Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3491/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: VENDA DE BENS DO ESTADO
Data do Acordão: 01/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: DEC. LEI 31/85 DE 25 DE JANEIRO
Sumário:

I – A venda pelo Estado de bens próprios não pressupõe nem gera nenhum conflito, nem uma mera divergência de opiniões, que convoque o exercício da função jurisdicional do Estado. Por outro lado, nenhuma norma do nosso ordenamento jurídico comete a esta função do Estado a referida venda. Assim, tal venda não cabe na referida função.
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de agravo nº 3491/03, vindo do 1º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Aveiro (acção de venda de objectos perdidos a favor do Estado nº 37/84/03.0):
I – Relatório.
1. No Tribunal Judicial da comarca de Aveiro, o Ministério Público, em representação do Estado, requereu ao Juiz de Direito dos Juízes Cíveis que se ordenasse a venda judicial de um veículo declarado perdido a favor do Estado.
2. Recebido o processo, o Sr. Juiz indeferiu liminarmente a petição inicial, por falta de um pressuposto processual inominado - interesse em agir -.
3. Deste despacho, recorre o requerente, produzindo as seguintes conclusões:
3.1. A legitimidade e o interesse em agir do Ministério Público, em representação do Estado, para intentar a presente acção, advém-lhe dos comandos normativos do Decreto n° 12487 de 14.10.26 e da Portaria n° 10725 de 12.08.44, que se encontram em vigor, bem como do disposto no art. 10° nº 2 do D.L. 31/85.
3.2. Diplomas que conferem legitimidade ao Ministério Público apenas para promover a venda judicial dos objectos declarados perdidos a favor do Estado e prescritos a favor da Fazenda Nacional e não para a ordenar ou efectivar.
...
II – Fundamentação.
5. A questão colocada é unicamente de direito, não havendo factos a considerar para além dos que já constam do relatório. Trata-se de saber se a venda de objectos já declarados perdidos a favor do Estado exige a tramitação de um processo judicial autónomo, para esse fim.
6.1. Em 17 de Dezembro de 2002, foi proferido um Acórdão, na 1ª Secção cível deste Tribunal, no qual se decidiu negativamente relativamente à procedência de pedido igual ao que é objecto deste recurso. Nele se afirma que «nada impede o Representante do Estado de promover a venda dos bens deste, sem carecer, para o efeito, de tutela jurisdicional, lavrando o respectivo auto na secretaria e remetendo o produto da venda ao departamento estadual competente. O fundamento de tal decisão foi a falta do pressuposto processual inominado falta de interesse em agir. A decisão da primeira instância indeferira liminarmente a referida pretensão, por se ter considerado o Tribunal cível absolutamente incompetente para conhecer do processo, «por entender que o procedimento em questão cai no âmbito das matérias distribuídas, por lei, às Varas com competência Criminal, aos Juízes Criminais e ao Tribunal de Instrução Criminal, pelas seguintes razões: …»; os objectos a vender tinham sido apreendidos e declarados perdidos a favor do Estado em processos criminais C.J. XXVII, 5, págs. 33 e 34..
Esta decisão foi confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça: «os actos de venda de objectos declarados perdidos a favor do Estado, nos termos da Portaria n.º 10.725, de 12-08-44 e DL n.º 12.487, de 14-10-26, não têm natureza jurisdicional, devendo desenrolar-se burocraticamente nas secretarias judiciais, não se justificando a intervenção do tribunal cível (em comarca com competências especializadas crime e cível), para decidir a venda promovida pelo Ministério Público, sendo de confirmar o aresto da Relação que entendeu ocorrer falta de interesse em agir por parte do Ministério Público» Acórdão de 29 de Abril de 2003 (Agravo nº 1059/03 - 6.ª Secção, in www.stj.pt)..
6.2. Estamos de acordo com a solução dada à questão, embora aderindo ao fundamento invocado pelo STJ. Pensamos que não se trata de uma questão de falta de interesse em agir, nem, mesmo, de competência material.
6.2.1. À parte a questão de saber se o interesse em agir é pressuposto processual exigido pela nossa lei - o que é negado pelo Sr. Professor João de Castro Mendes Direito Processual Civil, Apontamentos das Lições, 1978/79, A.A.F.D.U.L., vol. II, págs. 187 e ss.-, a questão está em que, se é necessário vender um bem e há um processo para o fazer no qual o Mº Pº tem uma função a desempenhar, então, quando ele decide exercê-la, tem interesse quando formula essa sua pretensão. O interesse em agir pressupõe a invocação de um direito ou um interesse e da necessidade de recorrer ao processo para o tutelar Professor João de Castro Mendes, obra e volume citados, pág. 187.; conforme ensina o Sr. Professor Manuel de Andrade, o interesse em agir «consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 79. Professor Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1982, vol. II, pág. 251.. Ora, o requerente invoca um dever de vender bens e a necessidade de seguir determinado processo para o fazer. Antes desta questão, podem colocar-se outros vícios de maior abrangência, conforme resulta da ordem estabelecida nos artigos 288º e 510º do Código de Processo Civil (CPC), de tal forma que já nem se chegue à ponderação deste requisito. A partir daí, podem surgir outros, incluindo questões de fundo, como por exemplo, a inexistência do direito. Agora, focando a questão do interesse, unicamente, parece que o Mº Pº tem interesse e necessidade de promover a venda dos bens pertencentes ao Estado.
De qualquer maneira, nunca a petição poderia ser indeferida liminarmente por falta de interesse em agir, por se tratar de pressuposto processual que não é de conhecimento oficioso Dr. Miguel Teixeira de Sousa, O Interesse Processual na Acção Declarativa, AAFDL, 1989, págs. 37 a 39. A não ser que se considere o interesse em agir uma condição da acção, como o Sr. Professor Manuel de Andrade admite, contrariamente ao Sr. Professor Anselmo de Castro..
6.2.2. E também não se trata de uma questão de competência material.
A competência material tem a ver com a delimitação da actividade dos diversos tribunais quando confrontados entre si Professor Manuel de Andrade, obra citada, pág. 89.. Foi à luz deste conceito e critério que a decisão sob recurso no processo da 1ª Secção deste Tribunal, acima referida, tinha encarado o problema: tendo o Mº Pº intentado a acção no tribunal cível, o respectivo juiz entendeu que a competência pertencia ao tribunal criminal.
Ora, a questão há-de pôr-se, não em termos de delimitação interna do poder jurisdicional atribuído aos diversos tribunais, mas do poder jurisdicional atribuído em conjunto aos tribunais cf. a distinção na obra e local referidos na nota anterior.; é uma questão de jurisdição, ou seja, do poder atribuído aos tribunais, globalmente considerados, em confronto com a actividade dos outros órgãos do Estado Professor Manuel de Andrade, obra citada, pág. 89..
6.3. Actualmente, os Estados desenvolvem quatro funções típicas: a política, a legislativa, a administrativa e a jurisdicional. Esta, cometida aos tribunais artigo 202, nº 1, da Constituição da República (CRP)., traduz-se em administrar a justiça, o que significa, aplicar a lei às situações concretas, declarando o direito no caso singular, de acordo com as fontes reconhecidas pelo nosso ordenamento jurídico, e ordenando as providências necessárias à execução das decisões judiciais Drs. Manuel Tomé Soares Gomes e Manuel Bento, Da Função Jurisdicional - Organização Judiciária, Centro de Estudos Judiciários, Setembro de 1998, pág. 4.. Nos termos do disposto no artigo 2º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro., sob a epígrafe Função jurisdicional, «incumbe aos tribunais judiciais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados».
6.3.1. A venda de um bem já pertencente ao Estado não se enquadra na defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, o que tem a ver com o controle da constitucionalidade e da legalidade artigos 277º e ss da CRP., com a jurisdição de menores Lei nº 147/99, de 1 de Setembro; Lei nº 166/99, de 14 de Setembro; Organização Tutelar de Menores (D. L. nº 314/78, de 27/10, com as alterações introduzidas pelos Ds. L. nºs. 185/93, de 22/5, 48/95, de 15/3, 58/95, de 31/3, 120/98, de 8/5 e pela Lei nº 133/99, de 28/8)., com a fiscalização das despesas públicas e julgamento das contas artigo 214º da CRP e Lei nº 98/97, de 26/8 (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas). e com justiça administrativa; engloba também a jurisdição voluntária artigos 1409º e ss do CPC., de que falaremos já a seguir.
6.3.2. Também não se enquadra na repressão das infracções da legalidade democrática, o que tem a ver com a justiça criminal e a contra-ordenacional, com a efectivação da responsabilidade por infracções financeiras cometidas ao Tribunal de Contas e com a justiça militar.
6.3.3. Veremos também já a seguir o que se passa com as chamadas matérias adventícias, áreas ou matérias agregadas à essência das funções jurisdicionais, como por exemplo, o controle do processo eleitoral Drs. Manuel Tomé Soares Gomes e Manuel Bento, obra citada, págs. 5 e 6..
6.3.4. Então, só poderia cair na resolução dos conflitos de interesses públicos e privados, o que engloba o contencioso tributário e o aduaneiro, a justiça administrativa contenciosa e os processos cíveis de jurisdição contenciosa.
6.3.4.1. Mas, quer a jurisdição cível contenciosa, quer a voluntária - esta, independentemente da sua integração na função administrativa ou na jurisdicional Cf. Professor Artur Anselmo de Castro, obra citada, 1981, vol. I, pág. 9. Professor João de Castro Mendes, obra citada, vol. I, pág. 88.-, pressupõem sempre a regulação de um interesse; naquela, existindo um confito, nesta com mero conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse Professor Manuel de Andrade, obra citada, pág. 72.. Ora, não se vislumbra qual é o interesse a regular quando o Estado pretende vender um bem que lhe pertence.
6.3.4.2. Por outro lado, o interesse que tem de ser regulado é sempre entre duas pessoas: «às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções» artigo 264º, nº 1, 517º, nº 1 e , do CPC; cf. Dr. Fernando Luso Soares, Direito Processual Civil, Apontamentos das Lições dadas ao 4º ano de 1978-79, Lisboa, 1978, pág. 181.. A jurisdição representa a preparação do direito inter partes, por contraposição ao poder legislativo que opera super partes Dr. Fernando Luso Soares, obra e local já referidos, citando Carnelutti.. Um pedido, num processo, pressupõe duas partes: a que faz o pedido e aquela em relação à qual o pedido é feito, o autor e o réu José Chiovenda, Principios de Derecho Procesal Civil, Reus, S. A., 1977, tradução espanhola da terceira edição italiana, Tomo I, pág. 8: «una demanda en el proceso supone dos partes: la que hace, y aquella frente a la cual se hace. Así tenemos la posición del actor y del demandado».. Assim a relação processual tem três sujeitos: o órgão jurisdicional, por um lado, e as partes, por outro (autor e réu) José Chiovenda, obra citada, Tomo I, pág. 124: «… la relación procesal tiene tres sujetos: él organo jurisdiccional, de una parte, y de outra, las partes (actor y demandado). Esto en su forma más simple». No mesmo sentido, o Professor A. Anselmo de Castro, obra e volume citados, pág. 28: «… relação jurídica plurilateral entre as partes e o tribunal (como representante do Estado).. Ou seja, a ideia fundamental relativamente ao conceito de relação jurídico-processual está inerente à de judicium romano: judicium est actus trium personarum, iudicis, actoris et rei José Chiovenda, obra e volume citados, pág. 123..
Ora, nesta pretensa acção, não há partes, não há contraditório, não há litígio, nem diferenças nas opiniões ou representações acerca de um mesmo interesse. O Mº Pº propõe uma acção contra ninguém; nem relativamente a alguém que, com o mesmo interesse, tenha divergência de opinião ou com quem haja solidariedade de interesse ou com alguém ausente curiosamente, não haveria ninguém para absolver da instância se faltasse um pressuposto processual que determinasse tal consequência!.
6.4. Só poderíamos enquadrar a pretensão do Mº Pº na hipótese da existência de um interesse de uma só pessoa a ser resolvido pelo tribunal, por razões objectivas: a prossecução do interesse em causa só se poder fazer «em condições estritamente fixadas na lei, e cuja observância a intervenção do tribunal assegura» cf. Professor João de Castro Mendes, obra e volume citados, pág. 83 e 84..
A esta hipótese poderíamos acrescentar a de a matéria em questão ser adventícia, no sentido atrás referido; por qualquer razão - que não interessava agora apurar -, o legislador teria cometido esta matéria à função jurisdicional do Estado.
6.5. Não nos parece ser possível tirar tais conclusões.
O recorrente afirma que a decisão sob recurso infringiu o Decreto n° 12.487 de 14 de Outubro de 1926, nomeadamente o seu artigo 14º, a Portaria n° 10.725 de 12 de Agosto de 1944, o artigo 10°, nº 2, do D.L. 31/85, de 25 de Janeiro, e o artigo 99° da Lei 3/99, de 13 de Janeiro. As normas dos diplomas referidos dariam ao Mº Pº legitimidade e interesse em agir, em representação do Estado, para intentar a presente acção.
6.5.1. O referido Decreto de 1926 diz respeito à jurisdição dos tribunais militares; no artigo 14º prescreve-se que «as quantias em dinheiro apreendidas em processos criminais serão depositadas na Caixa Geral de Depósitos à ordem do respectivo juiz a fim de serem entregues a final e gratuitamente a quem a elas tiver direito». Temos a intervenção de um juiz, mas relativamente a coisa que não pertence ao Estado. Continua o parágrafo primeiro do mesmo artigo: «Todos os objectos e quantias não reclamados pelas partes, …, prescreverão a favor da Fazenda Pública e o seu produto dará entrada na Caixa Geral de Depósitos, …».
Naturalmente, através de um juiz. Mas, o que se deveria demonstrar é que, daqui para a frente, a lei previa a intervenção de um juiz e não até este momento.
E não parece que tal resulte do parágrafo seguinte: «Para a execução do disposto no § anterior os juízes respectivos farão proceder à venda dos objectos que forem prescrevendo, …». Por um lado, é uma disciplina relativa à jurisdição militar; por outro lado, diz respeito ao juiz respectivo, ou seja ao juiz do processo criminal onde os objectos foram apreendidos e declarados prescritos a favor da Fazenda Nacional; finalmente, porque não está delineada nenhuma acção a intentar pelo Mº Pº junto de um tribunal, tão-só que o juiz que tem conhecimento de que há objectos que entraram no património do Estado, porque acompanhou e decidiu o incidente, fará proceder à venda, o que tanto pode significar que ele mandará vender ou comunicará para que alguém venda. No máximo, o que poderíamos ter de concluir é que o juiz procedia à venda ou fazia com que alguém vendesse, sendo que, em ambas as situações, o juiz tomava uma decisão sem estar previsto que o Mº Pº lhe colocasse a questão através de uma acção autónoma. E mesmo que assim não fosse, extrapolando de uma situação muito limitada para o comum das situações, sempre teríamos de concluir que havia um vício de competência, por ser matéria do juiz respectivo, ou seja do titular do processo em que o bem foi declarado prescrito.
Portanto, pensamos que este diploma nada legitima a favor do recorrente.
6.5.2. E o mesmo dizemos da Portaria de 1944. O diploma nasce da necessidade de «providenciar quanto ao destino a dar a tais instrumentos, cuja venda de alguma forma pode auxiliar o Fundo da Associação do Patronato das prisões …». Então, «os delegados e subdelegados do procurador da república enviarão ao instituto de criminologia do respectivo distrito judicial as relações de todos os instrumentos dos crimes, …» artigo 1º da Portaria., podendo os institutos proceder à sua requisição desde que informem previamente a Direcção Geral dos Serviços Prisionais artigo 2º da Portaria.. Quanto aos restantes instrumentos, «deverão ser vendidos em hasta pública no mês de Janeiro, sob proposta dos delegados e subdelegados nas respectivas comarcas e julgados municipais, lavrando-se os competentes autos de venda nas secretarias judiciais e sendo o produto remetido, …, à Direcção Geral dos Serviços Prisionais, para o fundo do patronato. Os objectos que não tiverem valor venal serão destruídos, o que se consignará nos respectivos autos» artigo 3º da Portaria..
Esta disciplina normativa não permite dizer mais do que se disse no Acórdão acima referido: «nada impede o Representante do Estado de promover a venda dos bens deste, sem carecer, para o efeito, de tutela jurisdicional, lavrando o respectivo auto na secretaria e remetendo o produto da venda ao departamento estadual competente» pág. 35, 2ª coluna, 5º §..
6.5.2.1. No ponto 2. das suas conclusões, o recorrente afirma que os diplomas por ele referidos «conferem legitimidade ao Ministério Público apenas para promover a venda judicial dos objectos declarados perdidos a favor do Estado e prescritos a favor da Fazenda Nacional e não para a ordenar ou efectivar» grifámos.. O vocábulo promover (pro + movere) significa, seguramente, uma “acção de fazer andar para a frente”, “dar movimento para a frente”, de “dar impulso para diante”; só no foro judiciário significa “requerer”, “propor” Dicionário Prático Ilustrado, Lello & Irmão, 1969.. Não obstante o vocábulo proposta, utilizado no artigo 3º da Portaria, ter um significado igual a promoção, ele não é empregue na linguagem da lei para se referir às iniciativas e pretensões judiciárias do Mº Pº. A opção por tal vocábulo revela que se trata de uma competência materialmente administrativa do Mº Pº.
6.5.2.2. Não obstante as afirmações das conclusões, seria necessário demonstrá-las, quer a de que a proposta a fazer pelo Mº Pº para a venda de bens do Estado equivale à existência de um processo judicial especial para esse fim, quer a de que a venda seguirá as regras próprias aplicáveis à venda judicial, quer a de que, seguindo tal modelo, isso obriga a um processo judicial, quer, finalmente, que a existência de vários candidatos a comprador exige um processo judicial ponto 3. das conclusões..
6.5.3. O Acórdão desta Relação referido logo no início fala em interpretação «actualista do nosso ordenamento jurídico-constitucional» e, na verdade, ao percorrermos a mais recente legislação citada pelo recorrente, mais longe fica a perspectiva quer de a venda de bens do Estado ter de ser feita num processo judicial, quer mesmo a possibilidade de tal acontecer.
O artigo 11º, do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de Janeiro, sob a epígrafe restituição de veículos: indemnizações, prescreve no nº 1: «se, por qualquer motivo, for ordenada a restituição de um veículo apreendido, perdido ou abandonado em favor do Estado, será feito o apuramento da desvalorização ocasionada pelo uso por parte do Estado, bem como das benfeitorias que o Estado efectuou durante a utilização»; e o nº 2: «operada a compensação a que houver lugar, será indemnizado o titular do crédito pelo execedente que for apurado»; e o nº 3: «o apuramento referido nos números anteriores será homologado por despacho do Ministro das Finanças e do Plano, sob proposta da Direcção Geral do Património do Estado, não prejudicando o recurso aos tribunais comuns em caso de não concordância do interessado». Logo, processamento administrativo, sem prejuízo, obviamente, de recurso ao poder judicial, neste caso não aos tribunais administrativos, mas aos tribunais comuns. Neste caso, o recurso à via contenciosa depende da iniciativa e impulso do particular lesado e «o pedido será deduzido na acção penal, correndo por apenso a esta …» artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 31/85 - fixação judicial da indemnização pelo uso..
E o mesmo - processamento administrativo - se passa com o cadastro dos veículos apreendidos em processos criminais: «será organizado um processo burocrático para cada viatura, onde se anotarão todas as alterações, reparações e despesas efectuadas com a mesma» (a mesma refere-se a viatura) artigo 9º, nº 3, do Decreto-Lei nº 31/85 - reparação e utilização de veículos apreendidos..
Mas, olhemos à norma que, de forma directa, se refere à venda: o artigo 10º, nº 2, do Decreto-Lei estipula que «na falta de disposição especial, proceder-se-á à venda da viatura, precedida de anúncio num dos jornais mais lidos na localidade onde se encontra, revertendo o produto para o Estado, após dedução das despesas efectuadas com a sua guarda, conservação, remoção e venda», e o nº 3: «o disposto no número anterior aplicar-se-á igualmente às viaturas apreendidas em processo crime ou de contra-ordenação logo que a Direcção Geral do Património do Estado informe que não interessam ao parque do Estado e se tornem desnecessários para a instrução, depositando-se o produto da venda na Caixa Geral de Depósitos à ordem da entidade que superintender no processo». Continuamos a não ver onde está o suporte literal para a judicialização da venda; onde está a remissão para a venda judicial, uma vez que se estabelecem regras privativas desta venda; onde está o juiz à ordem de quem o dinheiro é depositado nos processos judiciais, sendo seguro que quem superintende nestas vendas é um juiz, aliás, como pretende o recorrente. A questão está em que a lei se refere sempre à ordem do juiz do processo quando fala da entidade tutelar do depósito e não a à ordem da entidade que superintender no processo, expressão bem reveladora da incerteza e/ou mutabilidade dessa entidade o futuro imperfeito do conjuntivo designa uma eventualidade no futuro (Nova Gramática do Português Contemporâneo; Drs. Celso Cunha e Lindley Cintra, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1986, pág. 473)., podendo ser, por exemplo, a alfândega, como se prevê na nova redacção do nº 3, do referido e analisado artigo 10º, dada pelo Decreto-Lei nº 26/97, de 23 de Janeiro, que prevê a venda de certos veículos «com a superintendência da alfândega …». Apesar desta superintendência - neste caso -, tal não quer dizer que os tribunais não comuniquem à alfândega as decisões de venda dos veículos: «para efeitos do disposto no número anterior, os tribunais ou as entidades competentes comunicarão previamente à alfândega da respectiva área de jurisdição as decisões de venda dos veículos, …» n 4, do referido artigo 10º, na redacção do Decreto-Lei nº 26/97.. E o acabado de referir - disposto nos números 1, 2 e 3 do artigo 10º - «aplicar-se-á aos veículos apreendidos em processo crime ou de contra-ordenação, …, depositando-se o produto da venda na Caixa Geral de Depósitos à ordem da entidade que superintender no processo» nº 5, do referido artigo 10º, na redacção do Decreto-Lei nº 26/97.; da entidade que superintender no processo, entidade essa de natureza administrativa, as quais, aliás, também podem declarar abandonados ou perdidos veículos a favor do Estado, conforme se prevê no artigo 10º-A, após a nova redacção do Decreto-Lei nº 26/97, que veio adaptar o Decreto-Lei nº 31/85 ao novo regime introduzido pelas infracções fiscais aduaneiras e do Código da Estrada.
Ora, esta evolução mostra que a judicialização da venda de bens do Estado, se nunca existiu, cada vez menos tem apoio nas leis recentes.
6.5.4. Obviamente que o artigo 99º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais., nada acrescenta: só poderia ter interesse se se demonstrasse que a venda de bens do Estado é acto cometido ao poder judicial ou por ele controlado.
Portanto, não se pode deduzir da letra da lei que estas referidas vendas devam ter uma natureza judicial, sendo que o recurso a tal via, quando se trata de um interesse objectivamente tutelado judicialmente ou de matérias legislativamente inseridas na função jurisdicional, só pode ter lugar quando a lei o prevê.
6.6. E se a letra da lei não consente tirar a conclusão pretendida pelo recorrente, menos ainda a sua ratio e o contexto legislativo do momento actual. Atentemos em que se vive uma fase de desjudicialização de matérias essencialmente jurisdicionais! Seria absurdo que, de um lado, saísse o que é de cá, e, do outro, entrasse o que não é. E já não falamos do ponto de vista qualitativo, pois pode pensar-se que o (nosso) movimento de desjucialização, à parte o lado de parceria e alternatividade positiva com o judicial, assume, às vezes, aspectos de alguma desvalorização deste, quer explicitamente, quer implicitamente, que levariam a acrescentar à consideração feita - de que entra no judicial o que não lhe pertence -, a de que, ainda por cima, entram minudências, bagatelas.
6.7. É certo que há decisões em sentido contrário, conforme realça o recorrente. No Acórdão também deste Tribunal, de 19 de Novembro de 2002 também na CJ XXVII, 5, na pág. 18. Pode ver-se ainda o Acórdão da Relação de Coimbra, de 4 de Novembro de 2003, in www.dgsi.pt., decidiu-se que «são os tribunais cíveis os competentes ao abrigo da sua competência residual do art. 99º da Lei 3/99, de 13-19 para proceder à venda de objectos declarados perdidos a favor do Estado em processo crime» sumário do Acórdão.; se considerássemos que estas vendas têm de ser feitas por via judicial, teríamos de ponderar seriamente este argumento, muito embora nos agrade mais uma posição seguida no Tribunal da Relação do Porto, de que falaremos adiante.
E poder-se-á, ainda, dizer, para além destas decisões, que a venda por via judicial correspondia à prática corrente, até há pouco tempo, dos tribunais. Autores conceituados, como o Sr. Conselheiro Salvador da Costa, também defendem essa posição, como lembra a recorrente: «O Ministério Público deve formular, na acção de processo especial, o pedido de declaração de perda dos referidos objectos (...) bem como a sua venda (...).» anotação ao artigo 131º, nº 1, alínea f), do Código das Custas Judiciais, do referido Autor..
6.8. Com todo o respeito, teremos de ter presente que, na vida judiciária, há práticas que, às vezes, se vão prolongando por força da inércia da rotina. Antes da ordem constitucional democrática, a organização das magistraturas era verticalizada, precedendo à magistratura judicial a do Mº Pº. Os então agentes do Mº Pº acabavam por ter uma subordinação funcional, de facto, relativamente aos magistrados judiciais. Nesse contexto de então, não admira que o agente do Mº Pº submetesse à apreciação do seu juíz (como se costumava dizer) o processo de venda dos objectos do Estado, como submetia outras questões, mesmo as materialmente judiciais.
Manter essa prática, depois de ler atentamente a legislação invocada pelo recorrente e nada encontrar que a justifique, não faria sentido. Para além de que sempre se justificaria uma leitura actualizada de alguma norma que, porventura, indiciasse uma venda judicial.
6.8.1. A ter de admitir a venda judicial, preferiríamos uma orientação muito seguida na Relação do Porto, no sentido de que a venda é da competência do tribunal criminal, no fundo daquele que declarou os objectos perdidos a favor do Estado; por uma questão de economia Acórdão de 21 de Janeiro de 1997 (Dr. Araújo de Barros); de 22 de Abril de 1996 (Dr. Lúcio Teixeira); de 20 de Janeiro de 2000 (Dr. Pinto de Almeida); de 26 de Novembro de 1997 (Dr. Neves Magalhães); de 4 de Março de 1997 (Dr. Mário Cruz). Defendendo a competência do tribunal cível, os Acórdãos de 5 de Fevereiro de 1997 (Dr. Milheiro de Oliveira) e de 21 de Fevereiro de 1996 (Dr. Teixeira Mendes)..
6.9. Mas, vamos no sentido já referido, inteiramente de acordo com o Acórdão da 1ª Secção desta Relação, de 16 de Dezembro de 2003, relatado pelo Sr. Desembargador Coelho de Matos: «Não têm natureza jurisdicional os actos de venda de objectos declarados perdidos a favor do Estado, nos termos da Portaria n.º 10.725, de 12-08-44 e DL n.º 12.487, de 14-10-26. Por isso é de indeferir in limine a acção proposta pelo Ministério Público com vista à venda ou destruição de objectos declarados perdidos a favor do Estado, em decisões proferidas em processos, designadamente de natureza penal» pontos I e II do respectivo sumário, in www.dgsi.pt.. Queremos frisar a seguinte passagem deste Acórdão: «por isso, temos por certo que o sistema jurídico processual que emergiu da nova ordem jurídico constitucional não contém uma acção autónoma para venda dos bens do Estado sem que se lhe associe um conflito de interesses a dirimir».
6.10. Considerando, então, que o objecto da pretensão do recorrente não constitui matéria que compita aos tribunais, no seu conjunto, estamos perante uma questão de jurisdição e não de competência, como começámos por referir. A falta de competência absoluta do tribunal é fundamento para o não conhecimento do pedido e de absolvição da instância artigo 288º, nº 1, al. a), do CPC.. Quanto à questão da jurisdição, a lei nada refere, pela razão de que só perspectiva as questões que se colocam ao poder judicial. Mas, obviamente, que, se a falta de competência de um tribunal leva a que não se entre no mérito da causa, o mesmo terá necessariamente de acontecer quando a questão não deva ser conhecida por nenhum tribunal, e já não por determinado tribunal.
III – Decisão.
Nestes termos, negam provimento ao agravo, confirmando o decidido em primeira instância, embora com diferente fundamento.
Sem custas.
20 de Janeiro de 2004.