Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2989/08.2TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1051 D), 1080 CC, 27, 28, 58 Nº1, 59 DO NRAU ( LEI Nº6/2006 DE 27/2)
Sumário: I - Uma vez que o arrendamento objecto dos autos, a existir, subsistia à data da entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano e era anterior à entrada em vigor do decreto-lei nº 257/95, de 30 de Setembro, o novo regime do arrendamento urbano é-lhe aplicável, ex vi artigos 27º, 28º, 26º e 59º, nº 1, todos do Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.

II - O nº 1, do artigo 58º, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, não tem natureza imperativa.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

A 29 de Julho de 2008, nos Juízos Cíveis de Coimbra, A (…) instaurou acção declarativa, contra V(…) pedindo que o réu seja condenado a reconhecer o autor como legítimo arrendatário do prédio destinado a habitação e comércio, sito na Estrada (…), freguesia de (…), ...., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo .... e a abster-se de afirmar publicamente que o autor não é legítimo arrendatário de tal prédio e que não lhe assiste o direito de trespassar o estabelecimento comercial que funciona no arrendado.

Em síntese, o autor alega que, em 13 de Dezembro de 2005, adquiriu por proposta em carta fechada, no âmbito da acção executiva nº 2291/03.6TBCBR, o estabelecimento comercial instalado no prédio destinado a habitação e comércio, sito na (…) , freguesia de (…), ...., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...., de que o réu é dono, incluindo-se no referido estabelecimento comercial o direito ao arrendamento do local onde está instalado o estabelecimento comercial, direito que data de 17 de Março de 1976. Alega ainda que em 26 de Junho de 2006, celebrou um contrato de subarrendamento do citado imóvel, tendo então o réu autorizado tal subarrendamento e reconhecido o autor como seu arrendatário. Não obstante, o réu recusa-se a receber do autor as rendas mensais, as quais por isso têm vindo a ser depositadas à sua consignação e à ordem do Tribunal Judicial de Coimbra e, face à intenção do autor de trespassar o bem que adquiriu, o réu não reconhece ao autor o direito ao arrendamento e trespasse do mesmo, divulgando publicamente a sua posição e afastando os interessados na transacção.

O réu foi citado por carta registada com aviso de recepção, com as legais advertências.

Na sequência da citação, o réu ofereceu contestação em que impugnou alguns dos factos articulados pelo autor e alegou que por sentença já transitada em julgado foi decretado o despejo do arrendado da sociedade titular do estabelecimento comercial adquirido pelo autor e que, a 01 de Setembro de 2005, deu de arrendamento o mesmo locado à sociedade (…) Lda., a qual manteve o arrendado até ao início do ano de 2007, data em que cedeu a sua posição contratual a (…), tendo este passado a pagar a renda ao réu. Mais alegou que a partir de Novembro de 2007, sem motivo aparente, (…)informou o réu que passaria a pagar a renda ao autor, facto que levou o réu a interpelá-lo para lhe pagar as rendas, diligências que foram infrutíferas, o que levou o réu a aceitar entrar em conversações com o autor no sentido do litígio ser solucionado, sem no entanto reconhecer o autor como seu arrendatário. O réu conclui a sua contestação pugnando pela total improcedência da acção.

O autor respondeu à contestação alegando que a acção de despejo a que o réu alude na sua contestação constituiu uma tentativa de enganar e prejudicar o autor, que o arrendamento alegadamente celebrado a 01 de Setembro de 2005 nunca existiu nem existe e que o réu reconheceu e autorizou por escrito que o autor subarrendasse o estabelecimento comercial a (…), tendo-o anteriormente reconhecido como legítimo arrendatário.

As partes foram notificadas para procederem à junção aos autos de variada documentação.

Após o oferecimento da documentação solicitada às partes, proferiu-se despacho saneador tabelar e procedeu-se à condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, convidando-se o autor a oferecer prova documental de alguns dos factos por si alegados.

 As partes ofereceram as suas provas, requerendo ambas a gravação da audiência final.

Na sequência de requerimento do autor, foi deferida a rectificação de lapsos de escrita na factualidade assente e na base instrutória, sendo no mesmo acto admitidos os meios de prova oferecidos pelas partes, deferida a gravação da audiência e designada audiência de discussão e julgamento para 02 de Julho de 2009, pelas 14 horas, diligência que veio a ser transferida para 09 de Setembro de 2009, pelas 14 horas, em virtude de impedimento da Sra. Mandatária do réu.

A 02 de Setembro de 2009, (…) veio requerer a sua habilitação como único sucessor de A (…), seu pai e autor nestes autos, falecido a 06 de Agosto de 2009, no estado de viúvo, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.

Face à comprovação do óbito do autor, ordenou-se a suspensão da instância, deu-se sem efeito a audiência de discussão e julgamento designada e determinou-se a notificação do réu para contestar a habilitação de herdeiros requerida por (…)

O réu contestou o incidente de habilitação de herdeiros, pugnando pela ilegitimidade do requerente do incidente, invocando em abono da sua pretensão o disposto no nº 2 do artigo 26º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro e a circunstância do requerente não explorar o estabelecimento comercial que funciona no arrendado, pugnando pela improcedência do incidente de habilitação e pela extinção da instância da acção por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.

O autor respondeu à contestação do incidente de habilitação, alegando que o réu autorizou o autor a arrendar a parte do locado onde funciona um estabelecimento comercial à sociedade (…), Lda., ficando excluído o primeiro andar, destinado a habitação, que o autor reservou para si, que não fora essa autorização, o autor teria passado a explorar directamente o estabelecimento comercial, que na altura em que o réu prestou essa autorização as partes tiveram também presente o disposto no artigo 58º da NRAU, consignando-se por isso na autorização que “na eventualidade de o Sr. (.....) vir a falecer, antes que decorram os três anos estabelecidos no nº 1 do art. 58º do NRAU, tal arrendamento transmitir-se-á imediata e automaticamente para seu filho (…), nas mesmas condições”, renunciando assim expressamente ao estabelecido no artigo 58º da NRAU, concluindo pela total improcedência da oposição ao incidente de habilitação de herdeiros.

A 22 de Novembro de 2009 foi proferida decisão que julgou improcedente o incidente de habilitação de herdeiros deduzido por (…) e declarou-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

Inconformado com tal decisão, a 04 de Janeiro de 2010, (…) veio interpor recurso de apelação contra a mesma concluindo as suas alegações nos seguintes termos:


A sentença recorrida viola, entre outras normas legais:


            a) Art. 58º NRAU;

            b) Art. 405º Código Civil;

            c) Art. 61º e 62º Constituição da República Portuguesa.



Consequentemente, deverá a mesma ser revogada a substituída por outra que considere o acordo celebrado pelas partes válido e eficaz, atendendo ao que a seguir se refere:

a) (…), aqui recorrente, é legítimo sucessor e como tal sucede na titularidade das relações jurídicas patrimoniais de A (…), seu falecido pai.

b) o Art. 58 NRAU não deve ser interpretado, nem aplicado como o fez o Tribunal de que se recorre, já que tal norma diverge dos regimes consagrados nos Arts. 1051, nº 1, alínea d), 1113º e outros do Código Civil.

Considerando os diversos regimes, o espírito do legislador não foi de determinar a caducidade do contrato de arrendamento. Segundo cremos, o legislador não quis tratar de forma desigual situações semelhantes, nem deixar de acautelar situações juridicamente relevantes que sempre foram tuteladas pela Anterior Regime do Arrendamento Urbano, designadamente, no Art. 112º RAU.



É de elementar justiça aceitar como válido o acordo livremente negociado e celebrado pelos contraentes, considerando-se que o mesmo se sobrepõe à letra e espírito do art. 58º NRAU.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            O recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.

            Colhidos os vistos legais e não se verificando quaisquer circunstâncias que obstem ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre agora decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigo 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

            2.1 Determinação da lei substantiva aplicável à transmissão por morte do direito ao arrendamento de que o autor se arrogava a titularidade;

            2.2 Caducidade do direito ao arrendamento de que o autor se arrogava a titularidade;

            2.3 Compatibilidade constitucional da interpretação de que o disposto no artigo 58º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro tem carácter imperativo com o princípio da liberdade contratual e da iniciativa privada, com a garantia da transmissão por morte da propriedade privada e com o princípio da igualdade.

            3. Fundamentos de facto implícitos na decisão sob censura[1]


3.1

Através de contrato celebrado em 17 de Março de 1976, o prédio destinado a habitação e comércio, sito na (…), (…), freguesia de (…), ...., de que é dono V (…), foi dado de arrendamento à sociedade “(…) Lda.” que posteriormente se transformou na sociedade “(…), Lda.”

3.2

Com data de 27 de Junho de 2006, A (…), como primeiro outorgante e (…), intitulando-se sócio e gerente da sociedade (…) Lda., como segunda outorgante, subscreveram um documento escrito intitulado “Contrato de Sub-Arrendamento e de Promessa de Trespasse sujeita a Condição Resolutiva” no qual ficou exarado o seguinte:

Considerando que:

a) O primeiro Outorgante intentou uma (…), Lda., execução que correu termos sob o nº 2291/03.6 TBCBR-B, da Vara de Competência Mista – 1ª Secção, do Tribunal da Comarca de Coimbra;

b) No âmbito da dita execução foi penhorado em 03/12/2004 o estabelecimento de restauração, sito na (…), (…), inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...., da freguesia de (…), e composto de rés-do-chão, 1º andar e logradouro, que pertencia à sociedade (…) Lda., incluindo o direito ao arrendamento, o qual foi vendido ao primeiro Outorgante mediante propostas em carta fechada a 13/12/2005

c) Todavia, V (…), na qualidade de senhorio do dito prédio, dolosamente, havia intentado em 05/05/2005 uma acção de despejo contra a (…) Lda., por alegada falta de pagamento de rendas, acção que, por não contestada, foi julgada procedente por sentença de 15/06/2005 (Proc. 1519/05 – 5ª Juízo Cível)

d) Na sequência do trânsito em julgado da acção de despejo, foi então outorgado um novo contrato de arrendamento com a sociedade segunda Outorgante

e) A sociedade segunda Outorgante foi posteriormente adquirida pelo seu actual proprietário em 29 de Dezembro de 2005 a (…), sociedade que foi transaccionada como sendo titular de um contrato de arrendamento válido de um prédio destinado a restauração e habitação, sito na (…), inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...., da freguesia de (…), e composto de rés-do-chão, 1º andar e logradouro

f) Contudo, na data da celebração do contrato de cessação de cota da sociedade segunda outorgante, foi intencionalmente ocultado ao seu actual proprietário que havia sido já vendido ao primeiro Outorgante em 13/12/2005 o bem identificado em b)

g) No âmbito da execução o estabelecimento que laborava no prédio identificado na alínea b) foi entregue ao primeiro Outorgante em 27/04/2006, por ordem do Tribunal;

h) O segundo Outorgante havia entretanto montado e desenvolvido um estabelecimento de restauração no locado supra mencionado, estabelecimento que girava com o nome da segunda Outorgante e que foi então desapossada do estabelecimento que explorava, estando a sofrer prejuízos gravosos desde então;

i) O primeiro e segundo Outorgantes entendem que a acção de despejo intentada pelo Senhorio contra (…), Lda., por alegada falta de pagamento de rendas, e a outorga de novo contrato de arrendamento com a (…) Lda. foi um meio encontrado pelos devedores para obstar à venda do estabelecimento com o direito ao arrendamento e que permitiu mesmo a sua venda posteriormente ao segundo Outorgante

j) Tanto o primeiro como o segundo Outorgantes estão conscientes da ilegalidade da acção de despejo enunciada em c), pois que, no dia 26 de Junho de 2006, quando foi solicitado, e conseguido, o consentimento assinado pelo Senhorio do referido prédio para autorizar o sub-arrendamento ou sub-locação por parte do primeiro Outorgante ao segundo Outorgante da parte do dito prédio urbano destinada a comércio e o logradouro, do qual é proprietário, o Sr. (…) declarou perante o filho do primeiro Outorgante, (…) (como o havia já feito em três ocasiões anteriores) e perante o segundo Outorgante, tendo ainda sido ouvido pelo primeiro Outorgante e mais três testemunhas, que:

1. Na realidade nunca houve atraso no pagamento das rendas pela (…) Lda.

2. Lhe foi solicitado pelo Sr. (…), mandatário (…)Lda., e pelo sócio gerente desta, (…), procuração para, quando estes bem entendessem, movessem então a dita acção de despejo contra a (…)., por forma a impedir a penhora efectiva da sociedade detentora do contrato de arrendamento

3. Desconhecia que essa acção de despejo algum dia tivesse sido intentada em seu nome

k) Ambos os Outorgantes estão prejudicados com a situação exposta e, sendo pessoas sérias, dignas e honestas, pretendem desde já ver minimizados os prejuízos humanos e materiais crescentes, que decorrem da situação exposta

l) Nesse sentido, o primeiro e segunda Outorgantes comprometem-se a agir em comunhão de esforços para apurar toda a verdade dos factos, por forma a punir pela via judicial os responsáveis pelos danos a ambos causados decorrentes das situações expostas em e), f), h) e j)

m) Concomitantemente pretendem arranjar uma solução que, embora transitória, permita a ambos minimizar os prejuízos materiais e humanos atrás expostos.

Assim, as partes celebram entre si o presente contrato de sub-arrendamento ou de sub-locação e de promessa de trespasse que subordinam às cláusulas seguintes:



O primeiro Outorgante sub-arrenda ou sub-loca à segunda Outorgante a parte do prédio que se destina a restauração bem como o logradouro, sito na (…) inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...., da freguesia (…), autorizando contudo a utilização pela segunda Outorgante do 1º andar destinado a habitação, gratuitamente e por mero favor.


A renda fixada para o sub-arrendamento ou sub-locação é de 2 000,00 euros (dois mil euros) mensais, pagando o segundo Outorgante ao primeiro Outorgante na data da celebração do presente contrato o correspondente a 10 (dez) meses de sub-arrendamento ou sub-locação, iniciando-se este em Julho de 2006 e terminando em Abril de 2007, inclusivé, o que corresponde a um total de 20 000,00 euros (vinte mil euros).


O presente contrato é válido por 10 (dez meses), considerando-se automaticamente renovado por iguais periodos.


Em caso de resoluçao do contrato o primeiro Outorgante, fica obrigado a restituir ao segundo Outorgante os montantes das rendas pagas como adiantamento e ainda não vencidas.


Após Abril de 2007, a renda paga pelo sub-arrendamento ou sub-locação será paga mensalmente, durante o mês anterior ao que respeita, salvo acordo entre as partes.


Caso a renda mensal paga ao Senhorio pelo primeiro Outorgante exceda os 500,00 euros (quinhentos euros) mensais, devido à sua actualização anual legal ou à entrada em vigor do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), o montante pago pelo sub-arrendamento ou sub-locação será renegociado entre as partes, sendo que esse montante não poderá ser inferior a 1 700,00 euros (mil e setecentos euros) acrescido do montante correspondente à renda actualizada paga na altura pelo primeiro Outorgante ao Senhorio.


Após a decisão judicial e esgotados os recursos das sentenças por parte dos intervenientes nos processos da(…) (…)e venda desta ao primeiro Outorgante, com a outorga do novo contrato de arrendamento à (…) Lda. e com a venda posterior desta ao segundo Outorgante, o presente contrato:

1. Resolver-se-á de imediato no caso da decisão judicial definitiva ser desfavorável ao primeiro Outorgante, o qual se compromete a acatá-la e entregar o bem a quem de direito.

2. Consubstanciará um trespasse no caso da decisão judicial definitiva ser favorável ao primeiro Outorgante, com entrega nessa data do dito estabelecimento, que se regerá pela cláusula seguinte:


Cláusula única

O preço do trespasse é fixado em 300 000,00 euros (trezentos mil euros) a pagar pelo segundo Outorgante ao primeiro Outorgante, e inclui o direito ao arrendamento e ainda o conjunto dos bens móveis que constituiram o recheio (…) Lda., nas seguintes condições:

a) a quantia de 225 000,00 euros (duzentos e vinte cinco mil euros), à qual serão deduzidos os montantes pagos pelo sub-arrendamento ou sub-locação até essa data vencidos, no prazo máximo de 30 (trinta) dias a contar do trânsito em julgado dos processos acima referidos.

b) A quantia de 75 000,00 euros (setenta e cinco mil euros) ou o montante que o segundo Outorgante receba de indemnização por parte do ou dos responsáveis pelos factos enunciados em e), f), h) e j), até um máximo de 75 000,00 (setenta e cinco mil euros) no caso dessa indemnização ser superior a este montante.

Por estarem de acordo, ambos os Outorgantes vão assinar livremente o presente contrato, depois de lido e aceite o seu conteúdo, comprometendo-se a cumpri-lo integralmente e de boa fé.


3.3

            (…) faleceu a 06 de Agosto de 2009, no estado de viúvo de (…)sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade e deixou um único filho, (…).

            4. Fundamentos de direito

            4.1 Determinação da lei substantiva aplicável à transmissão por morte do direito ao arrendamento de que o autor se arrogava a titularidade

            (…) intentou a presente acção declarativa contra (…)visando, em primeiro lugar, o reconhecimento de que é arrendatário do prédio destinado a habitação e comércio, sito na (…) – (…), freguesia de (…) – ...., inscrito na matriz sob o artigo ..... O direito de arrendamento de que o autor se arrogava a titularidade teria sido adquirido a 13 de Dezembro de 2005, por proposta em carta fechada, sendo um dos elementos do estabelecimento comercial que então adquiriu.

Na tese do autor esse direito ao arrendamento tinha como fonte um contrato celebrado a 17 de Março de 1976, negócio este cuja existência o réu não pôs em causa e que por isso integrou a alínea B dos factos assentes. Trata-se de um arrendamento para comércio.

            A 27 de Junho de 2006[2], entrou em vigor a Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, lei que aprovou um novo regime do arrendamento urbano.

            O artigo 27º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, dispõe que “as normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro.” O artigo 28º do mesmo regime prescreve que “aos contratos a que se refere o presente capítulo aplica-se, com as devidas adaptações, o previsto no artigo 26º.”

            Nos termos do nº 1 do artigo 26º do Novo Regime do Arrendamento Urbano que temos vindo a citar, “os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.”

As especificidades previstas nos números seguintes respeitam à transmissão por morte, à renovação dos contratos de duração limitada, à aplicação aos contratos sem duração limitada das regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada com algumas especificidades aí previstas.

            Finalmente, o nº 1 do artigo 59º do Novo Regime do Arrendamento Urbano prescreve que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.”

            Estas normas transitórias correspondem, com algumas adaptações, ao disposto no artigo 12º, nº 2, do Código Civil, onde se prevê que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”

            A presente acção foi instaurada já após a entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.

Uma vez que o arrendamento objecto dos autos, na perspectiva do autor, subsiste à data da entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano e é anterior à entrada em vigor do decreto-lei nº 257/95, de 30 de Setembro, há que concluir que o novo regime é aplicável ao caso dos autos, ex vi artigos 27º, 28º, 26º e 59º, nº 1, todos do Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.

            Porém, esta aplicação do novo regime não significa uma aplicação retroactiva do referido regime mas antes e apenas que se aplica aos factos ocorridos após a sua entrada em vigor.

            A morte do autor ocorreu a 06 de Agosto de 2009, em plena vigência do Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, pelo que as consequências jurídicas desse fenómeno na relação jurídica de arrendamento de que o autor se afirmava titular são determinadas pelas previsões desta lei.

            4.2 Caducidade do direito ao arrendamento de que o autor se arrogava a titularidade

            Nos termos do disposto no artigo 26º, nº 2, da lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, aplicável ao caso dos autos ex vi artigos 27º e 28º da mesma lei, à transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57º e 58º.

            No caso em apreço, uma vez que a finalidade do arrendamento de que o autor se arrogava a titularidade era não habitacional, é aplicável o regime previsto no artigo 58º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.

            O artigo 58º, nº 1, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, prescreve que “o arrendamento para fins não habitacionais termina com a morte do arrendatário, salvo existindo sucessor que, há mais de três anos, explore, em comum com o arrendatário primitivo, estabelecimento a funcionar no local.”

            “O sucessor com direito à transmissão comunica ao senhorio, nos três meses posteriores ao decesso, a vontade de continuar a exploração” (artigo 58º, nº 2, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro).

            No caso dos autos, à luz do nº 1, do citado artigo 58º e tendo em conta que nem o autor, nem o recorrente exploravam qualquer estabelecimento comercial instalado no arrendado, conclui-se, necessariamente, que o direito ao arrendamento de que o autor se arrogava a titularidade se extinguiu por caducidade. Extinto por caducidade o direito ao arrendamento que o autor pretendia fazer valer em face do réu, não existe qualquer relação jurídica a transmitir ao sucessor do autor, confirmando-se, nesta perspectiva, a decisão de improcedência do incidente de habilitação instaurado pelo recorrente.

            Porém, o recorrente alega a existência de um acordo celebrado entre o autor e o réu que afasta o regime do referido artigo 58º, nº 1 e, além disso, suscita a desconformidade constitucional do regime transitório previsto para a transmissão por morte do arrendamento não habitacional com o princípio da liberdade contratual e da iniciativa privada, com a garantia da transmissão por morte da propriedade privada e com o princípio da igualdade.

            O alegado acordo ainda se acha controvertido. Não obstante, o texto invocado pelo autor suscita algumas dúvidas sobre o seu exacto alcance. De facto, quando se afirma “que, na eventualidade de o Sr. (…) vier a falecer, antes que decorram os 3 anos estabelecidos no nº 1 do Art. 58º NRAU, tal arrendamento transmitir-se-á imediata e automaticamente para o seu filho Dr. (…)”, coloca-se a questão de saber se tal previsão apenas visou permitir a transmissão do arrendamento por morte, mesmo que o autor não mantivesse a exploração de estabelecimento comercial instalado no arrendado há três anos, aquando do seu óbito ou se visou permitir essa transmissão independentemente do tempo e da exploração de estabelecimento comercial instalado no arrendado.

            No entanto, uma vez que o alegado acordo subsiste controvertido é prematura a sua interpretação sem que se esteja de posse de todos os elementos necessários para tanto.

            Contudo, antes de prosseguir na análise da conformidade constitucional do artigo 58º, nº 1, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, importa ainda determinar se tal normativo tem natureza imperativa, conforme se entendeu na decisão sob censura, ou se não tem essa natureza, podendo ser afastado por convenção das partes, caso em que a decisão do incidente de habilitação, sem produção de prova, terá sido prematura.

            Na decisão sob censura abonou-se a conclusão da imperatividade do citado artigo 58º, nº 1, com o disposto no artigo 1080º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.

            O citado artigo 1080º  do Código Civil prescreve que “o disposto nesta subsecção tem natureza imperativa, salvo disposição legal em contrário.” A subsecção em causa – subsecção IV, da secção VII, do título II, do livro II, do Código Civil – abarca os artigos 1079º a 1087º, do Código Civil e apenas estes. Atentando nestes artigos, constata-se que apenas o artigo 1079º alude à caducidade como fundamento de cessação do arrendamento urbano, inexistindo nesta subsecção qualquer regulamentação dos termos em que opera essa causa de cessação do contrato de arrendamento urbano.

            Na verdade, a caducidade enquanto causa de cessação do contrato de arrendamento urbano, apenas vem referida no artigo 1089º do Código Civil, onde se regula a caducidade do subarrendamento, no artigo 1106º do Código Civil, onde se provê sobre a não caducidade do arrendamento para habitação e no artigo 1113º do Código Civil, onde se regula a não caducidade do arrendamento para fins não habitacionais. Em nenhuma destas previsões legais é referido que têm natureza imperativa.

            Por outro lado, exceptuando o âmbito de aplicação próprio das previsões específicas antes citadas, nada obsta à aplicação ao arrendamento urbano das normas gerais da locação referentes à caducidade do contrato de locação (veja-se o artigo 1091º, nº 1, alínea b), do Código Civil que pressupõe, necessariamente, a aplicação das normas gerais da locação, no segmento referente à cessação do contrato de locação com fundamento em caducidade).

            Ora, de acordo com o disposto na alínea d), do artigo 1051º do Código Civil o contrato de locação caduca por morte do locatário ou, tratando-se de pessoa colectiva, pela extinção desta, salvo convenção em contrário     (sublinhado nosso). Por força desta previsão legal, admite-se que no caso de caducidade do contrato de locação com fundamento em morte do locatário, as partes pactuem, por escrito, regime diverso.

            Salvo melhor opinião, a provar-se a celebração do acordo escrito com o alcance invocado pelo recorrente, existirá convenção escrita contrária à previsão de caducidade constante do artigo 58º, nº 1, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, acordo que será válido já que inexiste norma a atribuir carácter imperativo a este último artigo e porque tem guarida legal no regime geral da locação não arredado pelas disposições especiais do arrendamento urbano (artigo 1051º, alínea d), do Código Civil).

            O que antecede permite-nos concluir que o pressuposto em que assentou a decisão sob censura – a imperatividade do artigo 58º, nº 1, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro – não se verifica na interpretação que fazemos dos normativos pertinentes, pelo que foi prematura a decisão do incidente de habilitação sem a produção da necessária prova, nomeadamente com o oferecimento pelo recorrente do original do documento alegadamente subscrito pelo réu com data de 26 de Junho de 2006, ficando prejudicado o conhecimento das questões da conformidade constitucional do artigo 58º, nº 1, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, enunciadas para serem conhecidas de seguida.

            Pelo exposto, procede o recurso de apelação interposto por (…)devendo revogar-se a decisão sob censura de improcedência do incidente de habilitação e de extinção da instância da acção por inutilidade superveniente da lide, a qual se manterá suspensa até à decisão final do incidente de habilitação (artigo 284º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil), prosseguindo o incidente de habilitação com a produção de prova oferecida e requerida pelas partes e subsequente decisão final do incidente, mantendo-se suspensa a instância na acção.

            5. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso de apelação interposto nestes autos por (…) e, em consequência, em revogar a decisão proferida a 22 de Novembro de 2009, determinando-se o prosseguimento do incidente de habilitação com a produção de prova oferecida e requerida pelas partes e a subsequente decisão final do incidente, mantendo-se suspensa a instância na acção; custas do recurso a cargo do recorrido por ter decaído.


[1] Ao invés do que é expressamente sustentado pelo recorrente nas suas alegações, entende-se que não se pode ainda dar como assente que o autor era arrendatário do prédio destinado a habitação e comércio, sito na (…) (…), freguesia (…), ...., porque se trata de matéria ainda controvertida (vejam-se os artigos 1º e 2º da base instrutória), nem tão-pouco que por acordo/autorização celebrado no dia 26 de Junho de 2006, entre o falecido A(…), proprietário/senhorio do imóvel arrendado, acima identificado foi acordado o seguinte:
a) O identificado proprietário/senhorio autorizava o arrendatário (…) a subarrendar ou sublocar, pelo preço e condições que entendesse à (…) Lda., com sede na (…), representada por (…), o R/C e logradouro daquele prédio, onde este último iria exercer a sua actividade de restauração.
b) Ficou excluído de tal acordo/autorização o subarrendamento do 1º andar, que se destinava a habitação, e que o falecido arrendatário reservou para si.
c) Do referido acordo/autorização consta ainda que:
«Mais declara que, na eventualidade de o Sr. (…) vier a falecer, antes que decorram os 3 anos estabelecidos no nº 1 do Art. 58º NRAU, tal arrendamento transmitir-se-á imediata e automaticamente para o seu filho Dr. (…)».
                A razão por que se entende que este último segmento factual não pode ser considerado como assente prende-se com a circunstância de apenas ter sido junta aos autos cópia do documento onde foram alegadamente exaradas as aludidas declarações, tendo o réu declarado que desconhecia a origem, a exactidão ou inexactidão das reproduções apresentadas pelo então autor (veja-se folhas 86). Neste circunstancialismo, face ao disposto no artigo 368º do Código Civil, a impugnação do réu é operante e cumpria ao autor o oferecimento do original do documento.
[2] Nos termos do disposto no artigo 65º, nº 2, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, a generalidade das disposições da Lei nº 6/2006 entram em vigor 120 dias após a publicação. Ora, não se contando o dia da publicação (artigos 279º, alínea b), do Código Civil e 2º, nº 1, da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro), o centésimo vigésimo dia após a publicação da Lei nº 6/2006 é o dia 27 de Junho de 2006. Não cremos que o sentido do nº 2, do artigo 65º da Lei nº 6/2006 seja o de estabelecer em entrada em vigor apenas quando sejam decorridos cento e vinte dias após a sua publicação, antes nos parecendo que apenas se pretendeu fixar uma vacatio legis maior do que a supletivamente prevista (artigo 2º, nº 2, da Lei nº Lei nº 74/98, de 11 de Novembro), mas a obedecer às mesmas regras de contagem, isto é, com o sentido do último dia da vacatio legis fixada ser o da entrada em vigor da lei. No sentido por nós propugnado vejam-se, Arrendamento 2006, Novo Regime do Arrendamento Urbano, Almedina 2006, Fernando Augusto Cunha de Sá e Leonor Coutinho, página 117. No sentido de que a entrada em vigor a que refere o nº 2, do artigo 65º, da Lei nº 6/2006 apenas ocorreu a 28 de Junho de 2006 vejam-se, entre outros, Manual de Arrendamento Urbano, Volume I, 4ª edição actualizada, Almedina 2007, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, página 172 e Arrendamento Urbano, Quid Juris 2006, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, páginas 8 e 9.