Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2926/06.9TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: CRIME DE ABUSO SEXUAL DE MENORES
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO PENA
Data do Acordão: 11/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 172º E 50º DO CP
Sumário: 1. Nos crimes de abuso sexual de menores é na prevenção geral que deve colocar o acento tónico.
2. Para se concluir pela existência de um juízo de prognose favorável é insuficiente o arguido ser primário, viver com a mulher e se encontrar a trabalhar.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal, para além do mais, condenar o arguido J...[ J..., casado, servente, nascido a 10/3/1970, filho de J... Louro e de Maria de Lurdes Pereira Cortez, natural de Vilar de Besteiros, Tondela, residente na Rua do Adjunto,
n.º 70, Vila Chã de Sá, Viseu], como autor de dois crimes de abuso sexual de crianças agravados, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1[ No acórdão consta o nº 2 mas, como decorre da simples leitura da fundamentação, é mero lapso] e 177.º, n.º 1, a) do Código Penal (na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9) nas penas parcelares de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão no que respeita ao crime em que é ofendida a menor H... e na pena de um (1) ano e dez (10) meses de prisão relativamente ao crime em que é ofendido o menor D... e em cúmulo, na pena única de três (3) anos e dois (2) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e acompanhada por regime de prova.

Inconformado com o decidido, vem o Ministério Público impugná-lo.
Apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

“-Assente que:
O arguido cometeu, em autoria material e concurso efectivo, dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, previstos e punidos pelos artigos 172°/1 e 177°/1-a) do Código Penal (na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n. ° 59/2007, de 4/9), pelo que foi condenado, respectivamente, nas penas de 02 anos e 06 meses e 0 1 ano e 10 meses de prisão, com pena única de 03 anos e 02 meses de prisão.
-Apurado, pois, em concreto e em síntese, que:
No dia 12.06.2006, pela manhã, no interior da casa da família, o arguido J..., nascido a 10.03.1970, deitou a sua filha menor, de sete anos de idade, no sofá da sala, onde ela estava a ver televisão, e tirou-lhe as cuecas que ela trazia vestidas;
Após o que agarrou no seu pénis e encostou-o à vagina da menor, onde o manteve durante algum tempo.
Em data não concretamente apurada, situada entre 2004 e 2005, quando o seu filho menor, de 07/08 anos de idade, se encontrava a jogar futebol com os seus amigos, junto à casa da família, o arguido chamou-o;
Chegado o menor a casa, o arguido, que se encontrava na sala, aproximou-se dele e começou a baixar as calças que o filho trazia vestidas;
De seguida, o arguido começou a falar de raparigas com o seu filho e, enquanto passava as mãos nas pernas do menor e o apalpava, perguntou-lhe:
“Então já fodes com raparigas ou nunca fodeste nenhuma gaja?”;
Como o filho não respondeu, o arguido começou a mexer-lhe no pénis, friccionando-o, o que fez durante alguns minutos.
*
-Apurado ainda que:
O arguido não tem antecedentes criminais; Vive com a mulher, tem a 4ª Classe e trabalha.
*
-Mas comprovado também que:
Em consequência do comportamento do arguido, os menores foram separados e retirados do ambiente familiar, estando internados em instituições de acolhimento;
Foi de elevada intensidade o dolo (directo), evidenciando a matéria de facto que o arguido agiu em circunstâncias que facilitaram os contactos sexuais com os menores, seus filhos, sozinhos e indefesos em casa (onde atraiu o filho), do que se aproveitou;
O arguido não confessou “o contacto entre o seu pénis e a vagina da menor”, em que se traduziu a essência legal e ética do crime cometido sobre a sua filha;
Assim como — admitindo o crime cometido sobre o filho — referiu que “apenas” lhe friccionou o pénis, assim denotando não ter ainda assumido a imensa gravidade e a verdadeira correlação entre tais comportamentos e a inevitável e perene brecha que necessariamente se estabeleceu na relação de partilha emocional — mas com respeito da reserva individual — e de confiança protectora que os ofendidos esperavam do pai;
Não revelou atitudes de sincero arrependimento.
Mostram-se, pelo que fica exposto, injustas, imerecidas, desadequadas e ineficazes, porque aquém da satisfação das exigências mínimas de reprovação e de prevenção especial e geral, integrada esta pelo princípio da culpa;
E insusceptíveis de sustentar um juízo de prognose favorável quanto à recuperação do arguido para o respeito dos valores jurídico-penais:
-As penas de prisão aplicadas, que não deverão ser inferiores a 03 anos e 02 anos e 06 meses de prisão, respectivamente, para cada um dos crimes cometidos, e a 04 anos de prisão em cúmulo jurídico;
-A suspensão da execução da pena de prisão, ainda que sujeita a regime de prova.
*
- Violou a douta decisão recorrida o disposto nos arts. 71º e 50º/1 do Código Penal.
*
-Motivo por que deve o presente recurso ser julgado provido e procedente e, em consequência:
Alterada a decisão proferida, sendo substituída por outra que condene o arguido em conformidade e não determine a suspensão da execução da pena de prisão, que deverá ser executada.”

Não houve resposta.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido defendeu a manutenção do decidido.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).
Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questões a decidir: medida da pena e manutenção da suspensão da execução da pena

Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):
“Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
Os arguidos J... e A... são, respectivamente, pai e avô materno dos menores H... (nascida a 20/10/98) e D… (nascido a 8/4/97), os quais actualmente se encontram acolhidos no Internato … respectivamente.
Em 12 de Julho de 2006, da parte da manhã, a menor H... encontrava-se em casa, sita na Rua …, sentada no sofá com o pai a ver televisão.
A determinada altura, o arguido J... deitou a sua filha no sofá e tirou as cuecas que a menor trazia vestidas.
De seguida, o arguido agarrou no seu pénis e encostou-o à vagina da menor H... onde o manteve durante algum tempo.
No dia 24/7/2006 a menor veio a ser examinada nos Serviços de Urgência Pediátrica do Hospital de São Teotónio, nada lhe tendo sido observado.
Foi ainda sujeita a exame médico, realizado no Gabinete Médico-Legal de Viseu, no dia 22/9/2006, nada lhe tendo sido observado.
Em data não concretamente apurada, situada entre 2004 e 2005, quando o menor D... se encontrava a jogar futebol com os seus amigos junto à sua antiga residência em P…, o arguido J... chamou-o.
Quando chegou a casa, o arguido, que se encontrava na sala, aproximou-se do menor e começou a baixar as calças que este trazia vestidas.
De seguida, o arguido começou a falar de raparigas com o seu filho e, enquanto passava as mãos nas pernas do menor e o apalpava, perguntou-lhe “então já fodes com raparigas ou nunca fodeste nenhuma gaja?”.
Como o filho não respondeu, o arguido começou a mexer-lhe no pénis, friccionando-o, o que fez durante alguns minutos.
Em data não concretamente apurada o arguido A… foi encontrado num barracão a baixar as calças ao menor D....
No dia 11/10/2007, o menor foi sujeito a exame médico, realizado no Gabinete Médico-Legal de Viseu, tendo sido observadas lesões de “aspecto recente”.
O arguido J... tinha perfeita noção da idade dos seus filhos, circunstância de que se aproveitou.
Agiu sempre com o propósito de, dessa forma, satisfazer os seus instintos libidinosos bem sabendo que, ao actuar da forma descrita, não só afectava o livre desenvolvimento da personalidade daqueles na sua esfera sexual como a limitava na sua liberdade de autodeterminação sexual.
Em ambas as ocasiões agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O arguido J... vive com a esposa.
A esposa não trabalha.
O arguido trabalha na empresa “R…, S. A.”.
Aufere o vencimento mensal líquido de 550 euros.
Tem como habilitações escolares a 4ª classe.
Não tem antecedentes criminais.
O arguido A… é beneficiário do Rendimento Mínimo Garantido recebendo uma prestação mensal de 67,18 euros.
Vive sozinho em casa emprestada.
Tem como habilitações escolares a 4ª classe.
Não tem antecedentes criminais.”

Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição):

“Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da acusa, para além dos acima descritos ou que com eles se não compaginem, designadamente que:
- o arguido J... colocasse o seu pénis na vagina da menor H..., fazendo força com o mesmo;
- o arguido J... fizesse cócegas e abanasse o pénis do menor D..., continuando a apalpar-lhe as pernas, durante alguns minutos;
- em data não concretamente apurada, situada em 2005, durante as férias escolares da Páscoa, quando o D... se encontrava a brincar com os amigos junto à entrada de sua casa sita em F…, o arguido A... o chamasse e lhe dissesse para o acompanhar a um barracão onde o pai do menor guardava ferramentas;
- chegados ao dito barracão, e depois de ambos entrarem no mesmo, o arguido A... trancasse a porta, se aproximasse do neto e lhe perguntasse se tinha namorada, respondendo este que não;
- após, o arguido desapertasse as calças do D... e lhas descesse, bem com as cuecas que o menor tinha vestidas, e começasse de imediato a mexer-lhe com as mãos no pénis;
- só parasse de o fazer quando a mãe do menor (filha do arguido) começou a bater à porta do barracão e a chamar pelo filho, dizendo ao pai para abrir a porta.”

O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

“A) Factos provados:
A convicção do colectivo de Juízes que constituem este Tribunal quanto à matéria de facto provada assenta na apreciação, articulação e análise crítica dos vários elementos de prova, à luz dos critérios da experiência comum, quer os constantes dos autos discutidos em audiência quer as declarações prestadas pelos arguidos e os depoimentos prestados pelas testemunhas, com destaque para:
- as declarações prestadas pelo arguido J... na medida em que admitiu a prática dos factos que lhe foram imputados na acusação, nas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar, com excepção do contacto entre o seu pénis e a vagina da menor H..., assim como demonstrou ter perfeita noção da idade dos menores, sendo certo que se trata dos seus filhos;
- os depoimentos prestados pelas testemunhas M..., representante da Segurança Social na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de V…, Y…, Assistente Social no Internato V…, Z… e U…, padrinhos da menor H..., as quais relataram a essencialidade dos factos dados como provados relativamente à menor H..., designadamente o contacto entre o pénis do arguido J... e a vagina da menor, com base naquilo que lhes foi transmitido pela própria menor, sendo de referir que, tratando-se de depoimento indirecto, os seus depoimentos foram valorados na medida em que a fonte do depoimento, ou seja, a menor H..., foi chamada a depor perante o Tribunal, recusando-se, porém, a fazê-lo, ao abrigo do disposto no artigo 134.º, alínea a) do Código de Processo Penal;
- o exame dos documentos constantes dos autos, designadamente a cópia da ficha de urgência de fls. 38 a 39, a certidão do assento de nascimento do menor D… de fls. 238 a 239 e a certidão do assento de nascimento da menor H... de fls. 402 a 403;
- a prova pericial, concretamente os relatórios das perícias de natureza sexual em direito penal de fls. 63 a 65 e 337 a 339;
No que respeita às condições pessoais e económicas dos arguidos tiveram-se em consideração as suas declarações conjugadas com o depoimento prestado pela testemunha G… relativamente ao arguido J..., a qual demonstrou conhecimento directo dos factos, por se tratar de pessoa das relações pessoais do arguido, não infirmado por qualquer forma.
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos considerou-se o resultado da pesquisa dos respectivos registos criminais junto das bases de dados (fls. 369 e 370).
B) Factos não provados:
A convicção do colectivo de Juízes que constituem este Tribunal quanto aos factos não provados resulta de uma absoluta falta de prova em face da conjugação e análise da prova produzida dado que o arguido A… negou a prática dos factos que lhe foram imputados na acusação e a testemunha I… recusou-se validamente a prestar depoimento por se tratar da filha do arguido.
Por outro lado, sendo certo que, como tem vindo a ser decidido, as declarações de co-arguido constituem prova permitida a ser apreciada livremente pelo Tribunal e a despeito de vir sendo anotada a circunspecção com que devem ser valorados esses contributos probatórios, pois, em regra, não aparecem com predicados de completa isenção, objectividade e distanciamento, dado o interesse que normalmente existirá na versão apresentada, refira-se que as declarações prestadas pelo co-arguido J... a este respeito – declarou que a mulher (testemunha I…) lhe disse que foi dar com o avô (arguido A…) a baixar as calças do menino (menor D...) no barracão – mostram-se insuficientes para se poder concluir pela prática dos factos, sendo certo que o conhecimento probatório do arguido J... não se encontra corroborado por outros meios de prova pois as testemunhas inquiridas não demonstraram qualquer conhecimento acerca de tais factos (De qualquer modo, cumpre referir que a exigência da corroboração não significa que tenha de haver prova independente do que o co-arguido relata, pois então o seu depoimento seria desnecessário. Exige-se, no entanto, alguma prova adicional tornando provável que a história do co-arguido é verdadeira e que se torna seguro decidir baseado no seu depoimento).”

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O Ministério Público interpôs o presente recurso porquanto discorda do quantum das penas parcelares e consequentemente da pena única e também porque discorda da opção do tribunal a quo de suspender a execução da pena aplicada ao arguido J....
No entanto, antes de entrarmos na apreciação do recurso, teremos que dizer que o mesmo não incide sobre a matéria de facto e por isso, está este tribunal vinculado à matéria de facto constante do acórdão, tanto mais que nele não se vislumbra qualquer dos vícios do artº 410º, nº 2 do Código de Processo Penal[ Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem ].
Assim sendo, tudo o que a este respeito conste do texto recursivo e não conste do acórdão, não será tomado em consideração.
Apreciando:


Medida da pena


As penas parcelares a aplicar ao arguido serão as que resultarem da concretização dos critérios consignados no artº 71º do Código Penal, ou seja, num primeiro momento apura-se a moldura abstracta da pena e num segundo momento a medida concreta da mesma.
Assim, no caso “sub judice” e dentro da moldura penal abstracta de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses — para ambos os crimes —, há que atender à culpa do arguido e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuserem a favor ou contra ele.
Nesta conformidade, há que ter em consideração que a culpa (enquanto censura dirigida ao agente em virtude da sua atitude desvaliosa e avaliada na dupla vertente de culpa pelo facto criminoso e de culpa pela personalidade) para além de constituir o suporte axiológico-normativo da pena, estabelece o limite máximo da pena concreta dado que sem ela não há pena e que esta não pode ultrapassar a sua medida (retribuição justa).
Por outro lado e ainda numa primeira linha, relevam as necessidades de prevenção (com um fim preventivo geral, ligado à contenção da criminalidade e defesa da sociedade — e cuja justificação assenta na ideia de sociedade considerada como o sujeito activo que sente e padece o conflito e que viu violado o seu sentimento de segurança com a violação da norma, tendo, portanto, direito a participar e ser levada em conta na solução do conflito — e com um fim preventivo especial, ligado à reinserção social do agente).
Assim e em termos de prevenção geral, a medida da pena é dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos concretos pelo que o limite inferior da mesma resultará de considerações ligadas à prevenção geral positiva ou reintegração, contraposta à prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente.
Para além de constituir um elemento dissuasor da prática de novos crimes por parte de terceiros, a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas.
No que toca à prevenção especial há a ponderar a vertente necessidade de ressocialização do arguido e a vertente necessidade de advertência individual para que não volte a delinquir (devendo ser especialmente considerado um factor que, de certo modo, também toca a culpa: a susceptibilidade de o agente ser influenciado pela pena).
Como bem explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2000 (processo n.º 1193/99), “se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que — dentro, claro está, da moldura legal —, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente: entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social” e também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2000 (processo n.º 2803/00-5ª), onde se conclui que “nos art.ºs 71. °, n.ºs 1 e 2 e 40.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, se plasma que (…) o modelo de determinação da medida a pena é aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos — dentro do que é consentido pela culpa — e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.”
Ponderados estes limites, deve ainda o tribunal atender e a quaisquer outras circunstâncias que não fazendo parte do tipo (para que não haja violação do princípio ne bis in idem), deponham contra ou a favor do agente (artº 71º, nº 2, do Código Penal).
Assim e considerando o grau de culpa (intenso), as exigências de prevenção geral (elevadíssimas, dado o grande número de casos idênticos que todos os dias ocorrem e dada a notória necessidade de manter a confiança da comunidade na norma) e as exigências de prevenção especial (normais, até porque há apenas um acto ilícito praticada com cada um dos menores) e considerando ainda que o grau de ilicitude do facto se mostra especialmente elevado no caso da menor (o acto praticado está já muito próximo da cópula) e, menos proeminente no caso do menor, que o modo de execução é o normal em casos idênticos, que as consequências nos menores não foram concretamente apuradas, mas que actos como os que foram praticados pelo arguido trazem sempre consequências mais ou menos nefastas ao normal desenvolvimento da sexualidade das vítimas, que a intensidade do dolo é elevada (estamos perante dolo específico em ambas as ilicitudes) e a normal situação sócio-económica do arguido, temos que concluir que as penas parcelares aplicadas pela 1ª instância se devem manter: a pena correspondente ao crime praticado sobre o filho mostra-se adequada e a correspondente ao crime praticado sobre a filha, ainda que algo benévola, encontra-se dentro dos limites aceitáveis.
No que respeita à pena única apenas há a referir que a mesma não é posta em causa perante as penas parcelares aplicadas e que, perante o acima decidido, se deve manter a pena fixada pelo tribunal a quo uma vez que o seu quantum se mostra conforme aos critérios consignados no artº 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

Suspensão da execução da pena aplicada


O tribunal a quo fundamentou assim a aplicação da pena de substituição:
“A pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos deve ser suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.º do Código Penal, sempre que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como é sabido, não são considerações de culpa que influem na questão da suspensão da execução da pena mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em questão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.
A suspensão da pena é uma medida com um cariz pedagógico e reeducativo, visando proporcionar ao delinquente condições ao prosseguimento de uma vida à margem da criminalidade e exigir-lhe que passe a pautar o seu comportamento pelos padrões ético-sociais dominantes.
Subjacente à aplicação desta medida existe um juízo favorável a que a socialização do arguido, em liberdade, possa ser alcançada. Mas este juízo deve assentar em factos que, com suficiente probabilidade, indiciem que o arguido assumirá o tal comportamento adequado ao não cometimento de novos ilícitos.
Para a formulação deste juízo, deverá o Tribunal atender em especial às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto, prognose esta reportada ao momento da decisão e não ao da prática do crime.
Por isso, crimes posteriores àquele que constitui o objecto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose.
A conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição assenta, obviamente, no pressuposto de que, por um lado, o que está em causa não é qualquer «certeza» mas, tão-só, a «esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda» e de que, por outro, «o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco - digamos: fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade».
Havendo razões sérias para duvidar da conformação do comportamento do agente a não delinquir ou se, não obstante o juízo de prognose ser favorável, as necessidades de reprovação e prevenção do crime aconselharem a não suspensão da execução da pena de prisão, então esta medida deve ser negada.
Postas estas breves considerações, importa voltar ao caso em apreço.
O arguido J... não tem antecedentes criminais sendo este o primeiro contacto com uma instituição de controle social reforçado.
O arguido admitiu os factos com suficiente plenitude para se poder dizer que interiorizou o desvalor da sua conduta, o que, para além de inculcar a ideia de uma certa inadequação dos factos ao agente, traduz a esperada conformação com o padrão imposto pelas normas jurídicas e concomitantemente o abrandamento das exigências comunitárias relativamente à defesa da ordem jurídica e da necessidade da pena.
Tem 39 anos de idade e encontra-se inserido social e profissionalmente.
Tais circunstâncias conjugadas com a existência de condições objectivas de estabilidade que permitem ao arguido opções de vida positiva permitem a conclusão de que aquela ameaça e censura serão suficientes para o afastar da criminalidade.
A perspectiva de integração e de socialização de uma pessoa nas condições do arguido J... aconselham a que a realização de tais finalidades seja procurada em liberdade com acompanhamento por parte dos serviços de reinserção social.
Aconselhada, à luz das exigências de socialização, a pena substitutiva de suspensão de pena de prisão, afigura-se-nos que esta não coloca irremediavelmente em causa o conteúdo mínimo de prevenção geral que se impõe como limite das considerações de prevenção especial, sendo capaz de assegurar a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime.
Afigura-se-nos, pois, que é possível formular um juízo favorável à socialização do arguido, podendo afirmar-se que a censura do facto e a ameaça da prisão acompanhada de um plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, satisfazendo a pena substitutiva de suspensão da execução da prisão, acompanhada de regime de prova, a finalidade primordial de restabelecer a confiança comunitária na validade da norma violada e na eficácia do sistema jurídico-penal.
Assim, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 50.º, nºs 1, 2 e 5 e 53.º do Código Penal e 494.º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido J... pelo período de três anos e dois meses, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova, a determinar pelos competentes serviços de reinserção social.

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No caso em apreço, estamos perante um arguido que quis satisfazer as suas paixões libidinosas com a filha de sete anos e com o filho de oito anos[ Os factos ocorreram em momento indeterminado dos anos de 2004 ou 2005, pelo que será mais favorável ao arguido considerar o final de 2005 para considerar a idade do menor], tendo praticado com ambos actos sexuais de relevo (tirou as cuecas à filha, encostou-lhe pénis à vagina e aí o manteve durante algum tempo e, relativamente ao filho, após lhe ter perguntado “então já fodes com raparigas ou nunca fodeste nenhuma gaja? começou a mexer-lhe no pénis e friccionou-o durante alguns minutos), pelo que cometeu dois crimes agravados de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, a) do Código Penal (redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro).
Entendeu o tribunal que deveria aplicar pena suspensa porquanto a mesma, acompanhada de acompanhada de regime de prova, satisfaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Não concordamos.
Diz-nos o art.º 50.º n.º 1 do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Como é jurisprudência pacífica (v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2008, in www.dgsi.pt), a suspensão da execução da pena apenas deverá ser aplicada nos casos em que seja possível fazer um juízo de prognose favorável, centrado no arguido e no seu comportamento futuro.
Como juízo de prognose que é, não encerra em si uma certeza, mas apenas a esperança fundada de que a socialização do arguido em liberdade se consiga realizar, ou seja, como diz o Professor Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, § 521, “o que aqui está em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco — digamos: fundado e calculado — sobre a manutenção do agente em liberdade.” Contudo, “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável — à luz consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização —, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime»” dado que há que levar em conta “considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico”, pois “só por estas exigências se limita — mas por elas se limita sempre — o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise” (ob. cit. § 520), ou seja, como se diz no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2008, “importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.
Temos assim que a decisão sobre a suspensão da execução da pena terá que apreciar os factos relativos à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste e apurar se é possível, no caso concreto, uma prognose favorável ao nível da prevenção especial de socialização e, sendo a mesma possível, terá também que se ponderar se as exigências de reprovação e prevenção geral ficarão satisfeitas com a aplicação de tal pena.
No caso “sub judice”, a decisão do tribunal, tal como resulta da respectiva fundamentação, é resultado de uma deficiente ponderação dos elementos disponíveis.
Com efeito, embora se pudesse admitir que, apesar de tudo, seria possível fazer um juízo de prognose favorável ao arguido sob o ponto de vista da prevenção especial de socialização, já não se pode considerar que com a aplicação da pena suspensa seja atingido o grau mínimo imposto pelas exigências de reprovação e prevenção geral.
No que diz respeito ao juízo de prognose favorável ao arguido efectuado pelo tribunal teremos que dizer que o mesmo assenta essencialmente no facto daquele ser primário, de viver com a mulher e de se encontrar a trabalhar.
É pouco para que se possa concluir por uma prognose favorável, tanto mais que, dizem-nos as regras da experiência, a esmagadora maioria dos indivíduos que comete crimes de abuso sexual de menores está socialmente integrada (por vezes até gozando de elevado estatuto social) e reincide com grande frequência.
Ora, nada mais tendo o tribunal apurado (desconhecemos se por não ter podido apurar ou por ter entendido que já estava na posse de elementos suficientes), teremos que concluir que o juízo de prognose positiva foi precipitado pois formou-se sobre um conjunto de elementos não permitiam tomar em consideração a possibilidade de reincidência (que neste tipo de crime é recorrente).
O que era essencial.
De qualquer modo, é nas exigências da prevenção geral que a decisão falha completamente.
Na realidade, estamos perante uma situação em que o arguido quis satisfazer as suas paixões libidinosas praticando actos sexuais de relevo com a filha de sete anos e com o filho de oito anos, o que, aos olhos da comunidade é revelador de grande insensibilidade aos valores que fundamentam o crescimento saudável de duas personalidades em formação na área delicada da autodeterminação sexual.
A comunidade rejeita veementemente a prática de tais actos e exige que os seus autores sejam punidos com uma pena que os faça sentir a enorme dimensão da censura social por tais condutas e que ao mesmo tempo se mostre suficientemente intimidante para futuros comportamentos idênticos.
Podemos dizer que em situações como a dos autos, a execução da pena não deve ser suspensa uma vez que a comunidade não compreenderia que a punição por crimes com tão elevado grau de ilicitude e censurabilidade ético-jurídica, fosse compatível com a ressocialização do criminoso em liberdade, ou seja, as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico não são conciliáveis com a aplicação de uma pena de substituição à pena de prisão.
Temos assim que a suspensão de execução da pena se mostra desajustada no caso dos autos.
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Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que suspendeu a execução da pena aplicada ao arguido J....
Determina-se ainda a rectificação do acórdão recorrido na parte em que, por mero lapso material, se integra a conduta do arguido no nº 2 do artº 172º do Código Penal, quando se pretendia integrar no nº 1 (fls. 536 e 539 vº).
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Sem custas.
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Coimbra, 18 de Novembro de 2009

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