Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
48/03.3TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 09/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: : ARTIGOS 276.º, 1, C); 279.º; 1326.º 1335.º; 1350.º, 1 E 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; 2024.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Tendo os interessados solicitado a exclusão de verbas da relação de bens, a decisão de remessa para os meios comuns tem o efeito imperativo de não afastar, pelo menos, enquanto não for proferida decisão consentânea nesse sentido, a sua relacionação no inventário, onde permanecerão, nomeadamente, até à aludida decisão, na acção declarativa apropriada, se esta for instaurada na pendência do inventário.
2. A propósito das questões prejudiciais, contempladas no artigo 1335º, o juiz goza da faculdade de determinar a suspensão da instância, até que ocorra a sua decisão definitiva, ao contrário do que acontece com a situação do incidente de reclamação contra a relação de bens, em que o artigo 1350º, nº 1, ambos do CPC, não consagra, expressamente, essa possibilidade.
3. Tratando-se de uma discussão entre interessados, tendo estes sido remetidos para os meios comuns, os bens respeitantes às verbas cuja exclusão se reclama devem considerar-se como litigiosas, com o esclarecimento, na descrição, dessa sua natureza.
4. A suspensão do inventário só deve ser ordenada quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns, por só, então, existir fundamento sério para tal.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


Nos presentes autos de inventário, por óbito de A, instaurados por B, em que exerceu funções de cabeça-de-casal C, a inventariante e a interessada D todos residentes nas Matas, Marinha das Ondas, Figueira da Foz, interpuseram recurso de agravo da decisão que indeferiu a reclamação contra o mapa de partilha, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:
1ª - O cabeça-de-casal relacionou determinadas verbas em dinheiro como pertencentes à herança e situou-as na posse de uma familiar da inventariada, ora recorrente-alegante.
2a - Durante o prazo do exame da relação de bens questionou-se que essas verbas ainda pertencessem aquela, por alegadamente delas ter disposto e assim se pugnou pela sua exclusão de uma tal peça.
3a - Oferecidas tempestivamente as provas dum lado e doutro, de natureza testemunhal, foi, a final, proferida decisão de acordo com a qual o tribunal recorrido entendeu não dispor de elementos seguros para, em sede de inventário, julgar o dito incidente da reclamação contra a relação de bens.
4ª - Tratou-se, na circunstância, de um entendimento contrário à tese do cabeça-de-casal, aqui recorrido;
5a - Não obstante, esse interessado acatou o despacho em causa, não o pondo em crise, nem sequer pela via do recurso subordinado, de que estava ao seu alcance lançar mão em face dos desenvolvimentos que o processo conheceu.
6ª - É que a decisão em causa apenas implicitamente remetia os interessados para os meios comuns, assim violando o disposto na parte final do n°1 do artigo 1350 do CPC.
7a - Em face disso e fazendo apelo à chamada "jurisprudência das cautelas", as recorrentes haviam agravado de tal decisão, em recurso só há pouco objecto de subida a este Venerando Tribunal e, por isso mesmo, ainda pendente de apreciação e julgamento.
8a - Nesse particular, visava-se que o tribunal ad quem se orientasse no sentido de os interessados serem, de modo expresso, remetidos para os meios comuns, a fim de que a decisão se compatibilizasse na íntegra com os seus pressupostos.
9a - Ademais e subsidiariamente, reagia-se contra a mesma por isso que as provas produzidas pelas recorrentes e a falência da prova da parte adversa imporiam até que o problema ficasse logo resolvido na primeira instância pela definitiva saída das verbas controvertidas da dita relação de bens.
10a - Certo que esse primeiro recurso foi recebido no efeito devolutivo, o que se deveu apenas ao regime respectivo nos processos de inventário, facto esse sem qualquer influência na posterior marcha do processo.
11ª - De facto, quando o tribunal não dispõe de elementos para julgar uma reclamação como a do caso concreto e remete as partes para os meios comuns, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu.
12a - Uma vez aqui chegados, importa considerar dois aspectos:
Por um lado, a redacção do citado n°2 do artigo 1350 do CPC que, no seu inicio, refere expressamente que a decisão de permanência na relação também dos bens cuja exclusão se requereu - como no caso dos autos - tem em vista as hipóteses subsumíveis ao n°1 daquele normativo, leia-se, os casos em que, uma vez concluída a actividade judicial de recolha das provas pelos interessados contendores disponibilizadas, o tribunal não tem elementos certos e seguros para conhecer da questão da titularidade do bem ou bens.
13a - Por outro, a própria unidade do sistema jurídico, que não pode permitir que verbas litigiosas, controversas, no que tange ao direito de propriedade respectivo, fiquem na relação de bens para, sem mais, como quer a primeira instância, serem partilhadas, depois de aquele mesmo tribunal ter sentenciado não ter elementos seguros para julgar a questão e, implicitamente, ter remetido as partes para o processo comum e antes que uma tal acção, de resto, nem sequer ainda proposta, conheça o seu epílogo.
14a - E a manutenção na relação de bens da matéria que divide os interessados visa o escopo de se aguardar o resultado da utilização da via adjectiva comum.
15a - E se a letra da lei, isto é, os dizeres do n° 2 do artigo 1350 do CPC, maxime, o princípio da sua redacção, não se compaginassem, como sucede, com o n°1 do mesmo normativo, sempre haveria que ter lugar uma tarefa interpretativa que harmonizasse tais disposições.
16a - De uma maneira ou de outra, o despacho posto em crise, que decidiu a reclamação contra o mapa da partilha, é insustentável, não podendo manter-se.
17a - Com efeito, não se pode partilhar aquilo que ainda não é líquido - se é que alguma vez o será - integre o respectivo acervo hereditário.
18a - Aliás, por alguma razão os interessados não partilharam o dinheiro em apreço na conferência de interessados em que tomaram posição quanto ao destino do património da inventariada em relação ao qual dúvidas não surgiram quanto à sua existência.
19a - E, por assim ser, é que o despacho determinativo da partilha mandou atender à forma à partilha apresentada pelo cabeça de casal que, por sua vez, remeteu para o decidido na conferência de interessados.
20a - E não se diga que uma tal operação, desde que levada a cabo na proporção dos quinhões de cada um, é insusceptível de causar prejuízo a quem quer que seja.
21a - Na verdade, ao dividir-se aquilo que não é líquido que o deva ser, está-se a prejudicar os veros proprietários das referidas quantias em dinheiro, obrigando-os inclusive a actividade judiciário-processual escusada, com os custos correspondentes.
22a - Acresce que uma tal tarefa de divisão e partilha conduz ao enriquecimento sem causa do cabeça de casal, ao arrepio da vontade do legislador, que, de nenhuma forma, acolhe a ideia do locupletamento à custa alheia.
23a - A Doutrina e a Jurisprudência acima citadas e cujo teor aqui se tem por reproduzido e integrado vão também no sentido da tese das recorrentes e até mesmo de que a decisão de non liquet proferida deve apontar para a suspensão da instância até ao final do processo de utilização dos meios comuns.
24a - O despacho posto em crise colidiu, por erro de interpretação e (ou) aplicação e por acção e (ou) omissão, com o disposto, entre outros, nos artigos 672 e 1350, n°s 1 e 2, ambos do CPC e artigo 9 do CC.
25ª - Deve, porque merece, ser revogado, decidindo-se que o mapa da partilha não deve incluir as verbas n°s 1 e 2 da relação de bens inicial e assim se ordenando a retirada daquela peça dos 50000,37 Euros correspondentes, com as legais consequências quanto ao modo em concreto de efectuar a divisão dos bens.
Nas suas contra-alegações, o cabeça-de-casal conclui que a decisão de indeferir a reclamação ao mapa de partilha não merece qualquer censura, por ter feito uma clara aplicação do direito, devendo permanecer na relação de bens as quantias em dinheiro, no total de 50100,34€.
O Exº Juiz sustentou a decisão questionada, por entender que não foi causado qualquer agravo à recorrente.
No prosseguimento do processo de inventário, foi proferida a sentença homologatória de partilha, da qual a inventariante e a interessada Maria Luísa Cordeiro da Silva interpuseram recurso de apelação, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e substituição por outra que homologue a partilha, realmente, acordada e querida pelos interessados, conforme à sua vontade e à realidade das verbas números 6, 7 e 8, designadamente, quanto às suas verdadeiras áreas, que são, respectivamente, 1096,93m2, 131,2m2 e 2456,26m2, e não as que constam da relação de bens, mas, quando assim não se entenda, se considere nulo todo o processado, a partir do início da conferência de interessados, por manifesta desconformidade entre a vontade real dos interessados e a declarada, atentas a declaração dos interessados sobre as áreas reais das aludidas verbas e a advertência consignada em acta, pela Senhora Juiz, formulando as seguintes conclusões:
1ª - Em causa no presente recurso a decisão final, que homologou a partilha constante do mapa respectivo.
2ª - Isto porque esse mapa fora, ele mesmo, objecto de reclamação desatendida pelo tribunal recorrido, de que se agravou, em recurso, neste momento, ainda pendente.
3ª - Essa reclamação teve a ver com o facto de a partilha incluir, no caso concreto, verbas litigiosas que, como tais, não puderam ser definitivamente decididas no âmbito deste processo.
4ª - E tal inclusão radicou em errado entendimento por força do qual a permanência na relação de bens, ainda que à espera do resultado do recurso aos meios comuns e inclusão nas operações de partilha seriam dois actos processuais de causa e efeito, sendo o segundo mera e fatal consequência da existência do primeiro.
5ª - Mas o agravo supra aludido na 2ª conclusão, com a consequência de evitar a formação de caso julgado quanto ao conteúdo do mapa de partilha, havia sido precedido, no desenvolvimento do processado, de um outro recurso.
6ª - Isto porque, no final da produção de provas, de recorte testemunhal, no incidente de reclamação quanto a relação de bens, a 1ª instancia, depois de ter decidido não dispor de elementos suficientes para julgar a questão da propriedade dos dinheiros controversos, não remeteu os interessados para os meios comuns, como a lei lho impunha.
7ª - Só que esse primeiro agravo foi, entretanto, objecto de decisão por parte deste Tribunal de recurso, tendo obtido provimento.
8ª - Consequentemente, é já agora líquido que as ditas verbas litigiosas só poderão ser objecto de definitiva decisão fora deste processo de inventário.
9ª - Sendo assim, como é, o que não está nos autos não pode estar no mapa da partilha, por não poder ser objecto de uma operação de divisão e adjudicação;
10ª - Destarte, o dito mapa terá que ser reformulado, dele se excluindo as importâncias em dinheiro em referência.
11ª - Deste modo, não subsistindo o mapa, nos termos em que foi elaborado, nem a partilha em que repousa, o mesmo terá que acontecer à sentença que visava a correspondente homologação.
12ª – Decisão essa que fez errada interpretação e (ou) aplicação, por acção e (ou) omissão, além das disposições legais citadas ao longo desta peça e aqui tidas por reproduzidas e integradas, do artigo 1352º, nº 1, do CPC.
13ª – Deve, porque merece, ser revogada e substituída por outra que homologue a partilha constante do mapa reformulado em consequência da decisão já proferida e daquela outra, entretanto, a proferir e por força das quais os dinheiros litigiosos e que constituem as verbas nºs 1 e 2 da inicial relação de bens sejam excluídos e não entrem, por isso, nas correspondentes operações de divisão e adjudicação.
Nas suas contra-alegações, o cabeça-de-casal conclui que o Tribunal da Relação decidiu que as quantias, no total de 50100,34€, devem permanecer na relação de bens, por acórdão já transitado em julgado e, por tal facto, devem ser partilhadas e não excluídas do mapa de partilha.
Para além da tramitação processual referida no presente relatório, importa ainda destacar que este Tribunal da Relação, conhecendo do incidente de reclamação da relação de bens deduzido pela ora recorrente, decidiu, com trânsito em julgado, no sentido da revogação do despacho e da sua substituição por outro que remeta os interessados para os meios comuns, para dirimir as questões relativas à propriedade das quantias de 32576, 32€ e de 17524,00€ e que constituem as verbas nºs 1 e 2 da relação de bens, devendo, consignar-se, em seguida, que, nos termos do nº 2, do artigo 1350º, do CPC, aquelas verbas permanecem relacionadas.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, em ambos os recursos, em função das quais se fixa o seu objecto, considerando que o «thema decidendum» dos mesmos é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão de saber se devem ser excluídas da relação de bens as verbas relacionadas pelo cabeça-de-casal, em que foi decidido a remessa para os meios comuns.
II – A questão de saber se a decisão de «non liquet» deve conduzir à suspensão da instância.

I

DO DESTINO DAS VERBAS EM QUE FOI DECIDIDO A REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS

O processo de inventário destina-se, por via de regra, a pôr termo à comunhão hereditária, derivada do fenómeno sucessório, ou seja, ao chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e à consequente devolução dos bens que a esta pertenciam, por força do estipulado pelos artigos 2024º, do Código Civil (CC), e 1326º, nº 1, do CPC.
Devendo ser partilhadas todas as relações jurídicas patrimoniais do falecido, apresentada a respectiva relação de bens, tendo sido acusada a falta de relacionamento de bens ou pedida a exclusão de outros relacionados, por, alegadamente, não pertencerem à herança, produzidas as provas oferecidas, serão os interessados remetidos para o processo comum, quando essas questões não puderem ser resolvidas, sumariamente, no processo de inventário, face à sua complexidade, nos termos do disposto pelo artigo 1350º, nº 1, do CPC.
A propósito da decisão proferida aquando do incidente de reclamação contra a relação de bens, este Tribunal da Relação proferiu acórdão, no recurso de agravo que da mesma foi interposto, em que determinou, no seu provimento, conforme consta do elenco dos factos supra-mencionados, a revogação do despacho e a sua substituição por outro que remeteu os interessados para os meios comuns, para dirimir as questões relativas à propriedade das quantias de 32576,32€ e de 17524,00€, que constituem as verbas nºs 1 e 2 da relação de bens, acrescentando que, nos termos do nº 2, do artigo 1350º, do CPC, aquelas verbas permanecem relacionadas.
Com efeito, conforme resulta do disposto no artigo 1350º, nº 2, do CPC, “no caso previsto no número anterior [na decisão incidental das reclamações contra a relação de bens]…permanecem relacionados os bens cuja exclusão se requereu”.
Na verdade, tendo as recorrentes solicitado o afastamento das aludidas verbas da relação de bens, a decisão de remessa dos interessados para os meios comuns tem o efeito imperativo, já considerado, de não excluir, pelo menos, enquanto não for proferida decisão consentânea nesse sentido, nos meios comuns, a sua relacionação no inventário, onde permanecerão, nomeadamente, até à referida decisão na acção declarativa apropriada, se esta for instaurada durante o período da pendência do inventário.
Esta é a solução que resulta, claramente, da letra da lei, não carecendo, além de mais, de qualquer outro contributo suplementar de análise exegética, em sede de teoria geral de interpretação das leis, como sustentam as recorrentes, sabido como está que o citado acórdão, após remeter os interessados para os meios comuns, para dirimir as questões relativas à propriedade das quantias de 32576, 32€ e de 17524,00€, acrescentou que “devendo, consignar-se, em seguida, que, nos termos do nº 2, do artigo 1350º, do CPC, aquelas verbas permanecem relacionadas”.
Portanto, mesmo sem recurso à via da interpretação da lei, está decidido, com trânsito em julgado, que as duas aludidas verbas continuarão relacionadas, pelo menos, até à ulterior decisão a proferir em acção comum, para onde os interessados foram remetidos, a fim de dirimir o conflito subsistente.

II

DA SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA

Defendem ainda as recorrentes que a decisão de «non liquet» proferida deve apontar para a suspensão da instância, até ao final do processo de utilização dos meios comuns.
Na reclamação contra a relação de bens, estipula o artigo 1350º, nº 1, do CPC, que “quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do nº 2 do artigo 1336º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns”.
Por outro lado, a propósito das questões prejudiciais surgidas na pendência do inventário, de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser, incidentalmente, decididas, dispõe o artigo 1335º, nº 1, do CPC, que “o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados”, prosseguindo o respectivo nº 2, no sentido de que “pode ainda ordenar-se a suspensão da instância, nos termos previstos nos artigos 276º, nº 1, alínea c), e 279º, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata algumas das questões a que se refere o número anterior”.
Quer isto dizer que o incidente de reclamação contra a relação de bens tem, em princípio, uma natureza procedimental diversa da arguição das questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha, muito embora, também estas sejam questões incidentais, mas que não devem ser decididas, no âmbito do próprio processo de inventário, como bem resulta do confronto das disposições combinadas dos artigos 1350º, nº 1 e 1335º, do CPC.
Efectivamente, muito embora as questões prejudiciais, a que se reporta o artigo 1335º, tenham, igualmente, a natureza de questões incidentais, contentem com questões diversas daquelas a que se refere o incidente de reclamação contra a relação de bens, sendo certo que, nesta última hipótese, podem ser decididas no próprio inventário, enquanto que naquela não devem, em princípio, ser, incidentalmente, decididas.
De facto, entre as questões de que depende a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha destacam-se, por exemplo, a aquisição, pelo «de cujus», por usucapião, do direito de certo imóvel, que se relaciona como pertencente à herança, a pendência da acção de investigação de paternidade ou maternidade, cuja procedência pode a vir a afastar a admissão, no inventário, de todos os herdeiros chamados à sucessão, ou a pendência da acção anulatória no testamento, em que são admitidos herdeiros testamentários Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, IV, 2ª edição, revista e actualizada, 2005, 297; João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, 5ª edição, 2006, 604., ou outra que possa ter como consequência a modificação da partilha, o que não acontece, manifestamente, no caso da titularidade dos bens STJ, de 9-10-97, CJ (STJ), Ano V, T3, 55..
E tudo isto para dizer que o artigo 1335º, do CPC, a respeito destas exemplificadas questões prejudiciais, prevê a faculdade de “o juiz determinar a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva”, ao contrário do que acontece com a situação do incidente de reclamação contra a relação de bens, em que o artigo 1350º, nº 1, do CPC, não contempla, expressamente, essa possibilidade Carvalho de Sá, Do Inventário, Descrever, Avaliar e Partir, 4ª edição, 116; Em sentido, aparentemente, não coincidente, sem fazer a distinção entre as duas situações, João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, 5ª edição, 2006, 596..
Porém, tratando-se de uma discussão entre interessados, tendo estes sido remetidos para os meios comuns, os bens respeitantes às aludidas verbas controvertidas devem, então, considerar-se como litigiosos, com o esclarecimento, na descrição, da sua natureza litigiosa, porque isso influenciará o seu valor Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, X, 630; RP, 4-4-1915, JR, 4, 15..
A suspensão da instância ocorre, para além dos casos em que a lei, especialmente, o determinar, quando o Tribunal o ordenar, isto é, quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta e quando entender que ocorre outro motivo justificado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 276º, nº 1 e 279º, nº 1, ambos do CPC.
Poder-se-ia entender que existe um motivo justificado para viabilizar a suspensão da instância, com vista a evitar a partilha dos bens que, eventualmente, se venha a provar que não fazem parte da herança.
De todo o modo, a suspensão do inventário não tem de ser, imediatamente, ordenada, devendo antes acontecer quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns RC, de 19-6-84, BMJ nº 338º, 480., tratando-se, assim, de uma medida cautelar que assegura que a suspensão da instância só irá decretar-se quando existir fundamento sério para tal RP, de 19-1-73, BMJ nº 223º, 281..
E, não tendo as recorrentes provado que instauraram acção comum a pedir que se declare que as mencionadas verbas lhe pertencem, não existe ainda causa justificativa bastante para determinar a suspensão da instância do inventário STJ, de 9-10-97, CJ (STJ), Ano V, T3, 54, citado., o que, de todo o modo, poderá vir a acontecer, se o Tribunal «a quo» o determinar, caso aquelas, até ao trânsito em julgado da sentença homologatória de partilha, propuserem acção com esse objectivo.
Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações das recorrentes.

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CONCLUSÕES:

I – Tendo os interessados solicitado a exclusão de verbas da relação de bens, a decisão de remessa para os meios comuns tem o efeito imperativo de não afastar, pelo menos, enquanto não for proferida decisão consentânea nesse sentido, a sua relacionação no inventário, onde permanecerão, nomeadamente, até à aludida decisão, na acção declarativa apropriada, se esta for instaurada na pendência do inventário.
II – A propósito das questões prejudiciais, contempladas no artigo 1335º, o juiz goza da faculdade de determinar a suspensão da instância, até que ocorra a sua decisão definitiva, ao contrário do que acontece com a situação do incidente de reclamação contra a relação de bens, em que o artigo 1350º, nº 1, ambos do CPC, não consagra, expressamente, essa possibilidade.
III - Tratando-se de uma discussão entre interessados, tendo estes sido remetidos para os meios comuns, os bens respeitantes às verbas cuja exclusão se reclama devem considerar-se como litigiosas, com o esclarecimento, na descrição, dessa sua natureza.
IV - A suspensão do inventário só deve ser ordenada quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns, por só, então, existir fundamento sério para tal.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar não provido o agravo e improcedente a apelação e, em consequência, confirmam o despacho e a sentença recorridos, devendo, porém, ficar a constar da relação de bens e do mapa de partilha que os bens a que se reportam as verbas nºs 1 e 2 têm carácter litigioso.

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Custas do agravo e da apelação, a cargo das recorrentes.