Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/12.6PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
VEÍCULO APREENDIDO POR FALTA DE SEGURO
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MARINHA GRANDE - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 348º, N.º 1, AL. B), DO C. PENAL
Sumário: A conduta do depositário de conduzir veículo apreendido por falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil, depois de advertido de que tal acção o faz incorrer em crime de desobediência, integra a prática desse crime, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Tribunal da Relação de Coimbra


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5ª Secção (Criminal)
Proc. 92/10.4GAOFR.C1
Pág. 24
I. Relatório
No processo sumário 15/12.6PAMGR do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande, mediante acusação pública, o arguido A..., identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto julga-se procedente por provada a acusação deduzida pelo Ministério Público, em função do que se decide:
» Condenar o arguido A... pela prática de um crime de desobediência, p.p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão, a qual substituo por 120 (cento e vinte) horas de trabalho a favor da comunidade.
(…)
Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido A..., rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:
1) Dado o carácter subsidiário da incriminação prevista no art. 348.º, n.º 1, al. B) do código penal, a autoridade e o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa conduta, seja ela de natureza criminal, contraordenacional ou outra [1-9];
2) No caso dos autos a apreensão do veículo teve por base o disposto no art. 162.º, n.º 1, al. F) do código da estrada, que implica a apreensão do documento de identificação desse veículo e caso o mesmo circule tal corresponde a uma contraordenação sancionada com coima, como decorre do art. 161.º, n.º 7 do código da estrada [10-11];
3) Por isso não podia o agente da autoridade efetuar tal cominação por a mesma ser ilegal, não se mostrando, por isso, preenchido o crime de desobediência da art. 348.º, n.º 1, al. B) do código penal [12-13].
4) Mediante este ilícito pretende tutelar-se a autonomia intencional do estado, na vertente de subordinação às ordens legalmente emanadas pelas autoridades estaduais ou pelos seus agentes.
5) Trata-se, porém, de um crime com tamanha amplitude que deve ser tendencialmente restringido às situações expressamente previstas num normativo legal, não podendo estar dependente do livre arbítrio de qualquer autoridade ou funcionário, sob pena de tratar-se de uma norma penal em branco de cariz inconstitucional.
6) E isto por violar o princípio da legalidade contido no art. 29.º, n.º 1 da Constituição, segundo o qual "ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior",
7) Também a natureza fragmentária do direito penal e o correspondente princípio de intervenção mínima impõe que essa restrição se restrinja às situações de desobediência legal, na medida em que, segundo o art. 18.º, n.º 2 da constituição "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos",
8) Daí que as situações integradoras de um crime de desobediência que prescindem de disposição legal cominatória, devem ter sempre subjacente um dever legal relevante, cujo desrespeito seja significativamente desvalioso para os fins visados com a proibição desse incumprimento, de tal modo que se justifique a necessária cominação funcional prevista na al. B), do n.º 2 do art. 348.º.
9) Na verdade, apesar de haver quem entendesse que a conduta do arguido seria subsumível à previsão do artigo 22º, nº 2, do decreto-lei nº 54/75, de 12/02, o certo é que, com a recente publicação do acórdão de fixação de jurisprudência nº 5/2009 (publicado no dr nº 55, 1 ª série a, de 19.03.2009), ficou clarificado que «o depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respetivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348º, nº 1, alínea b), do código penal e não o crime de desobediência qualificada do art. 22º, nºs 1 e 2, do decreto-lei nº 54/75, de 12 de fevereiro.»
10) Note-se que este acórdão apenas afirmou que o depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório não comete em caso algum um crime de desobediência qualificada, não tomando posição quanto à efetiva verificação, ou não, dos elementos constitutivos do crime de desobediência simples.
11) Importa, por isso, averiguar se a apurada conduta do arguido integra a previsão da alínea b) do n.º 1 do art. 348º do código penal.
12) Ora, apesar de não se discutir a legalidade da ordem e a legitimidade da autoridade que a proferiu (pois a falta de seguro constitui contraordenação, devendo o veículo ser apreendido pelas autoridades de fiscalização ou seus agentes quando transite sem que tenha sido efetuado o seguro de responsabilidade civil nos termos da lei - cfr. Art.s 150º, nºs 1 e 2, e 162º, nº 1, al. F), do código da estrada, na redação introduzida pelo decreto-lei nº 44/2005, de 23/02), bem como a regularidade da comunicação, o certo é que, existindo ilícito próprio no qual se subsume a conduta do agente que não respeite a proibição de conduzir um veículo apreendido por falta de seguro obrigatório (cf. Art. 161 º, nº 7, do código da estrada), considera-se que a autoridade policial não podia cominar com o crime de desobediência o desrespeito pela ordem dada.
13) Ora, Tendo a apreensão do veículo, no caso concreto, tido por base o disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 162º, do Código da Estrada, e implicando ela, de acordo com a alínea e), do n.º 1, do artigo 161º, do mesmo diploma, a apreensão do documento de identificação do automóvel, a condução do veículo nessa situação constitui, apenas, contraordenação e é sancionada com uma coima de €300 a €1500 (n.º 7 do artigo 161º, do código da estrada, na redação anterior ao decreto-lei n.º 113/2009, de 18 de maio) e que, por isso, dado o carácter subsidiário da incriminação do artigo 348º, n.º 1, alínea b) (apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um comportamento desobediente), como no caso dos autos não podia o agente da autoridade efetuar a cominação do crime de desobediência.
14) Dispõe, por sua vez, o artigo 150º, n.º 1, do código da estrada: «1. Os veículos a motor e seus reboques só podem transitar na via pública desde que seja efetuado, nos termos de legislação especial, seguro de responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização,» A violação de tal comando constitui contraordenação, sancionada com coima, nos termos do n.º2 do mesmo artigo.
15) Por sua vez, estabelece o artigo 162.º, n.º 1, alínea t), do código da estrada, sob a epígrafe «apreensão de veículos»: «1. O veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando: ( ... ) t) Não tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei;»
16) Verificado tal condicionalismo, devem ser os documentos do veículo (de identificação e respeitantes à circulação), igualmente, apreendidos [cf Artigo 161.º, n.º 1, al. E) e 2, do código da estrada].
17) Finalmente, de harmonia com o n.º 7 do artigo 161.º, do código da estrada, na redação anterior ao decreto-lei n.º 113/2009, de 18 de maio, quem conduzir veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido é sancionado com coima de €300 a e1500. Com as alterações introduzidas por aquele decreto-lei, o anterior n.º7 passou a n.º8, mantendo-se a redação.
18) Não é, porém, isso que acontece uma vez que, dado o carácter subsidiário desta incriminação, a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal, contraordenacional ou outra.
19) Entendeu, ainda, o Tribunal a quo que para aplicação da medida concreta da pena, o arguido "releva acentuada dificuldade de interiorização da especial valência axiológica do bem tutelado através do comando penal desatendido"
20) Ainda que considerado dolo direto intencional, devia ter-se atendido, na douta sentença, ao facto de que "a realização típica não constituiu fim ultimo, o móbil da atuação do agente, e sim o pressuposto ou estádio intermédio necessário do seu conseguimento" (in. Figueiredo Dias, in Questões Fundamentais. A Doutrina do Crime, 1996),
21) Tendo neste caso que relevar a motivação do agente/arguido para efeitos de culpa e/ou medida da pena, não se devendo presumir, como se fez na sentença ora recorrida, que o arguido manifestou "uma plena consciência dos perigos advenientes da sua apurada conduta", até porque
22) Não resulta dos autos qualquer prova sobre a existência de quaisquer perigos ou mesmo a intenção de os causar.
23) Tratou-se, isso sim, de uma manifesta urgência de realização de dinheiro para conseguir suprir algumas das muitas dificuldades económicas que já há largos meses o arguido vem a experienciar.
24) É nosso entendimento que o arguido não manifestou nos autos quaisquer sinais de plena consciência dos perigos advenientes da sua apurada conduta.
25) O arguido não detinha, naquele momento, a plena consciência dos perigos que poderia provocar com aquela atuação, até porque nada decorre dos autos, que nos faça crer o contrário.
26) Tratam-se, necessariamente, de ilações aferidas pelo Tribunal a quo sem, contudo, existir qualquer prova carreada nos autos que permitam tais conclusões.
27) O Tribunal a quo não poderia, também, ter concluído que o arguido ao praticar aquele ato demonstrou que a sua passagem pelo Tribunal, durante as três acusações supra referidas, tratou-se de algo que não ficou "vivo" dentro da sua consciência pois
28) Deveria, no entendimento do arguido, ter o Tribunal a quo optado pela imposição de uma pena de multa, pois esta mostrar-se-ia suficiente como meio de prevenção geral e especial e de reprovação do crime cometido, bem como para promover a recuperação social, se assim entendesse, do arguido.
29) O arguido face à idade que tem na atualidade, já enfrenta inúmeros obstáculos na obtenção de trabalho quanto mais agora, por passar a constar do seu Registo Criminal uma condenação em pena de prisão, ainda que substituída, isto porque
30) Atendendo-se à culpa do arguido bem como á necessidade de prevenir a prática de futuros crimes de igual natureza veja-se que o mesmo já procedeu à regularização do seguro de responsabilidade civil obrigatório, conforme alegado na audiência de julgamento.
31) As necessidades de prevenção especial são médias, e não elevadas, tendo em conta que o arguido ainda que já tenha antecedentes criminais pela prática dos crimes já identificados, por outro lado, beneficia de apoio familiar, já regularizou a situação que motivou o crime de desobediência e encontra-se motivado a encontrar emprego, estando plenamente inserido em sociedade.
32) E face à afirmação produzida na douta sentença de que "ninguém vai preso este tipo de conduta" é por demais evidente o porquê desta ideia generalizada da Comunidade onde nos encontramos inseridos, quanto mais não fosse
33) Porque cumprir pena de prisão efetiva por um crime de desobediência por condução de veículo apreendido seria extrapolar o verdadeiro sentido útil da disposição legal consagrada no artigo 348º/1, al b) do CP, até porque
34) Aplicar penas a seres humanos em nome de fins utilitários ou pragmáticos que se pretende alcançar no contexto social, transformaria a pessoa humana em "objeto", violando desta forma a eminente dignidade humana.
35) E atendendo ao facto do arguido não carecer de socialização pois já que se encontra inserido em comunidade, ter confessado integralmente e sem reservas o crime pelo qual foi condenado, ter ainda consentido na prestação de trabalho e, apesar de contar com antecedentes criminais, sendo todavia, por crime de natureza substancialmente diferente da dos presentes autos e,
36) Sendo a medida da necessidade de socialização do agente o critério decisivo das exigências de prevenção especial, ele só "entra em jogo" se o agente se revelar carente de socialização, o que não acontece in casu,
37) Se uma tal carência não se verificar tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência; o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da "moldura de prevenção" ou mesmo que com ela coincida ("defesa do ordenamento jurídico")
38) O arguido padecerá, por causa desta condenação, de um estigma social que o olhará como um criminoso, quando na verdade, ainda que sabendo que agiu erradamente, já procedeu à regularização do seguro de responsabilidade civil obrigatório.
39) Poderá assim afirma-se, em suma, que a pena aplicada nos autos foi totalmente desproporcional face à culpa do arguido, violando desta feita o disposto no nº 2 do artigo 40º e artigo 70º, ambos do CP.
Termos em que,
Deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-­se a Douta sentença ora recorrida na parte em que condena o arguido na pena de prisão de três (3) meses ainda que substituída por 120 dias de trabalho a favor da comunidade por outra pena que implique necessariamente a pena de multa como pena principal substituída, sem assim V/ Excias o entenderam por prestação de trabalho, nos termos do artigo 48º do CP, visto o arguido já ter dado o seu consentimento.
Sendo certo que cremos, assim se fará A acostumada JUSTIÇA!

Notificado, o Ministério Público respondeu, concluindo que a sentença recorrida deve ser mantida.
Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder e deve ser confirmada a decisão recorrida.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.
Corridos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.
***
II. Fundamentos da Decisão Recorrida
Da sentença recorrida constam os seguintes fundamentos de facto e de direito:
Factos provados:
1. No dia 21 de Outubro de 2011, cerca da 10h45m, foi levantado o auto de apreensão do veículo ligeiro de mercadorias, de marca Ford, por o mesmo se encontrar a circular na via pública sem seguro de responsabilidade civil obrigatório.
2. Na ocasião, foi designado como depositário o seu condutor, o arguido A....
3. Do auto de apreensão consta a informação de que o depositário do veículo tem a obrigação de o entregar quando lhe for exigido, não o podendo remover, alterar o estado, utilizar, alienar, destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer outra forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência e/ou de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público.
4. Não obstante ter tomado conhecimento e entendido a restrição imposta e constante do auto de apreensão, o arguido não a cumpriu.
5. Efectivamente, no dia 06 de Janeiro de 2012, pelas 14h45m, na Av. …., o arguido A... conduziu o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula … , quando este ainda se encontrava apreendido, uma vez que ainda não foi efectuado o respectivo seguro de responsabilidade civil obrigatório.
6. O arguido sabia que estava obrigado a acatar a restrição decorrente da apreensão do veículo automóvel, nomeadamente a de não o utilizar e, não obstante, utilizou-o, bem sabendo que o mesmo se encontrava apreendido e que tal apreensão tinha sido feita por autoridade competente, agindo no claro propósito de desrespeitar a ordem emanada da autoridade.
7. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida pela lei penal.
8. Por sentença do Tribunal de Leiria, devidamente transitada em julgado, datada de 05/12/2005, o arguido foi condenado na pena de 40 dias de multa à taxa diária de 6 euros, por crime de desobediência, praticado em 18/05/2004.
9. Por sentença do Tribunal de Torres Novas, devidamente transitada em julgado, datada de 30/01/2006, o arguido foi condenado na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 16 euros, por crime de emissão de cheque sem provisão, praticado em 22/01/2004.
10. Por sentença do Tribunal da Marinha Grande, devidamente transitada em julgado, datada de 12/07/2011, o arguido foi condenado na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5 euros, por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, praticado em 2005.
11. O arguido é jardineiro, trabalhando por conta própria.
12. Aufere dessa actividade quantia mensal entre os 350 euros e os 400 euros.
13. É casado e a sua esposa encontra-se desempregada.
14. Vive com uma enteada de 8 anos de idade.
15. Paga mensalmente pensão de alimentos no valor de 150 euros mensais a duas filhas com 6 e 10 anos de idade respectivamente.
16. Paga de renda de casa a quantia de 300 euros mensais.
17. Tem actualmente três meses de renda de casa em atraso.
18. O arguido está disposto a prestar trabalho a favor da comunidade.

CONVICÇÃO DO TRIBUNAL:
A convicção do tribunal alicerçou-se na apreciação crítica e articulada de todos os elementos de prova carreados para os autos e produzidos em sede de audiência de julgamento.
Assim, o arguido, tendo prestado declarações confirmou todos os factos constantes da acusação.
É certo que, numa primeira fase, começou por referir ter ficado, na altura em que o veículo foi apreendido, com a consciência de que estava proibido de circular com o veículo, admitindo, como possível, que tivesse sido cominado com a prática de um crime de desobediência se o fizesse, mas não se lembrando.
Todavia, quando confrontado com o documento de fls. 9 – auto de apreensão de veículo – e tendo, ele próprio lido, em audiência de discussão e julgamento, a parte final do mesmo documento, acabou por admitir que leu o seu conteúdo, tendo ficado ciente do mesmo.
A corroborar a acusação acrescente-se o depoimento da testemunha … , agente da PSP da Marinha Grande, que confirmou ter explicado ao arguido todo o conteúdo do auto de apreensão antes de o mesmo o ter assinado. Mais referiu esta testemunha que este é sempre o seu comportamento habitual.
No tocante aos antecedentes criminais, baseou-se o Tribunal no CRC do arguido Que se encontra junto aos autos.
Por fim, relativamente às condições sócio-económicas do arguido, valorou o Tribunal as declarações do mesmo.

ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL:
Face à matéria de facto dada como provada importa proceder à qualificação jurídico-penal da conduta do arguido no sentido de determinar qual a tutela jurisdicional que ao caso cumpre dar.
Em conformidade com o disposto no art. 348º n.º 1 do Código Penal, comete o crime de desobediência simples aquele que faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples ou, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
Conforme consensualmente reconhecido, através da repressão jurídico-penal da desobediência, tutela-se, em especial, o interesse administrativo do Estado em garantir o acatamento dos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública, reprimindo-se a desobediência em si mesma e enquanto tal.
Trata-se, assim, em primeira linha, da salvaguarda de um bem jurídico ontologicamente incaracterístico, optou o legislador por circunscrever o âmbito - ainda assim porventura excessivamente amplo1 - de protecção da norma incriminadora, através da caracterização, ao nível da descrição típica da conduta proibida, da ordem emitida por autoridade pública cujo não acatamento é susceptível de determinar a correspondente responsabilidade criminal.
Qualquer que seja, pois, a modalidade que concretamente revista, são elementos essenciais ou constitutivos do crime de desobediência: a) a existência de uma ordem ou mandado substancialmente legítimo; b) a regular comunicação da ordem ou mandado; c) a emanação de autoridade ou funcionário competente; d) a existência de uma disposição legal a cominar, no caso, a punição da desobediência simples ou, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação; e) o não acatamento da ordem ou mandado (elementos objectivos); f) o dolo, traduzido no conhecimento pelo agente da situação típica e a actuação ciente da ilicitude da sua conduta (elemento subjectivo).
Detenhamo-nos sobre cada um dos enunciados elementos típicos.
A ordem cujo não acatamento se reprime coincidirá com a imposição da obrigação de praticar ou deixar de praticar certo facto: a ordem contém necessariamente uma norma de conduta, positiva ou negativa, embora de natureza necessariamente pessoal e concreta, posto que obrigatoriamente dirigida a um particular cidadão, individualmente considerado.
O mandado haverá de ser substancialmente legítimo, ou seja, deverá surgir em presença de uma disposição legal que autorize a sua emissão nos exactos termos em que foi realizada ou, na ausência de disposição legal, na sequência e no âmbito do exercício dos poderes para um tal efeito discricionariamente reconhecidos ao funcionário emitente ou autoridade expedidora.
Para além de legitimidade substantiva, a ordem ou o mandado têm que ter validade formal. Vale por dizer que apenas se poderá reconhecer a comissão de um crime de desobediência onde a ordem ou mandado haja sido emitido e comunicado em conformidade com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão e comunicação.
Exige-se ainda que a autoridade ou o funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, ou seja, que a conduta, activa ou omissiva, que pretendem impor ao destinatário caiba na esfera das respectivas atribuições, definida pela parcela do poder detida, pelo tempo conferido para o respectivo exercício e pela área de jurisdição reservada.
Necessário é, por último, que exista cominação prévia.
Efectivamente, na preocupação de obviar aos excessos a que poderia conduzir uma ampla abertura do tipo, o legislador fez deliberadamente depender a relevância criminal da desobediência do desrespeito a uma cominação prévia: legal ou expressa pelo emitente.
Deste modo, já o destinatário, quando lhe é transmitida a ordem, tem condições para razoavelmente se aperceber de que, caso a não cumpra, fica incurso na prática de um crime de desobediência.
Neste seguimento, resultou demonstrado que o arguido foi advertido pelo agente da PSP de que, se não acatasse a ordem de não circular com o veículo apreendido incorreria num crime de desobediência do que ficou ciente, sendo que também resultou provado que o arguido violou a ordem legítima que lhe foi dada.
Tal proibição foi-lhe, de resto, comunicada de forma regular – por regular se entendendo todo o meio de comunicação que, sendo legalmente admissível, se revele idóneo a levar determinado conteúdo informativo ao conhecimento do destinatário.
Mais resultou demonstrado, ainda, que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.
Pela defesa foi, ainda, pugnada, em alegações, a tese de que o comportamento do arguido não é passível de ser punido criminalmente, mas apenas a nível contra-ordenacional.
Os argumentos apresentados, são em suma os que foram defendidos no Acórdão da Relação do Porto de 10/03/2010 e Acórdão da Relação de Lisboa de 18/01/2005, ambos publicados em www.dgsi.pt.
Reconhece-se que não existe unanimidade de posições, embora aquela que iremos sufragar seja claramente a maioritária.
Assim, entendemos que a apreensão do veículo, concretamente por falta de seguro de responsabilidade civil com a designação do arguido como fiel depositário, legitima a ordem de proibição da sua utilização com a cominação de, não sendo a mesma respeitada, o fazer incorrer no crime de desobediência (simples).
Na verdade, a fonte de legitimidade da competente autoridade de trânsito para, ao apreender o veículo por falta de seguro e de regularização do registo de propriedade, impedir o depositário de o fazer transitar, assenta no disposto no artigo 150.º, n.º1, do Código da Estrada.
Refira-se aqui o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2009, publicado no Diário da República, 1.ª série — N.º 55 — 19 de Março de 2009, que uniformizou jurisprudência da seguinte forma: “o depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22.º, n.º 1 e 2, do Decreto - Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.”.
Quanto ao argumento de que, tendo a apreensão do veículo por base o disposto nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 162.º do Código da Estrada, e implicando ela, de acordo com a alínea e) do n.º 1 do artigo 161º do mesmo diploma, a apreensão do documento de identificação do automóvel, a condução do veículo nessa situação constitui apenas contra-ordenação (n.º 7 do artigo 161.º, do Código da Estrada), também temos que discordar. De facto, o legislador – art.ºs 150.º, n.º 1 e 162.º, n.º 1, alínea f), ambos do C. da Estrada - incumbiu os agentes de autoridade de apreenderem o veículo, conferindo-lhe poderes para o efeito, isto é, legitimou-os para efectuarem a apreensão, podendo ordenar tudo quanto seja necessário ao cumprimento das funções que lhe estão cometidas.
Acrescente-se que, ao contrário do que defende o arguido, a conduta em causa não é punida a título de contra-ordenação. De acordo com o Código da Estrada, é obrigatório o seguro de responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização para os veículos a motor e reboques quando transitem na via pública, devendo, na sua falta, ser o veículo apreendido pelas competentes autoridades, constituindo a falta de seguro um ilícito contra-ordenacional.
Está também instituído o regime de obrigatoriedade de porte de documentos, dentre os quais sobressai o título de registo de propriedade do veículo ou documento equivalente, nos termos do artigo 85.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Código da Estrada. As alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 162.º do Código da Estrada determinam que o veículo seja apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando não tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei, ou o respectivo registo de propriedade ou a titularidade do documento de identificação não tenham sido regularizados no prazo legal. Se e quando o veículo for apreendido, prescreve a alínea e) do n.º 1 do art.º 161º que o documento de identificação do veículo seja também apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes.
Assim, parecem-nos existirem duas situações diversas pois nem todos os casos de apreensão dos aludidos documentos implicam a apreensão do veículo (cf. os n.º 3, 4 e 5 do artigo 161.º) e nem todos os casos de apreensão do veículo conduzem à investidura do titular do respectivo documento de identificação como seu fiel depositário (cf. os n.º 4 e 5 do artigo 162.º).
Tratam-se, pois, de situações diversas, sendo de concluir que a contra-ordenação p. e p. pelo artigo 161.º, n.º7, do Código da Estrada reporta-se apenas à condução de veículo com documentos apreendidos, sancionando-a com coima, não prevendo nem sancionando a situação de quem conduzir ou transitar com veículo apreendido, sendo que é possível conduzir um veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido, sem que aquele esteja, também, apreendido.
Veja-se no mesmo sentido, a seguinte Jurisprudência: Acórdãos da Relação do Porto de 4/05/2011, 27/10/2010, 17/03/2010 e 13/01/2010 e Acórdão da Relação de Lisboa de 22/02/2011, todos em www.dgsi.pt.
Pelo exposto, temos de concluir que o arguido cometeu, em autoria material, na forma consumada um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

MEDIDA CONCRETA DA PENA:
Feito o enquadramento jurídico-penal dos factos, importa agora proceder à escolha e determinação da medida da pena a aplicar ao arguido.
Da conjugação do disposto no preceito-sancionador com os limites fixados nos artigos 41º, n.º 1 e 47º, n.º 1 e 2 do mesmo Código, resulta que a conduta do arguido é abstractamente punida com pena de 1 mês a 1 anos de prisão ou com pena de multa de 10 a 120 dias.
Ora, como supra já se referiu, admitindo a punição prevista a aplicação, em alternativa, de duas penas principais, importa começar por escolher a espécie de pena que concretamente se vai aplicar, sendo que, nos termos do art. 70º da Lei Penal, deverá optar-se pela pena não detentiva sempre que, através dela, for possível acautelar a preservação da paz jurídica comunitária e se lhe não oponham particulares exigências de ressocialização.
Atendendo, pois, à circunstância de, antes da prática dos factos que se julgam, o arguido haver sido, já condenado pela prática de três crimes, uma deles também de desobediência, cremos que o mesmo revela acentuada dificuldade de interiorização da especial valência axiológica do bem tutelado através do comando penal desatendido. E não se diga que tais condutas datam de alguns anos, pois que a passagem pelo Tribunal e a condenação por qualquer crime é algo que deve ficar “vivo” dentro da consciência das pessoas, a não ser que desconsiderem tais condenações.
Acrescente-se, ainda, que a última condenação do arguido, por crime de abuso de confiança contra a segurança social data de Julho de 2010, pelo que a prevaricação em causa nos autos, dá-se menos de um ano após ter sido punido pelo tribunal pela prática de conduta criminal.
Deste modo, deve a escolha incidir concretamente sob a pena de prisão, cuja execução sempre seria, de resto, reclamada pelas considerações mais gerais da prevenção.
Com efeito, considerada a particular ressonância que os crimes contra a autoridade atingem um país com a dimensão do nosso e o sentimento de grande de insegurança que causam na comunidade, pondo em causa a autoridade do Estado, a opção pela pena de multa seria aqui entendida como uma injustificada indulgência e prova de prostração contra o crime, comprometendo deste modo a defesa do ordenamento jurídico e exigências da exteriorização física da reprovação. Note-se que existe a ideia generalizada de que “ninguém vai preso por este tipo de condutas”, as quais proliferam diariamente nos nossos tribunais, como uma espécie de “praga”, que, inclusive é responsável pelo desvio de muitos meios humanos (órgãos de polícia criminal, magistrados do ministério público, funcionários judiciais, magistrados judiciais) e financeiros (pense-se nos milhões pagos pelo Estado com apoio judiciário nestes casos).
Assim, escolhida a pena, cumpre agora fixar a sua medida concreta, à luz dos critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal, maxime o grau de ilicitude, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o agente.
No que ao grau de ilicitude concerne, teremos necessariamente de o considerar elevado já que o arguido manifestou um especial desrespeito pelas específicas regras que orientam a vida em sociedade, sendo a sua conduta desvaliosa, não só do ponto de vista do pessoal desrespeito pela ordem jurídica, mas também pela relevância dos bens jurídicos postos em perigo com ela.
Também a intensidade do dolo com que actuou o arguido é elevada, revelando-se na modalidade mais grave – dolo directo - , manifestando uma plena consciência dos perigos advenientes da sua apurada conduta.
Por outro lado, as exigências de prevenção especial mostram-se, na situação vertente, altas pois, arguido tem antecedentes criminais pela prática do mesmo tipo legal e a sua postura em julgamento, embora tenha confessado integralmente e sem reservas do crime de que vinha acusado, foi pouco critica e algo desculpabilizante. É facto que o arguido vive uma situação económica difícil, mas, infelizmente, o nosso país está em crise e as dificuldades económicas não podem servir de justificação para a prática de crimes, sob pena de tal ideia se generalizar e termos em mão uma situação incomportável.
De outra banda, importa, também, não esquecer que as exigências de prevenção geral são elevadíssimas, constituindo os crimes contra a autoridade do Estado uma particular fonte de generalizada insegurança. De realçar também que é dos crimes mais julgados nos Tribunais Portugueses, diariamente.
Deste modo, face às circunstâncias supra enumeradas, entendemos que a conduta do arguido deverá ser sancionada com a pena de 3 (três) meses de prisão, a qual, no entanto, substituo-o por 120 horas de trabalho a favor da comunidade, por concluir que desta forma se realizam de forma adequada e suficientes as finalidades da punição (cfr. artigo 58.º do Código Penal).
Ademais, o Tribunal tem a convicção de que o cumprimento da prisão, caso a pena não fosse substituída, poderia significar um mau caminho na reintegração do arguido, pois, como sabemos, a pena de prisão efectiva deve ser a ultima ratio, já que o ambiente prisional não é, de facto, o melhor meio.
***
III. Apreciação do Recurso
A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).
Não obstante, o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sem embargo das questões do conhecimento oficioso.
E vistas as conclusões do recurso interposto, as questões que reclamam solução são as seguintes:
1. Se a conduta do depositário de conduzir veículo apreendido por falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil, depois de advertido de que tal acção o faz incorrer em crime de desobediência, integra a prática desse crime p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal;
2. Se o arguido deve na pena de multa cominada na norma incriminadora ao invés de prisão.

Apreciando:
O arguido e recorrente foi condenado na decisão recorrida pela autoria de crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal por ter circulado com veículo apreendido por falta de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Entende o recorrente que tal conduta não constitui crime e que deve ser absolvido.
O argumento que traz à discussão nesse sentido consiste essencialmente na afirmação de que a conduta em causa integra a prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 161º, nº 7 do Código da Estrada, impedindo o princípio da intervenção mínima do direito penal a sua penalização como crime.
Note-se, antes de mais, que a sentença recorrida não deixou de equacionar a questão agora também proposta em recurso e de sobre ela expender pertinente fundamentação na defesa da tese da penalização.
Quanto a nós, seguindo de perto a fundamentação constante do Acórdão da Relação do Porto de 4.5.2011, citado, aliás, na decisão recorrida e publicado em www.dgsi.pt, porque novos argumentos não temos a expor, diremos o seguinte:
O crime de desobediência vem previsto no artigo 348º do Código Penal nos seguintes termos:
"1- Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição, a autoridade ou o funcionário fizeram a correspondente cominação.".
Assim, constituem elementos objectivos deste tipo de ilícito (alínea b) em questão):
- Falta à obediência devida a ordem ou mandado;
- Legalidade formal e substancial dessa ordem ou mandado;
- Competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;
- Regularidade da sua comunicação ao destinatário;
- Cominação expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta infractora o carácter de desobediência.
Faltar à obediência devida a ordem ou mandado de autoridade não constitui isoladamente crime, mais se exigindo a existência de disposição legal expressa que comine esse crime, ou, na sua falta, que seja efectuada a correspondente cominação pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar tal ordem ou mandado como expressa Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 351, §6.
Por outro lado, conforme resulta do confronto da redacção anterior e da actual do tipo de crime de desobediência, artigo 388.º do Código Penal de 1982 e 348.º do Código Penal de 1995, a desobediência atípica ou inominada (sem cominação legal expressa) exige e pressupõe que a autoridade ou o funcionário façam a correspondente cominação; de que o incumprimento do ordenado acarreta a prática do crime de desobediência. O legislador na reforma do Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 408, teve o cuidado de acrescentar a necessidade de ser feita a correspondente cominação, que só pode ser a de a prática de crime de desobediência.
Como refere Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense ao Código Penal, 2001, pág. 350, «em ambos os casos temos, portanto, um dever qualificado de obedecer – qualificado na medida em que o seu não cumprimento traz consigo uma sanção criminal. Com a diferença de que, no primeiro [alínea a)], a imposição da norma de conduta é feita por lei geral e abstracta, anterior à prática do facto; enquanto no segundo, a norma de conduta penalmente relevante resulta de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário, contemporâneo da actuação do agente (...)».
Até aqui nada se desencontra nas teses em confronto, importando agora analisar as disposições do Código da Estrada que regulam a situação específica dos autos de falta de seguro e da consequente apreensão.
Dispõe o artigo 150º, nº 1 do Código da Estrada:
«1. Os veículos a motor e seus reboques só podem transitar na via pública desde que seja efectuado, nos termos de legislação especial, seguro de responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização.»
A violação de tal comando constitui contra-ordenação, sancionada com coima, nos termos do nº 2 do mesmo artigo.
Por sua vez, estabelece o artigo 162º, nº 1, alínea f) do Código da Estrada, sob a epígrafe «Apreensão de veículos»:
«1. O veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando:
(…)
f) Não tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei;»
Verificado tal condicionalismo, devem ser os documentos do veículo (de identificação e respeitantes à circulação) igualmente, apreendidos (cf. artigo 161.º, n.º 1, al. e) e 2, do Código da Estrada).
Finalmente, de harmonia com o n.º 7 do artigo 161º do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 113/2009, de 18 de Maio, quem conduzir veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido é sancionado com coima de € 300 a € 1500. Com as alterações introduzidas por aquele Decreto-Lei, o anterior n.º7 passou a n.º8, mantendo-se a redacção.
O crime de desobediência imputado ao arguido consubstancia-se no facto de o arguido ter conduzido uma viatura apreendida por falta de seguro e de que era fiel depositário, tendo sido previamente advertido pela autoridade policial que se o fizesse incorreria na prática de um crime de desobediência.
A fonte de legitimidade da competente autoridade de trânsito para, ao apreender o veículo por falta de seguro «proibir» o depositário de o fazer transitar, assenta claramente no disposto no artigo 150º, nº 1 do Código da Estrada, não se colocando dúvidas quanto à regularidade da comunicação efectuada.
A este propósito, importa mencionar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2009, publicado no Diário da República, 1.ª série, nº 55 de 19 de Março de 2009, que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
«O depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22.º, n.º 1 e 2, do Decreto -Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro».
Se é certo que a uniformização de jurisprudência não se pronunciou sobre se a conduta do fiel depositário de veículo apreendido por falta de seguro era ou não crime, tal entendimento está manifestamente pressuposto quando se afirma que não integra o crime de desobediência qualificada mas o crime de desobediência simples, verificados os respectivos elementos constitutivos, o que supõe que se possam verificar.
Lembremos que a tese do recorrente é no sentido de que tendo a apreensão do veículo tido por base o disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 162º, do Código da Estrada e, implicando ela, de acordo com a alínea e), do n.º 1, do artigo 161º do mesmo diploma, a apreensão do documento de identificação do automóvel, a condução do veículo nessa situação constitui, apenas, contra-ordenação sancionada com uma coima de 300 a 1500 € (n.º 7 do artigo 161º, do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 113/2009, de 18 de Maio) e que, por isso, dado o carácter subsidiário da incriminação do artigo 348º, n.º1, alínea b) (apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um comportamento desobediente) como no caso dos autos não podia o agente da autoridade efectuar a cominação do crime de desobediência.
É certo que só podem ser objecto de incriminação as condutas que violem bens jurídicos carecidos de tutela jurídico-penal, como decorre dos artigos 29º da CRP e 1º do Código Penal. O Direito Penal só deve, pois, intervir quando a sua protecção se revele imprescindível à salvaguarda dos bens jurídicos que sejam fundamentais à defesa do Estado de Direito. E só intervém se e quando os outros ramos do Ordenamento Jurídico se revelem incapazes de os defender eficazmente, o que vale por dizer que o Direito Penal constitui a ultima ratio.
No caso dos autos, a apreensão visou uma dupla finalidade:
- Coagir o proprietário a celebrar contrato de seguro, que é obrigatório e sem o qual não pode circular com o veículo;
- Manter o estado do veículo para poder garantir o pagamento das indemnizações resultantes do acidente de viação em que foi interveniente e que, naturalmente, sejam da responsabilidade do seu proprietário e do seu condutor.
Para alcançar tal desiderato, o legislador, nos termos dos artigos 150º, nº 1 e 162º, nº 1, alínea f), ambos do Código da Estrada, conferiu competência aos agentes de autoridade para apreenderem o veículo e poderes para o efeito, podendo ordenar tudo quanto seja necessário ao cumprimento das funções que lhe estão cometidas.
Efectuada a apreensão, esta só pode ser levantada se e quando a lei o permitir.
Porque a ordem de apreensão e de manutenção da apreensão é legítima e provém da entidade a quem a lei conferiu poderes para a dar, é óbvio que o desrespeito tem de ser punido. E é punido como desobediência, pois que, ao conduzir-se um veículo apreendido, viola-se a proibição cautelar de não condução, transmitida por agente de autoridade, investido de poderes para o efeito. Não está em causa a simples condução com veículo apreendido, mas a ordem de não poder com ele circular, legítima porque ancorada em lei expressa.
A conduta do arguido ora em apreço não é punida a título de ilícito administrativo (contra-ordenação) ou de natureza diversa, contrariamente ao defendido pelo recorrente.
Na verdade, independentemente de qual seja a infracção administrativa que levou à apreensão do veículo automóvel e respectivas sanções, o arguido utilizou o veículo automóvel que lhe fora confiado na qualidade de depositário, apesar de ter sido advertido de que não podia utilizar o mencionado veículo, sob pena de incorrer, caso o fizesse, na prática de um crime de desobediência.
Ora, a utilização de veículo automóvel pelo depositário a quem foi confiado com a obrigação de não o fazer não constitui infracção punível a título diverso do crime de desobediência previsto na alínea b) do nº 1, do artigo 348º do Código Penal pelo que não é posta em causa a natureza subsidiária daquela incriminação, contrariamente ao suposto pelo recorrente.
O artigo 161º, nº 7 do Código da Estrada, afinal apenas pune a condução de veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido o que nem implica que o próprio veículo o tenha sido. Existem manifestamente elementos típicos na conduta criminalmente punível que a distinguem claramente da conduta contra-ordenacional.
Com efeito, não coincidem o âmbito de aplicação das normas em confronto, nem tão-pouco o interesse que visam proteger (no crime de desobediência está em causa o interesse administrativo do Estado em garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade) pelo que não há que fazer apelo ao princípio da fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal (cfr. neste sentido os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 29 de Novembro de 2010, processo 532/10.2GAFLG.G1; da Relação do Porto, de 27 de Outubro de 2010, processo 628/09.3PTPRT.P1 e ainda, com interesse, os Acórdãos da Relação de Évora, de 19 de Dezembro de 2006, processo 1752/06-1; da Relação de Coimbra, de 7 de Março de 2007, processo 15/04.0GAVGS.C1; da Relação do Porto, de 10 de Novembro de 2010, processo 14/07.0PTPRT.P1-1.ª Secção (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Em face do exposto conclui-se que o arguido preencheu com a sua conduta, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito do crime de desobediência do artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal, não podendo deixar de ser condenado pela sua prática, sendo de manter a decisão condenatória recorrida.

Pretende ainda o arguido ser condenado em pena de multa (alternativamente cominada na norma incriminadora a par da pena de prisão) aduzindo nesse sentido essencialmente que não carece de socialização pois já se encontra inserido na comunidade, confessou integralmente e sem reservas os factos e os seus antecedentes referem-se a crimes de natureza substancialmente diferente, não actuando elevadas exigências de prevenção especial. Alega regularização da situação que motivou o crime que não se encontra vertida na factualidade provada e não pode, por consequência, ser tida em consideração.
Está, pois, em causa interpretar o disposto no artigo 70º do Código Penal em confronto com o quadro circunstancial descrito na matéria de facto provada.
Este normativo dispõe que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O crime por que o arguido foi condenado insere-se na criminalidade de pequena dimensão que não deixa de ser perniciosa se se verificar a sua reiteração, especialmente quando o agente do crime reitera tais condutas após várias advertências punitivas.
A tais crimes e porque a isso se não opõem ab initio as exigências de prevenção geral de integração, devem ser aplicadas penas de multa. Tanto assim que desde logo os tipos legais respectivos prevêem a aplicação em alternativa de prisão ou multa, numa clara opção de política criminal por penas pecuniárias, reservando-se as privativas da liberdade para situações de clara indiferença pelos valores penalmente protegidos que terá de ser demonstrada de forma inequívoca pela ineficácia de penas menos gravosas para afastar o delinquente da criminalidade. E em tese não deve ser efectuado raciocínio diferente relativamente a crimes contra a autoridade quando se encontrem dentro desse denominador comum de alternatividade entre pena de multa e prisão, sem embargo da consideração de que nesse domínio possam existir em determinados momentos históricos maiores exigências de prevenção geral; de reforço da validade das normas.
Ora, no caso, verifica-se que o arguido sofreu até ao momento da prática do crime em apreço três outras condenações penais. Em 2005 foi condenado em pena de multa por crime de desobediência praticado em 2004, em 2006 foi condenado por crime de emissão de cheque sem provisão praticado em 2004, também em pena de multa e em 2011 foi condenado por crime de abuso de confiança contra a segurança social praticado em 2005, ainda em pena de multa. Nada se refere na sentença recorrida sobre o cumprimento de tais penas, especialmente a última que é recente.
Estamos, pois, perante uma actividade criminal que ofendeu diferentes valores jurídicos, sem contornos de especial gravidade, cuja censura penal se encontra espaçada no tempo, que ainda não pode qualificar-se de uma ostensiva afronta aos valores penalmente protegidos. Acresce a falta de dados para se poder concluir que a última pena de multa foi efectivamente ineficaz, ou seja, que o arguido depois de a cumprir, ainda assim, tenha praticado o presente crime.
Nestas circunstâncias parece-nos que ainda se deve optar pela aplicação da pena de multa cominada porque adequada e suficiente a realizar as finalidades da punição, cujas exigências ainda não atingiram um grau de defesa incompatível com pena pecuniária.
Importa por consequência proceder ao doseamento da pena de multa que deve ser fixada entre 10 e 120 dias.
Sendo as finalidades da punição consignadas no artigo 40º do Código Penal a trave mestra que determina o doseamento da pena, dir-se-á de forma resumida, reproduzindo Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pag. 84, que «a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71º, nº 1 do Código Penal preceitua, na senda do citado artigo 40º que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido.
Ao nível da ilicitude é de considerar desvalores da acção e do resultado médios, sendo de idêntica dimensão o grau de culpa. Com valor manifestamente agravante surge a conduta anterior aos factos plasmada nas condenações penais anteriormente sofridas, a que se contrapõe com mitigado valor atenuante a confissão dos factos e a inserção social do arguido. Tende-se, com efeito, a esquecer que as exigências de prevenção especial de socialização não se medem apenas por este factor, mas especialmente pelo que essa inserção reflecte ou não de respeito pelos valores penalmente protegidos.
Analisadas as citadas circunstâncias, elas apontam para um limite mínimo ditado pela prevenção geral de integração manifestamente acima do limite mínimo previsto na norma incriminadora, sob pena de insuficiente defesa do ordenamento jurídico.
E à luz da prevenção especial, que no caso não pode deixar de ter conteúdo negativo de intimidação individual, temos também um quadro que aponta para a necessidade de uma pena significativamente acima do limite mínimo legalmente previsto.
Pelo exposto e considerando que o limite máximo da pena de multa é de 120 dias, que as exigências de prevenção nos crimes contra a autoridade ditam especial ponderação, impõem-se distanciamento do limite mínimo previsto na lei, entendendo-se como ajustada a pena de 80 dias de multa.
Na verdade as referidas exigências de prevenção geral mostrar-se-ão satisfeitas quando a pena se mostre comunitariamente suportável à luz da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização da expectativa comunitária na validade das normas violadas, sendo evidente que no caso em apreço se coloca em questão um grau de prevenção geral não negligenciável pela circunstância de estar em causa crime contra a autoridade cuja ocorrência é frequente.
No que respeita à taxa diária da multa, considerando o disposto no artigo 47º, nº 2 do Código Penal que determina a sua fixação em função da situação económica e financeira do condenado, ponderando o que a esse propósito consta da sentença recorrida, deve ser fixada em cinco euros (mínimo legal).
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IV. Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido A..., revogando a sentença recorrida na parte em que o condenou em pena de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, condenando-o na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de cinco euros, no montante de 400 (quatrocentos) euros.
Não há lugar a tributação (cfr. artigo 513º,nº 1 do Código de Processo Penal).
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Coimbra,
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora).
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(Maria Pilar Pereira de Oliveira)

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(José Eduardo Fernandes Martins)