Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
513/07.3TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
Data do Acordão: 04/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 381.º; 384.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Na hipótese de contraditório subsequente ao decretamento preliminar da providência cautelar comum, esta, inicialmente, decretada, permanece, em estado latente, porque ainda se não perfectibilizou, dando lugar a uma decisão, duplamente provisória, podendo ser mantida, reduzida ou revogada, consoante as vicissitudes que se venham a verificar com os novos meios de prova oferecidos pelo requerido, mas que o tribunal, oportunamente, não tinha podido tomar em consideração.
2. A providência cautelar comum não especificada tem por base e fundamento o justificado e fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação a esse direito, o “periculum in mora”, e não a lesão grave do direito, o que só acontece, quando as circunstâncias se apresentem de modo a convencer que está iminente a lesão do direito, pressupondo que a ofensa se não acha ainda consumada, pois que a providência se destina a evitar o prejuízo e não a repará-lo, sob pena de não ter uma função útil.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A...., , residente em ….., e B...., , residente em ……., nos autos de procedimento cautelar inominado que instauraram contra a E…. a F…., a Diocese de ……, com sede ……, e o cónego C...., residente ……., interpuseram recurso de agravo da decisão que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto no artigo 287º, e), do Código do Processo Civil (CPC), ficando, assim, prejudicado o conhecimento das excepções invocadas pelos requeridos, em virtude da prossecução da presente providência cautelar se tornar desnecessária, devido à concretização das eleições dos corpos gerentes, para o mandato de três anos, já verificada, no passado dia 14 de Outubro de 2007, terminando as suas alegações, com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:

1ª – Tendo sido decretada providência cautelar a suspender a convocatória para a Assembleia Geral extraordinária que estava marcada para o dia 14 de Outubro de 2006, das 13 às 16 horas, na secretaria geral da irmandade, em …….

2ª – Tendo apesar de tal decisão, tido lugar a assembleia em causa.

3ª – Daí não resulta sem mais a inutilidade superveniente da lide.

4ª – Devia-se ter apurado se previamente à realização de tal Assembleia Geral, os requeridos tiveram ou não conhecimento da decisão previamente proferida.

5ª – Sendo que, em todo o caso, pelo menos a 1ª requerida, sabia, atendendo à sentença proferida no processo 711/06.7TBSRT, que não podia ter lugar a Assembleia Geral extraordinária que estava convocada.

6ª – Pelo que, ao decretar o tribunal a quo, a inutilidade superveniente da lide da providência cautelar, violou a decisão judicial anteriormente proferida pelo tribunal a quo e ainda os artigos 2º, nº 2, 381º, 387º e 391º todos do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações. 
A Exª Juiz sustentou a decisão questionada, entendendo não ter causado qualquer agravo aos recorrentes.

Este Tribunal da Relação considera que se encontram provados, com interesse relevante para a decisão do mérito do agravo, os seguintes factos:

1 – Na presente providência cautelar inominada, os agravantes pedem que seja suspensa a convocatória para a Assembleia Geral Extraordinária da Irmandade da …… de ……, subscrita pela tutela eclesiástica, representada pela requerida D...., nos termos da sentença proferida na providência cautelar que correu termos com o processo n.º 724/06.9TBSRT, que seja declarada ilegal, por emanada por quem carece de poderes para o acto e por falta de fundamento legal, a aludida convocatória, e que seja suspenso todo e qualquer acto eleitoral da requerida Irmandade da F…., até que seja fixado o conceito de pleito, constante do artigo 40º, c), do Compromisso da E....– Documento de folhas 1 a 66.

2 - A presente providência foi, liminarmente, admitida, sem audição dos requeridos, em virtude de o Tribunal «a quo» ter entendido que tal audição poria em causa a eficácia da providência – Documento de folhas 139.

3 - Ouvidas as testemunhas indicadas pelos requerentes, foi proferida decisão que determinou a suspensão da convocatória para a Assembleia Geral extraordinária que estava marcada para o dia 14 de Outubro de 2006, das 13 às 16 horas, na Secretaria Geral da Irmandade, em …. Documento de folhas 153 a 167.

4 – Porém, os requeridos deduziram oposição, invocando, além do mais, diversas excepções – Documento de folhas 211 a 222.

5 – Designada data para a inquirição das testemunhas arroladas pelos requeridos, no dia da respectiva diligência, foi proferida a decisão recorrida – Documento de folhas 304 a 306.

6 – Efectivamente, na decisão referida em 5, considerou-se, como fundamento da decisão recorrida, ter dado entrada, no Tribunal «a quo», no dia 23 de Outubro de 2007, a providência cautelar, autuada sob o n.º 533/07.8TBSRT, cuja audiência de julgamento se encontrava designada para o dia da diligência, aludida em 5, em que era pedido que fosse ordenada a “suspensão das deliberações tomadas na Assembleia Geral Extraordinária de 14 de Outubro de 2007, nomeadamente no que toca ao acto eleitoral nessa data realizado” – Documento de folhas 304 a 306.

7 – Por isso, prosseguiu-se na fundamentação que, independentemente do alcance desta providência, sendo o ponto único da convocatória a “Eleição dos Corpos Gerentes para o mandato de três anos”, que com a suspensão da convocatória, e com a decisão decretada, se pretendia evitar, que ocorreu no passado dia 14 de Outubro de 2007, razão pela qual os requerentes instauraram a providência cautelar n.º 533/07.8TBSRT, e sendo a realização destas eleições a causa de pedir dessa providência e a suspensão das mesmas o pedido aí formulado, a prossecução da presente providência cautelar torna-se desnecessária, já que a concretização das ditas eleições, torna inútil o objecto da mesma – Documento de folhas 304 a 306.

                                                               *

Tudo visto e analisado, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A única questão a decidir, no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, consiste em saber se a providência cautelar inominada da suspensão da convocatória para a Assembleia Geral extraordinária da requerida Irmandade da F…., pode, uma vez decretada, vir a ser julgada inútil, por, entretanto, ter ocorrido a aludida assembleia, que concretizou a finalidade que se pretendia evitar.

    DA INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM

Dispõe o artigo 381º, nº 1, do CPC, a propósito da providência cautelar comum, que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”, sendo certo que, quando o requerido não for ouvido antes do decretamento da providência, e esta vier a ser declarada, só após a sua realização é notificado da decisão que a ordenou, sendo-lhe, então, lícito, em alternativa, na sequência dessa notificação, nomeadamente, deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução, prossegue o nº 6, do artigo 385, e a alínea b), do nº 1, do artigo 388º, ambos do aludido diploma legal.

Neste caso, porém, continua o respectivo nº 2, do artigo 388º, o juiz decidirá da manutenção, redução ou revogação da providência, anteriormente, decretada.

Assim sendo, na hipótese de contraditório subsequente ao decretamento da providência, esta, inicialmente, decretada, permanece, em estado latente, podendo ser mantida, reduzida ou revogada, consoante as vicissitudes que se venham a verificar com os novos meios de prova oferecidos pelo requerido, mas que o tribunal, oportunamente, não tinha podido tomar em consideração.

Assim, o procedimento cautelar comum, preliminarmente decretado, ainda se não perfectibilizou, quando ocorrer o contraditório subsequente ao decretamento da providência, dando lugar a uma decisão, duplamente provisória, pois que nem, a final, assume força de caso julgado[1].

Por outro lado, constituem pressupostos legais do decretamento da providência cautelar comum não especificada a probabilidade séria da existência do direito de que se ocupa a acção, proposta ou a propor, que tenha por fundamento o direito tutelado, o justo e fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação a esse direito, a não existência de providência específica para acautelar o mesmo direito e que o prejuízo resultante da providência não exceda o valor do dano que com ela se pretende evitar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 381º e 387º, do CPC[2].

Efectivamente, esta providência tem por base e fundamento o justificado e fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação a esse direito, o “periculum in mora”, ainda que não seja exigível que a perda se torne efectiva com a demora, em conformidade, igualmente, com o estipulado pelos artigos 381º, nº 1 e 384º, do CPC, que prevêem os pressupostos genéricos da procedência de qualquer providência conservatória ou antecipatória, e não a lesão grave do direito.

No caso específico da providência cautelar comum, deve existir um justificado e fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação ao direito invocado, um indispensável juízo de certeza[3], sendo certo que este receio há-de ser de tal ordem que fundamente a providência requerida, o que só acontece, quando as circunstâncias se apresentem de modo a convencer que está iminente a lesão do direito.

Como assim, esta providência tem que se antecipar à lesão, porquanto o requisito do justo receio pressupõe que a ofensa se não acha ainda consumada, que os actos susceptíveis de produzir a lesão devem encontrar-se em potencialidade e não realizados, visam factos futuros e não passados, pois que a providência se destina a evitar o prejuízo e não a repará-lo, sob pena de não acautelar o efeito útil da acção[4].

É que o receio só pode ser qualificado como justificativo da providência requerida quando as circunstâncias se apresentam de modo a convencer que se encontra iminente a lesão do direito[5].

Revertendo ao caso em análise, tendo já ocorrido a eleição dos corpos gerentes da requerida Irmandade da F….., para o mandato de três anos, que a decisão decretada, mediante a suspensão da convocatória, pretendia evitar, já se não mostra iminente a lesão do alegado direito dos requerentes, a qual se consumou e, portanto, traduz uma situação fáctica incompatível com a essência da providência cautelar comum[6].

Por outro lado, não se trata de uma situação em que a lesão já efectuada pode constituir fundamento de justo receio de outras e, assim, basear o pedido das providências adequadas para evitar outras idênticas e futuras[7], porquanto a iminência de uma nova violação, a não estar ainda decidida a acção principal, depende de uma nova convocatória para a eleição dos corpos gerentes da requerida Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Vila de Rei, decorrido ou interrompido o período do mandato em curso, mas sempre de uma nova convocatória a anunciar que, em abstracto, se não pode proibir.

Ora, ainda que preenchidos os pressupostos legais do decretamento da providência cautelar comum não especificada, no momento introdutório do procedimento em juízo, verificando-se ter sido realizada a Assembleia Geral extraordinária da requerida Irmandade da F…. onde decorreu o respectivo acto eleitoral, cuja suspensão da respectiva convocatória era solicitada na mesma, ocorre a inutilidade superveniente da lide, causa da extinção da instância, com base no disposto pelo artigo 287º, e), do CPC[8].

Não colhem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações dos agravantes, não se mostrando, assim, violadas as disposições legais citadas ou outras que, oficiosamente, importe conhecer.

                                                    *

CONCLUSÕES:

I - Na hipótese de contraditório subsequente ao decretamento preliminar da providência cautelar comum, esta, inicialmente, decretada, permanece, em estado latente, porque ainda se não perfectibilizou, dando lugar a uma decisão, duplamente provisória, podendo ser mantida, reduzida ou revogada, consoante as vicissitudes que se venham a verificar com os novos meios de prova oferecidos pelo requerido, mas que o tribunal, oportunamente, não tinha podido tomar em consideração.

II – A providência cautelar comum não especificada tem por base e fundamento o justificado e fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação a esse direito, o “periculum in mora”, e não a lesão grave do direito, o que só acontece, quando as circunstâncias se apresentem de modo a convencer que está iminente a lesão do direito, pressupondo que a ofensa se não acha ainda consumada, pois que a providência se destina a evitar o prejuízo e não a repará-lo, sob pena de não ter uma função útil.

III - Tendo já ocorrido a eleição dos corpos gerentes da requerida E…., para o mandato de três anos, que a decisão decretada, mediante a suspensão da convocatória, pretendia evitar, já se não mostra iminente a lesão do alegado direito dos requerentes, que se consumou, por se não tratar de uma situação em que a lesão já efectuada pode constituir fundamento de justo receio de outras, ocorrendo a inutilidade superveniente da lide, causa da extinção da instância.

                                                              *

DECISÃO:


Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar não provido o agravo e, em consequência, em confirmar a douta decisão recorrida.

                                                     *

Custas, a cargo dos agravantes.


[1] STJ, de 2-10-51, BMJ nº 27, 177.
[2] Baptista Lopes, Procedimentos Cautelares, 93 e 95; Moitinho de Almeida, Providências Cautelares não Especificadas, 18; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, II, 2000, 161; STJ, de 6 de Junho de 1991, BMJ nº 408, 445.
[3] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, I, 1980, 683.
[4] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, 23 a 26; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, I, 130 e 131; STJ, de 1-6-75, BMJ nº 148º, 211.
[5] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, I, 1980, 684.
[6] STJ, de 14-1-58, BMJ nº 73, 570.
[7] RP, de 19-10-82, CJ, Ano VII, T4, 246; RP, de 17-1-80, CJ, Ano V, T1, 13; RC, de 29-5-64, JR, 10º, 655; RP, de 22-10-69, JR, 15º, 843.
[8] STA, de 7-3-1996, BMJ nº 455, 276.