Lisboa, 1988, nº 5, pág 4, que a prestação da seguradora se dá pelo pagamento da indemnização ou capital e não pela obrigação de suportar o risco, e nesta medida será um contrato de execução instantânea) , típico, de boa fé, e ser contrato de adesão. Veja-se a propósito José Vasques, ob. cit. págs. 103 e ss, Moitinho de Almeida, ob. cit., pág. 30 e 31, Luís da Cunha Gonçalves em “Comentário ao Código Comercial Português”, II, 1916, pág. 500, etc.
É um negócio jurídico formal (corpo do artº 426º do CCom), entendendo-se que a forma é requisito ad substantiam, reduzindo-se a escrito na apólice ( documento que titula o contrato e de onde constam as respectivas condições gerais ( e especiais e/ou particulares, estas últimas se as houver), e valendo como tal a minuta ou proposta, (devidamente preenchida pelo proponente, e não recusada pela seguradora), conforme resulta do teor do Assento de 22/1/1929, em D.G., II Série, de 5/2/1929, Acs. da Relação de Évora de 5.5.88, CJ, Tomo III, p. 279, Ac. da Relação de Lisboa de 23.11.89, BMJ nº 391, p. 680 e do STJ de 17.7.80, BMJ nº 299, p. 171 e Guerra da Mota, O contrato de Seguro Terrestre, Vol. I, p. 431.
Tem por elemento peculiar, e básico, a actuação da boa fé, não só no sentido de que “quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares, como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé”- artº 227º nº 1 do CC, mas no de fazer sentir que a equidade e o equilíbrio contratual dependem da absoluta lealdade do segurado nas declarações que presta, para avaliação do risco, uma vez que normalmente a seguradora tem que confiar cegamente na veracidade dessas declarações, sem poder verificá-las quando da subscrição do negócio jurídico. Esta exigência de boa fé manifesta-se igualmente na protecção dos interesses dos segurados, que, ao contratar pelo sistema de adesão, têm que confiar que as cláusulas inegociáveis que lhes são impostas contém efectiva tutela dos seus interesses.
“O contrato de seguro é também um negócio jurídico, em regra, celebrado pela simples adesão do segurado a um conjunto de cláusulas gerais, comuns a uma multiplicidade de contratos e contidas em apólices, através do qual a seguradora se vincula a ressarcir os prejuízos decorrentes da produção de um risco, mediante o pagamento de determinada quantia monetária” (cfr., Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, p. 13 e ss.).
Diz José Vasques, ob. cit. pág. 107, a propósito da característica de ser contrato de adesão, que “uma característica central do contrato de seguro é ele ser considerado um contrato de adesão: porque uma das partes se limita a aderir aos termos que lhe são propostos, não ajustando as partes todos os pontos do contrato; esta característica é discutida pelos Autores e, no mínimo, não se verifica nos seguros de grandes riscos ( que não é o caso dos autos).
Os contratos de adesão são aqueles cujas cláusulas contratuais gerais foram elaboradas sem prévia negociação individual, e que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a subscrever ou aceitar. A importância deste tipo de contratos e o reconhecimento de que da padronização negocial, embora favorecendo o dinamismo económico, podem resultar restrições, despesas ou encargos irrazoáveis para o contraente mais fraco e menos prevenido, levou o legislador, na esteira de precedentes estrangeiros, e das recomendações do Conselho da Europa e das Directivas Comunitárias, a adoptar um regime específico relativamente às cláusulas contratuais gerais – o DL 446/85”.
A questão dos contratos de adesão desde há longo tempo vem sendo discutida na doutrina portuguesa, com alguns assomos na jurisprudência (Ac. do STJ de 30/11/78 em BMJ 281-328; e Ac RL de 11/5/82 em CJ, ano VII, III, pág.90), sem diploma regulamentador, não obstante o disposto nos então artºs 81º a), e) e j) e 110º da C.R.P., ( dedicados à consagração dos direitos dos consumidores, com base nos princípios emergentes da boa fé e dos bons costumes, e ainda – menos frequentemente - da impressão do destinatário). Em 1985 foi publicado o DL 446/85 de 25/10, consagrador do regime das cláusulas contratuais gerais.
Não obstante critérios já aventados sobre a distinção das duas figuras ( vide Garcia Amigo em “Revista de Derecho Privado” XLIX, pág. 718 e ss, e Motta Pinto, em “Revista de Direito e Economia e de Estudos Sociais”, ano XX, nººs 2-3-4-,124 e 125) que a encontram na circunstância de que nos contratos de adesão, “os aderentes singulares limitam-se a prestar o assentimento à disciplina negocial, antecipada e inflexivelmente formulada, sem a sua intervenção, pela lei ou outro contraente (enquanto que) a rigidez das condições gerais dos contratos, predispostos privadamente, não chega ao extremo de impedir que os particulares, ao celebrarem com base (em cláusulas contratuais gerais) possam afastá-las mediante a estipulação de condições especiais que sobre as mesmas prevaleçam” (Almeida Costa em “Direito das Obrigações” pág 205 da 3ª edição) o certo é que sob a designação de condições gerais dos contratos ou de contratos de adesão, o fenómeno em análise é o mesmo, que se consubstancia no facto de um dos contraentes predispor, no todo ou em parte, as cláusulas da sua contratação futura, impondo-as unilateralmente, e frequentes vezes de modo irrevogável.
Temos então que o diploma em análise, que já foi objecto de alterações, emergentes dos DL 220/95 de 31/8, 249/99 de 7/7 e 332/01 de 17/12, se aplica às cláusulas contratuais gerais contidas ou não em contratos de adesão, assumindo particular relevância no que toca aos contratos de seguro, conforme preâmbulo da Directiva 93/13/CEE do Conselho de 5 de Abril de 1993, relativas às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores.
Hoje, o DL. nº 446/85 de 25 de Outubro, atravessa, longitudinalmente, todo o ordenamento jurídico português e é aplicável a todo o tipo de negócios em cujos contratos, singulares ou elaborados em forma de minuta, se incluam cláusulas contratuais gerais.
Busquemos então a este regime, especialmente aplicável, as normas adequadas à solução do caso dos autos.
Antes porém, impõe-se a introdução do elementos histórico, precioso para o processo de interpretação e integração das normas em análise.
Foram ( e são) quatro os princípios fundamentais contratuais: a liberdade contratual (vertida no artºs 405º do CC., mas com manifestações notáveis nos artºs 219º, 217º 236º a 239º e 12º do mesmo diploma), o consensualíssimo ( emergente do artº 209º do CC, e entendido no duplo sentido de que não se pode impor nem impedir a contratação), a boa fé ( em qualquer das fases da formação, integração ou interpretação e execução – artºs 227º nº 1, 239º, 762º do CC), e a força vinculativa (manifestado no regime do artº 406º do CC).
Por força das transformações na vida económica mundial, operadas a partir da Revolução Industrial, os operadores económicos viram-se na obrigação de desenvolver mecanismos de adaptação da realidade contratual “gré a gré” às necessidades e fisionomia da respectiva actividade, onde relevaram as necessidades de racionalização, planeamento, celeridade e eficácia.
O primeiro sector onde se operaram estandartizações de monta, para corresponder às necessidades supra mencionadas, foi, sem dúvida o das relações laborais ou internas, através dos “regolamenti de fabbrica”, “règlements d`atelier”, ou “arbeistsordnungen”.
O segundo sector a ser atingido foi o das relações das empresas com o mercado, em que se tornou inviável a contratação precedente de negociação pessoal e diversa com cada um dos clientes do mesmo tipo de produtos comercializado. Havia, e há, cada vez mais, que construir meios de negociação centralizados na actividade da empresa, limitativos dos riscos assumidos, com capacidade de contenção da litiogisidade e custos inerentes, que sirvam as necessidades de racionalização, planeamento e redução de custos.
É nesta mudança económica que surgem, inevitavelmente, os contratos de adesão/ cláusulas contratuais gerais, que dispensam o processo individual de negociação, mas sobretudo têm a virtude de fazer do agente económico o elo mais forte do contrato, pelo sucessivo aumento de capacidade de imposição de contratos irrenegociáveis, muitas vezes resultantes de situações de monopólios relativos a bens essenciais: transportes, água, electricidade, etc.
À crescente complexidade da actividade económica correspondeu a crescente utilização deste tipo de contratos, e abuso da posição de monopólio ou de superioridade contratual por parte dos agentes de mercado, sobretudo manifestada face ao consumidor individual.
Hoje, a negociação por adesão é uma característica dominante do comércio jurídico, sobretudo na vertente do consumidor final, dotada de grande peso negocial, que se impõe definitivamente ao elo mais fraco, e que, ao longo das últimas décadas determinou a assumpção, por diversíssimos ordenamentos jurídicos ( antes de nós, França, Itália, Alemanha, Japão, Suiça, sistemas integrados na “common law”, etc) de regras tendentes à manutenção de um certo nível de equilíbrio contratual, pelo controlo que fazem das cláusulas gerais. António Pinto Monteiro em “Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil”, 1985, pág 348 agrupa o mencionado controlo em três tipos diferentes: controlo para imposição de certos requisitos formais, controlo em ordem a garantir o consumidor particular contra o risco de desconhecimento das condições gerais que o agente económico predisponente deseja integrar no contrato, e condições de controlo directo do conteúdo do contrato, com a proibição de certas cláusulas que a experiência demonstrou serem fonte de injustiças e abusos particularmente graves.
Citando o supra mencionado autor “as medidas a tomar ao nível da tutela da formação da vontade do aderente devem assentar no pressuposto de que este conclui o contrato desconhecendo, todavia, frequentemente, aspectos significativos do seu conteúdo, porque << as condições negociais gerais >> não lhe foram apresentadas, não teve tempo de as ler, ou possibilidade de as compreender (…), ou porque não quis dar a impressão de desconfiar da honestidade do seu <<partenair>> ( até porque pouco ou nada lhe adiantaria). Assim, devem prescrever-se certas formalidades - assistindo-se, deste modo, a um certo renascimento do formalismo - a observar pelo predisponente, para que as suas condições gerais possam considerar-se parte integrante do contrato”. E exemplifica com normas de determinados regimes jurídicos que à data já tinham regulamentação expressa, dizendo que na lei alemã não se consideram parte integrante do contrato as cláusulas gerais para as quais o predisponente, no momento da contratação, não chame expressamente a atenção da contraparte, no momento da conclusão do contrato, facultando-lhe a possibilidade de tomar conhecimento efectivo do seu conteúdo; no Códice italiano a eficácia das condições gerais é condicionada ao facto de o aderente as ter conhecido no momento da conclusão do contrato, ou as devesse conhecer, na família de common law exige-se que o predisponente ofereça ao particular razoável notícia das condições gerais, com especial relevo para a exoneratórias, devendo elas constar de documento a que razoavelmente se possa atribuir valor e eficácia contratual; e no sistema suíço não são admitidas as cláusulas relativamente às quais o comerciante poderia pressupor que o cliente não contrataria, nem contava com elas por não lhe serem queridas.
Também em sede interpretativa há que dar protecção ao aderente. Daqui a necessidade da definição de regras sobre a integração das condições gerais do predisponente no contrato, bem como de regras de natureza interpretativa, que, colocando-se numa fase anterior ao exercício de controlo sobre o conteúdo das cláusula integradas no contrato, afasta à partida cláusulas de natureza inequitativa, que urge compatibilizar, numa fase seguinte, com indeclináveis exigências de justiça comutativa. Há que definir, em primeiro passo, quais as cláusulas proibidas ou ineficazes, porque se destinaram apenas a excluir ou limitar a responsabilidade do predisponente, de forma tal que perturbam o equilíbrio das prestações, que é o objecto de tutela da legislação em causa.
A fonte do nosso DL 446/85 é a Directiva 93/13/CEE do Conselho de 5 de Abril de 1993, relativas às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores. No preâmbulo da mesma, entre o mais, dispõe-se que ela representa uma tutela mínima, a ser adequada em cada estado-membro ao mais elevado nível da protecção do consumidor; que “a apreciação, segundo critérios gerais estabelecidos do carácter abusivo das cláusulas (….)necessita de ser completada por um instrumento de avaliação global dos diversos interesses implicados; que tal consiste na exigência de boa fé; que na apreciação da boa fé, é necessário dar especial atenção à força das posições de negociação das partes, à questão de saber se o consumidor foi de alguma forma incentivado a manifestar o seu acordo com a cláusula (…), (e) que a exigência de boa fé pode ser satisfeita pelo profissional, tratando de forma leal e equitativa com a outra parte, cujo legítimos interesses deve ter em conta”; que “a natureza dos bens ou serviços deverá influir na apreciação do carácter abusivo das cláusulas contratuais”, que “os contratos devem ser redigidos em termos claros e compreensíveis, que o consumidor deve efectivamente ter a oportunidade de tomar conhecimento de todas as cláusulas e que, em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação mais favorável ao consumidor”, e que “ para efeitos da presente directiva, a apreciação do carácter abusivo ( sublinhado nosso) de uma cláusula não deve incidir sobre cláusulas que descrevam o objecto principal do contrato ou a relação qualidade/preço do fornecimento da prestação, (…) o objecto principal do contrato e a relação qualidade/preço podem, todavia, ser considerados na apreciação do carácter abusivo de outras cláusulas; que desse facto decorre, inter alia, que, no caso de contratos de seguro, as cláusulas que definem ou delimitem claramente o risco segurado e o compromisso do segurador não são objecto de tal apreciação desde que essas limitações sejam tidas em conta no cálculo do prémio a pagar pelo consumidor”.
O DL 446/85, na redacção aplicável aos autos, que contempla todas as supra mencionadas alterações, aplica-se, salvo o disposto no artº 3º:
i – a cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários se limitem a subscrever ou a aceitar;
ii- a cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.
Determina ainda tal DL ( artºs 4º a 6º) que as cláusulas contratuais gerais se incluem em contratos singulares pela aceitação, desde que:
i -tenham sido comunicadas, na íntegra aos aderentes;
ii - a comunicação tenha sido realizada:
1 - de modo adequado ao efectivo entendimento do aderente
2 - com a antecedência necessária para que o aderente, dotado da normal diligência tome efectivo e completo conhecimento do seu conteúdo, tendo em conta a extensão e complexidade das cláusulas e a importância do contrato;
iii - o proponente informe o aderente dos aspectos compreendidos nas ditas cláusulas, cuja aclaração se justifique.
Nos termos do dito diploma:
- o ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes, recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo ( artº 1º nº 3);
- o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.
Quanto às questões do dever de informação e do ónus da prova, e no que ao contrato de seguro concerne, ( tendo sido revogado o DL 102/94 – artº 247º do DL 94-B/98) dispõe o DL 94-B/98 de 17/4 ( complementado pelo DL 176/95 de 26/7, em certas matérias, onde não se inclui o caso em apreço) que a seguradora tem o especial dever de informação antes da celebração do contrato de seguro ( artº 179º) , durante a execução do contrato ( artº 180º) e de prestar informações suplementares necessárias para a efectiva compreensão do contrato ou operação (artº 181º).
O dever de informação, contido no artº 179º, carece de ser fornecido de forma clara e por escrito, devendo a proposta conter uma menção comprovativa de que o tomador tomou conhecimento das informações enumeradas no nº 1 do dispositivo, e abrange, entre o mais, a definição de cada garantia e opção; a indicação dos valores de resgate e de redução e natureza das respectivas garantias; e os prémios relativos a cada garantia, principal ou complementar, sempre que tal informação se revele adequada.
Tudo isto sob a cominação de que se presume, na falta da menção comprovativa, supra mencionada, que o aderente não tomou conhecimento das informações obrigatórias, assistindo-lhe, neste caso, o direito de resolver o contrato de seguro no prazo referido no artigo 182º, e de ser reembolsado da totalidade das importâncias pagas.
No caso em apreço, não tendo sido pedida a resolução do contrato, nem tão pouco o reembolso das importâncias pagas, não pode o Tribunal conhecer da verificação dos pressupostos dessas consequências legais. O direito de resolução é seguramente sujeito ao princípio do dispositivo, e contraria manifestamente o pedido na acção, que pretende o cumprimento pela seguradora daquilo que, na perspectiva da A., é a obrigação contratual que assumiu.
Mas não se pode deixar passar em branco a má fé contratual, que resulta de se ter feito constar da proposta que a A. tinha tido conhecimento perfeito das informações pré-contratuais, previamente ao preenchimento desse boletim, através de espécimen que lhe foi fornecido, quando se prova que apenas recebeu esse espécimen ( entenda-se, brochura com as condições contratuais gerais e especiais ) dias depois da assinatura do contrato. Este comportamento por parte da Ré, em acção própria, suportaria, seguramente, a existência de responsabilidade civil, e uma condenação em conformidade!
Contudo, pedida que foi a condenação da ré a liquidar à A. a importância igual ao capital em risco para o seguro principal - e estando em causa apenas a questão da sanção pela falta de informação (devidamente articulada, tal como a natureza da cláusula em 1, 2, 3, 4, 20, 21, 22 e 23 da p.i.,) e não o carácter abusivo de qualquer cláusula contratual - no âmbito das cláusulas contratuais gerais, matéria de direito, nada obsta a que se conheça deste pedido, na perspectiva do direito aplicável, que não está dependente ao articulado pela parte (artº 664º do CPC).
Não logrou a Ré a prova do cumprimento do dever de informação, que lhe é imposto por lei, relativamente ao conteúdo do clausulado do contrato de seguro imposto à A., como condição da obtenção de crédito, por um banco que seguramente agindo em seu próprio interesse (ao exigir um aumento de garantias de pagamento do crédito concedido, já garantido pela hipoteca), agiu também no interesse da seguradora, quando apresentou uma proposta de contratação do seguro com a mesma. O Banco aqui limitou-se a agir como mediador de seguros, por conta e em benefício da seguradora em causa, com a nuance que a liberdade de contratação da A. foi mera aparência. A A. precisava de dinheiro, e a condição da sua obtenção na banca passa, como é de conhecimento notório, pela celebração de contratos de seguro desta natureza, e ou o aceitava, e obtinha o crédito de que necessitava para conseguir uma habitação, aceitando o contrato de seguro acoplado, ou não o aceitando, não obtinha crédito. Esta é, sem margem de dúvida, a realidade do dia a dia, a que a situação sub judicie não fugiu.
A A. assinou uns papéis, que o Banco lhe apresentou, e dias depois, recebeu as condições contratuais do contrato que tinha sido celebrado, sem que as mesmas lhe tenham sido apresentadas na altura, lidas, explicadas, e entregues em tempo útil para a formação da decisão de contratar ( artº 342º do CC e 516º do CPC) . E como o condicionalismo da obtenção de crédito e casa, com aceitação de seguro, ou da recusa de seguro e consequente ausência de casa por falta de crédito, se mantinha, não as leu quando as recebeu. Não valia a pena, e dentro da boa fé negocial que pressupunha ter coberto a contratação, confiou naquilo que tinha entendido ( se explicação alguma houve) ou no que pressupunha (num entendimento de normal destinatário, sem especiais conhecimentos de direito) ser a garantia que o seguro lhe oferecia.
Acontece que nos termos do artº 8º do DL 446/85 se consideram (mais do que nulas) excluídas dos contratos singulares, entre outras, as cláusulas contratuais gerais que:
- não tenham sido comunicadas na íntegra aos aderentes (que se limitam a subscrevê-las ou a aceitá-las), de modo adequado ao efectivo entendimento do aderente e com a antecedência necessária para que aquele aderente, dotado da normal diligência, tome efectivo e completo conhecimento do seu conteúdo, tendo em conta a extensão e complexidade das cláusulas e a importância do contrato;
- as cláusulas, comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo;
- as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contraentes.
As cláusulas em causa ( por força das quais o seguro de vida garantia o pagamento do capital se a autora falecesse por acidente, por acidente de circulação, ou ficasse em estado de invalidez total e permanente para todo o trabalho, durante o período de vigência do contrato, definindo que se considera uma pessoa em estado de invalidez total e permanente para todo o trabalho quando, em consequência de doença ou acidente, se encontre totalmente incapaz de exercer qualquer relação laboral ou actividade profissional remunerada ou não, e não haja possibilidade, de acordo com os conhecimentos actuais de medicina, de esperar uma melhoria do estado de saúde, pela continuação do tratamento médico aplicável - vide matéria de facto) são abrangidas pelos três supra-enunciadas fundamento de exclusão.
Em primeiro lugar não foram comunicadas, tout court. E tanto que não foram que nem a própria seguradora Ré sabe quais elas são. Repare-se que no documento de folhas 7, junto aos autos pela A., e na contestação, a Ré diz (e reporta o que diz à transcrição da cláusula 3.3. do artº 3º das Condições Especiais do Seguros complementar de Invalidez Total e Permanente por Doença ou Acidente) que têm o seguinte conteúdo: “Para efeitos deste seguro complementar a Pessoa Segura será considerada em situação de Invalidez Total e Permanente quando, em consequência de doença ou acidente a coberto das garantias do contrato e no decurso de um período máximo dos trezentos e sessenta dias que se lhe seguirem, cumulativamente: a) Se encontrar total e definitivamente incapaz para o exercício da sua profissão ou qualquer outra actividade lucrativa compatível com os seus conhecimentos e capacidades; b) Seja clínica e objectivamente constatada uma incapacidade funcional permanente de grau igual ou superior a 75%, determinada pela Tabela Nacional de Incapacidades em vigor sem aplicação dos factores correctivos nela estabelecidos para o cálculo das desvalorizações finais em função da possibilidade de reconversão para o posto de trabalho ou profissão". Ora, não é este o conteúdo da cláusula a que se reporta o artº III, parágrafo 3.3 da Cobertura Complementar de Invalidez Total e Permanente por Doença ou Acidente, das condições Gerais da Apólice juntas aos autos, provado nos autos e transcrito em 3) da matéria de facto, e já constante do processo, quando da contestação, por ter sido junto com a p.i.!
Em segundo, porque incluem conceitos jurídicos, cuja integração se revela assaz difícil e é invariavelmente pomo de séria discussão, caso a caso (quer em matéria civil, como em matéria laboral), e que não permitem a um contratante normal colocado na posição de contratante real aperceber-se do seu verdadeiro conteúdo, porque isso pressupõe a capacidade de distinguir com precisão matéria jurídica conceptual, não consensual, facilmente confundível com condições com denominações semelhantes mas com conteúdos jurídico -substantivos substancialmente diferentes, absolutamente mais favoráveis aos contratantes aderentes ( incapacidade permanente parcial, incapacidade permanente parcial com incapacidade para o exercício do trabalho habitual, incapacidade total com previsibilidade de reversão com estado clínico, etc).
Em terceiro, as cláusulas foram fornecidas depois de assinado o contrato de seguro em apreço.
Daqui resulta a inevitabilidade de aplicação às ditas cláusulas das consequências legalmente definidas, ou seja a sua exclusão do contrato e substituição, com recurso às regras de integração dos negócios jurídicos, por não haver normas supletivas aplicáveis, nem ser caso de nulidade do contrato, nos termos do nº 2 do artº 9º do DL 446/95.
Repete-se que estamos apenas face a uma causa de exclusão por falta de cumprimento do ónus de informação e não perante qualquer cláusula abusiva, nuclear ou não do contrato celebrado.
Dentro do princípio geral fornecido pelo artº 10º do dito diploma, que acaba por remeter para o regime geral da integração dos negócios (escoradas nos princípios da boa fé e da teoria da impressão do destinatário) com o relevo dado ao contexto das condições do contrato singular em que se incluam, há que integrar as cláusulas excluídas, referidas em 2) e 3).
O entendimento da recorrente baseia-se na consideração de que o conceito de invalidez total e permanente que a seguradora expressa na apólice como condição de pagamento do crédito do banco beneficiário do seguro excede, manifestamente, os limites da boa fé e a finalidade da contratação deste seguro, em que a vontade determinante da sua celebração foi apenas a de salvaguardar a redução infortunística da sua capacidade de ganho, já que o tipo de invalidez em causa equivale à morte.
Em termos de integração negocial regem, no caso, os artsº 11º do DL 446/85 e 239º do CC.. Nestes termos “as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real”, sendo que “na dúvida prevalece o sentido mais favorável ao aderente”, e “na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta”.
Sobre o problema de saber se a integração pode substituir ou alargar o objecto do negócio, a questão não se coloca, pois que essa possibilidade resulta do regime decorrente do artº 9º do DL 446/85.
“Como regra, deve atender-se à vontade presumível dos declarantes. Mas pode acontecer que, por esse meio, se chegue a uma solução contrária aos princípios da boa fé. Neste caso, deve prevalecer a solução que melhor salvaguarda esses princípios. O recurso aos ditames da boa fé reveste, no entanto, especial interesse prático para os casos de não coincidência, entre a vontade presumível, de uma das partes e a vontade presumível da outra. Há assim, certo paralelismo com as soluções do artº 236º, inspirado também nos ditames da boa fé contratual, e especialmente destinado a regular casos em que não há coincidência entre a vontade real do declarante e do declaratário” – C.C. Anotado por Antunes Varela e Pires de Lima, I- Vol. pág. 226 e 227.
O juiz deverá afastar-se da “vontade hipotética ou conjectural das partes, quando a solução, que estas teriam estipulado contrarie os ditames da boa fé; neste caso, deve a declaração ser integrada de acordo com as referidas exigências da boa fé, isto é, de acordo com o que corresponda à justiça contratual (ao que as partes devem querer agora e não propriamente o que deveriam ter querido”- Teoria Geral do Direito Civil, de Mota Pinto, pág 428 da edição de 1976.
“1- A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2- Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”- artº 236º CC.
A aplicação do regime decorrente dos artºs 236º e 239º do C.C., como se sabe, é matéria de direito (Vaz Serra em RLJ, 103º, 213 e 214 , e 107º, pág. 184; BMJ 185º-255, Castanheira Neves em “Questão de Facto - Questão de Direito” pág. 328) e se dúvidas houvesse quanto às cláusulas contratuais gerais, do seu regime se retira que quer a exclusão quer a integração subsequentes o são, sem dúvida. Logo, este Tribunal não está sujeito à sua invocação para a aplicar.
E, no caso dos autos, por razões manifestas não é possível a integração de harmonia com a vontade de ambas as partes, porque desde logo não há ponto omisso, e porque a mesma sempre seria divergente. Resta o apelo à boa fé e à teoria da impressão do destinatário.
Para determinar os limites impostos pela boa fé há que atender particularmente às concepções ético – jurídicas socialmente dominantes. Aqui toma especial relevo a utilidade da contratação, na perspectiva de ambos os contraentes e o equilíbrio contratual ( artºs 227º e 334ºdo CC).
A utilidade da contratação leva-nos de volta ao regime do artº 236º do CC. O equilíbrio contratual define os limites dentro dos quais não há violação do princípio da boa fé.
Comecemos pelo último: a função social da actividade seguradora prende-se com a distribuição equitativa, por uma maioria, dos prejuízos efectivamente sofridos, por uma minoria, “configurando uma forma contratualizada de redistribuição da riqueza” – José Vasques, obra citada, pág 22. Essa redistribuição tem pretensões a ser o resultado “cientifico” da homogeneização dos riscos e da sua especialização técnica “que permite a avaliação e valorização quantitativa desses riscos com vista à fixação de uma adequada retribuição (que recebe o nome de prémio), a suportar por cada um dos segurados.” - mencionado autor, obra e pág.
O seguro em causa é sobretudo a manifestação de uma comodidade do banco mutuário em fazer-se pagar, rapidamente e sem recurso a Tribunal, para fazer valer os seus direitos hipotecários, face à eventual impossibilidade futura de obter o pagamento do montante mutuado ( juros, e o mais que inclui no contrato de mútuo) pelo devedor. Normalmente a hipoteca exigida sobre a habitação, para pagamento de cujo preço foi concedido o mútuo oneroso é mais do que suficiente para o pagamento do capital em dívida. Reflexo desta correspondência, são as prévias avaliações dos prédios em causa, as limitações do capital mutuado a uma determinada percentagem desse valor (a que não será alheia a expectativa daquilo que poderá ser a quantificação da normal degradação da coisa à data do eventual incumprimento).
Por sua vez a actividade seguradora visa o lucro. E é evitar o desiquilibrio das posições contratuais emergentes de contratos de adesão, em que o proponente se revela excessivamente ganancioso, que se visa ao impor o regime jurídico que leva à exclusão, nulidade e anulação de cláusulas e contratos.
A função social do seguro de vida e incapacidade associado ao crédito
à habitação reflecte-se sobremaneira ( se não, exclusivamente) na pessoa do segurado, que coincide, por regra, com o tomador.
Este é que vê neste tipo de seguro a garantia de que, perante um infortúnio da vida, que não lhe permita o pagamento do crédito concedido - que o habilitou à aquisição da habitação (direito constitucionalmente reconhecido, o da habitação condigna) - manter essa mesma habitação, e beneficiar da transmissão do risco que efectuou, que obviamente teve como contrapartida o pagamento efectivo de um prémio ( fraccionado ou não).
Ora, se é certo que o tomador pode ter, e seguramente tem, na maioria das vezes, em vista a protecção dos seus herdeiros, em caso de morte (sobretudo se menores ou sem capacidade de ganho, à data da contratação) também o é que também visa a sua própria protecção, em caso de infortúnio em vida, que lhe retire a capacidade de ganho com a qual contou ao celebrar o contrato de mútuo, e o correspectivo seguro, e conta ao pagar cada um dos prémios que se vão vencendo. E para isso paga um prémio, que, obviamente, reflecte necessariamente não só o risco transferido, mas a margem de lucro que a seguradora pretende obter, e que não negoceia nem lhe dá sequer a conhecer. A matemática a que obedece o cálculo dos prémios, só é uma manifestação de ciência se ao valor do risco assumido se adicionar o montante do lucro pretendido.
Isto leva à conclusão que a integração das cláusulas excluídas de forma a onerar a seguradora não é, por si, atentatória do equilíbrio contratual ditado pela boa fé. Carece apenas de se conformar com o estabelecimento do equilíbrio de interesses face aos potenciais destinatários da regulação proposta ( considerando os interesses típicos subjacente à modalidade negocial em causa, que se apresentam como gerais para o círculo de pessoas que usualmente a eles recorre). Vide neste sentido, que foge ao princípio da avaliação, caso a caso, da forma mais adequada de integração dos negócios jurídicos, por força do tipo de contratos que está em causa, “Cláusulas Contratuais Gerais e Directivas Sobre Cláusulas abusivas” de Almeno de Sá, 2ª edição.
Fica-nos, finalmente, a aplicação dos artsº 11º do DL 446/85 e 236º do CC.
O nº 1 do artº 236º do CC estabelece a regra segundo a qual o sentido decisivo da declaração, a considerar, é aquele que lhe atribuiria um declaratário normal, nas mesmas circunstâncias do declaratário real, face ao comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. O declaratário normal é a pessoa medianamente instruída e diligente, ao nível das condições de instrução e diligência próprias do declaratário real, desde que perceptíveis do declarante. É este o entendimento que subjaz à interpretação da excepção: ela “tem plena aplicação naqueles casos em que o sentido razoavelmente atribuído pelo declaratário a determinados vocábulos da declaração seja completamente ignorado do círculo de pessoas em que vive o declarante, e muito diferente do sentido com que este os empregou”- Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, pág 223 do vol. I.
É o que aconteceu no caso dos autos ( e acontece noutros semelhantes) : ao fazer constar quer da proposta do contrato quer das suas condições gerais e especiais termos jurídicos, que não é de esperar que sejam dominados por um leigo, no caso, uma ama, a declaração em causa vale de acordo com o seu entendimento sobre incapacidades, que não inclui as diferentes modalidade que, juridicamente, possam representar. E o motivo determinante normal da contratação é de que em caso de incapacidade de ganho, lhe valha o seguro. Ou seja, o sentido das cláusulas excluídas, será necessariamente, o seguinte: o de que ao contratar tal tipo de cláusulas, o aderente estava a salvaguardar pelo menos o desaparecimento infortunístico da capacidade de ganho que tinha à data da sua verificação ( ou, inclusivamente, a redução da mesma para valores que não lhe permitiriam continuar a suportar o pagamento das prestações do mútuo), sem que isso implicasse a possibilidade do banco mutuário se valer dos direitos emergentes da hipoteca contratada, e por essa via fazer desaparecer do seu património a habitação adquirida com o montante mutuado.
Assim sendo, a cláusula 2. das Condições Gerais, intitulada “Coberturas complementares”, na parte em que menciona “invalidez total e permanente para todo o trabalho” ( que equivale ao ponto 2 da matéria de facto), será excluída, e integrada com a redacção de “invalidez permanente que determine o desaparecimento infortunístico da totalidade da capacidade de ganho que tinha à data da sua verificação” , e a cláusula terceira, ponto 3, sob a epígrafe «definições» e o título «seguro complementar de invalidez total e permanente para todo o trabalho» será igualmente excluída e, mantendo-se a epígrafe com o nome de <<definições>> será o título substituído por outro, com a denominação de «seguro complementar de invalidez permanente que determine o desaparecimento infortunístico da capacidade de ganho que tinha à data da sua verificação>> com o seguinte conteúdo: «para efeitos deste seguro complementar considera-se uma pessoa em estado de invalidez permanente que determine o desaparecimento infortunístico da capacidade de ganho que tinha à data da sua verificação, quando, em consequência de doença ou acidente, se encontre totalmente incapaz de obter o ganho que vinha obtendo por força de qualquer relação laboral ou actividade profissional remunerada, e não haja possibilidade, de acordo com os conhecimentos actuais de medicina, de esperar uma melhoria do estado de saúde, pela continuação do tratamento médico aplicável».
Encontrada a forma de integração, perante a exclusão das cláusulas acima mencionadas, há que aplicá-lo ao caso dos autos, já que esses pressupostos estão provados em relação ao mesmo. Com a doença e tratamentos subsequentes de que foi vitima a A. encontra-se totalmente incapaz de obter o ganho que vinha obtendo por força de qualquer relação laboral ou actividade profissional remunerada, e não se vislumbram possibilidades, de acordo com os conhecimentos actuais de medicina, de esperar uma melhoria do estado de saúde, pela continuação do tratamento médico aplicável. A A. perdeu a capacidade de ganho com que contou para a celebração dos contratos de mutuo e seguro, e contava quer para o pagamento quer dos prémios do seguro, como para o pagamento das prestações com que ia saldando a dívida assumida perante o banco em consequência do mútuo oneroso celebrado (vide matéria de facto).
Na conformidade, haverá que improceder o primeiro dos pedidos formulados pela A., porque de facto não se provou nos autos que estivesse afectada de invalidez total e permanente para todo o trabalho, em consequência da doença.
Quanto ao segundo pretende a A. que se condene a Ré a liquidar-lhe a importância igual ao capital em risco para o seguro principal, actualizada à data da sentença.
Este pedido está tecnicamente imperfeitamente deduzido. Em primeiro lugar, não referindo a A. na p.i. senão um contrato de seguro, fica a questão sobre o que entende por seguro principal. Em segundo lugar, não sendo a mesma a beneficiária do seguro mas o Banco mutuário, é evidente que o pagamento do valor do capital em risco ( ou em dúvida) será devido ao Banco e não à própria.
Não obstante o uso desta linguagem tecnicamente defeituosa, a A., ao longo da p.i. deu a conhecer ao tribunal, de forma suficiente o que pretendia: era o pagamento, por accionamento do contrato de seguro, do valor do seu débito junto do banco, relativamente ao seguro vida crédito à habitação. E, na esteira do entendimento de Alberto dos Reis, em Comentários ao CPC, 2º-371, conhecendo-se perfeitamente a causa de pedir, e não sendo caso de ineptidão da p.i. face ao pedido, há que interpretá-lo de acordo com aquilo que se percebe que é o efeito jurídico pretendido.
Ou seja, no caso dos autos, o 2º pedido tem que ser reportado ao valor dos seguros vida crédito à habitação, titulados pelas apólices referidas no artº 1º da p.i. , e ao pagamento ao beneficiário do seguro, que não é a A. mas o banco mutuário do valor do crédito hipotecário em dívida no momento da sentença ( momento seguramente mais favorável do que o da verificação das condições de accionamento do seguro).
A solução encontrada é prejudicial da questão enunciada em B) do ponto II do acórdão, pelo que não há lugar à sua apreciação.
***
Sumariando:
- O contrato de seguro de crédito à habitação é, por regra, um contrato de adesão, integrado por cláusulas contratuais gerais, sujeitas do regime do DL 446/85 de 25/10;
- O conteúdo do dever de informação, emergente quer do regime do contrato de seguro, quer do regime do diploma supra mencionado;
- Exclusão, como sanção para a violação desse dever de informação;
- Integração das cláusulas excluídas, com recurso ao regime dos artºs 9º a 11º do DL 446/85 de 25/10, e aos artºs 239º, 236º 227º e 334ºdo CC.
- Interpretação do pedido, em correspondência com o efeito jurídico pretendido, revelado pela causa de pedir invocada.
V- Decisão:
Acorda-se pois em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, e absolver a Ré do primeiro dos pedidos contra ela formulados pela A. Mais se acorda em julgar parcialmente procedente o segundo pedido formulado, condenando a Ré a pagar ao Banco Santander a importância igual ao capital ainda em risco para os seguros cujas apólices constam do artº 1º da p.i., cujo montante informará nos autos, actualizado pelo montante devido à data do trânsito em julgado do presente acórdão.
Custas da instância e do recurso por A. e Ré, na proporção do decaimento, que se fixa em 6/10 para a Ré e 4/10 para a A.