Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
98/06.8IDLRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÕES OBJECTIVAS DE PUNIBILIDADE
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 105º RGIT
Sumário: 1. A condição objectiva de punibilidade prevista na versão originária do nº 4 do art. 105º do RGIT passou para a actual alínea a) do mesmo número. E na recém criada alínea b) estabeleceu-se uma segunda condição objectiva de punibilidade que só opera, além do mais, se a prestação tiver sido comunicada à administração tributária através da correspondente declaração.
2. Sendo a notificação efectuada ao abrigo do art. 105º, nº 4, b) do RGIT na redacção da Lei 53-A/2006 de 29 de Dezembro uma consequência da lei, e sendo imposta a sua aplicação aos factos pretéritos por força de jurisprudência obrigatória, não se descortina qualquer razão que determine a necessidade de assegurar o contraditório.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.


No Tribunal Judicial da comarca de Leiria correm termos os autos de Instrução nº 98/06.8IDLRA, em que são arguidos, T…, Lda., J... e B..., todos com os demais sinais nos autos, a quem o Ministério Público imputa a prática, em co-autoria e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos arts. 30º, nº 2 e 79º do C. Penal, e 6º a 8º e 105º, nºs 1 e 5, do RGIT, conjugados com os arts. 91º, 98º, nºs 1 e 3, 99º e 101º, do CIRS e 35º e 44º, da LGT.

Em 21 de Julho de 2008 o Mmo. Juiz de Instrução Criminal proferiu decisão instrutória na qual pronunciou os três arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 91º, 98º, nºs 1 e 3, 99º e 101º, do CIRS, 35º e 44º, da LGT, 6º a 8º e 105º, nºs 1. 4, a) e b), e 5, do RGIT, e 30º, nº 2 e 79º, do C. Penal.

Os arguidos vieram, nos termos do art. 309º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal, invocar a nulidade da decisão instrutória, por nela:
- Não lhes ter sido dada a possibilidade de se pronunciarem sobre a aplicabilidade do regime do art. 105º, nºs 4, b) e 6, do RGIT;
- Não lhes ter sido dada a possibilidade de se pronunciarem sobre a determinação da coima aplicável a que alude o art. 105º, nº 4, b), do RGIT;
- Ter sido violado o contraditório relativamente à notificação prevista no art. 105º, nº 4, b), do RGIT, o que pode determinar a violação do valor da coima aplicável;
- Ter ocorrido uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, pois que foram pronunciados por um facto – a realização da notificação prevista no art. 105º, nº 4, b), do RGIT – que não consta da acusação.

Por despacho de 13 de Outubro de 2008, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal foi julgada improcedente a arguição de nulidade da decisão instrutória.
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Inconformada com a decisão, dela interpôs recurso a arguida sociedade, formulando no termos da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1. O reconhecimento de uma alteração substancial dos factos pode ocorrer em qualquer momento da Instrução requerida pelos arguidos e sempre até à prolação do despacho de pronúncia.
2. Constituem alterações substanciais dos factos as recentes alterações das condições de punibilidade objectivas dos crimes fiscais e de descriminalização em função do valor, mediante a aprovação das sucessivas Leis orçamentais contendo alterações ao RGIT.
3. Não tendo o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal comunicado a alteração substancial, face aos novos factos apurados no decurso do debate instrutório, que implicava a requalificação do crime constante da acusação/pronúncia para subsunção mais grave, impunha-se a nulidade do despacho de pronúncia, nos termos do Artº 309º nº 1 e 310 nº 3 do CPP.
4. Uma vez que a arguida não foi ouvida sobre os factos novos, não restava ao Meritíssimo Juiz de Instrução outra alternativa que não a de declarar extinta a instância e remeter o processo ao M. Público para proceder pelos novos factos que determinam uma requalificação jurídica do crime de abuso de confiança fiscal.
5. Mesmo que considerasse que a alteração não era substancial o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal teria sempre de ouvir a sociedade arguida, sobre tal questão e sobre o teor da notificação efectuada ao abrigo do Artº 105 nº 4 al b) do RGIT na redacção da Lei 53-A/2006 de 29 de Dezembro.
6. O Tribunal de Instrução Criminal não pode olvidar que a acusação é deduzida dentro das exigências do artº 283º do CPP; é em função dela que a arguida organiza a sua defesa, havendo factos novos haverá que ouvir a arguida e havendo oposição encetar nova acção penal e subsequente acusação que inclua os novos factos.
7. O novo inquérito implica transtorno e prejuízo para a celeridade, mas o Tribunal de Instrução Criminal como garante dos direitos, liberdades e garantias dos arguidos não pode, pura e simplesmente pronunciar a arguida pelos factos novos (não constantes da acusação) porque vigora no nosso sistema penal o principio do acusatório.
8. É manifestamente procedente a nulidade da decisão de pronúncia e, por isso, deve dado provimento ao recurso da sociedade arguida sendo revogado o despacho judicial que ajuizou pelo indeferimento da nulidade tempestivamente arguida ao abrigo do disposto Artº 309º nº 1 do CPP.
NORMAS VIOLADAS:
Artº 283º, Artº 308 nº 3, Artº 309 nº 1, Artº 310, Artº 358 e Artº 359 todos do C. P. Penal
Artº 105 nº 4 al b) do RGIT na redacção da Lei 53-a/2006 de 29 de Dezembro.
Artº 29 nº 1 e 4 e Artº 32 nº 10 da Constituição da Republica Portuguesa.
Nestes termos e nos melhores de direito deverá ser admitido o recurso interposto a subir imediatamente e nos próprios autos, sendo o mesmo julgado procedente e ordenado o arquivamento dos autos com a extracção de certidão para novo inquérito.
(…)”.
*

Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, formulando no termo da sua contramotivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1. Dispõe o artigo 1º, al. f) do Código de Processo Penal que constitui alteração substancial dos factos: "aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis";
2. No Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 7.5.2008, e em apenso aos presentes autos, foi decidido para além do mais: «Quanto à notificação em si ela configura uma condição de procedibilidade, figura própria da lei adjectiva (…). Mas note-se que nenhuma nova lei processual pode afectar a valia dos actos processuais validamente praticados segundo a lei da época em que foram praticados. O que significa que a acusação tendo sido validamente praticada tem de subsistir. Apenas haverá que dar ao contribuinte cuja situação seja prevista no segmento inicial da referida alínea b) esta nova oportunidade de pagamento com vista à sua não punição. (…) uma vez que o facto típico é o mesmo antes e depois da alteração legal – a alteração apenas se reconduz a uma nova possibilidade dos contribuintes relapsos que tenham efectuado as suas declarações não virem a ser punidos desde que no prazo referido procedam ao pagamento do devido e acréscimos legais indicados.
Em conformidade e ao mencionar-se o cumprimento da referida alínea b) do artigo 105º, nº. 4 do RGIT na acusação não se está a proceder a qualquer alteração substancial dos factos descritos na acusação»;
3. A questão suscitada pelo recorrente foi já decidida pelo Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 6/2008, publicado no DR I Série de 15/5/2008, nos seguintes termos: «As condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção anti-jurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção.
Por seu turno, os pressupostos processuais são regras do procedimento cuja existência se fundamenta na possibilidade de desenvolver um procedimento penal e ditar uma sentença de fundo.
Como os pressupostos processuais pertencem exclusivamente ao direito processual não afectam nem o conteúdo do ilícito, nem a punibilidade do facto, limitando-se exclusivamente a condicionar a prossecução da acção penal».
(…) Estamos em crer que é inequívoco de que a verdadeira essência das condições objectivas de punibilidade como categoria dogmática autónoma no marco dos pressupostos materiais de punibilidade é, na perspectiva substancial, a sua autonomização em relação à ilicitude. O que sucede dado que esta classe de condições se coloca à margem da conduta ilícita e, consequentemente, a sua verificação vem a colocar em relevo tão-somente, a questão da necessidade da pena. Nessa sequência, e num plano de conceitos, os elementos do tipo de ilícito e condições objectivas de punibilidade são noções que se excluem mutuamente.
Como se referiu, as condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que se encontram em relação directa com o facto mas que não pertencem nem ao tipo de ilícito nem ao da culpa.
Constituem pressupostos materiais da punibilidade. (…)
As condições objectivas de punibilidade são, assim, circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar antijurídico importe consequências penais. São condições em que uma ponderação das finalidades extra-penais tem prioridade em face da necessidade da pena. Uma vez que não pertencem ao tipo não se requer que sejam abrangidas nem pelo dolo nem pela negligência.
A aparição das condições objectivas de punibilidade é indiferente para o lugar e tempo do facto.
As condições objectivas de punibilidade participam de todas as garantias do Estado de Direito estabelecidas para os elementos do tipo. (…)
4. Os factos típicos do crime já se encontram plasmados na acusação. Tudo o resto é posterior à consumação do crime, são meras condições objectivas de punibilidade, que não se reportam ao objecto do crime;
5. As condições objectivas de punibilidade, não consubstanciam factos da prática do crime, não interferem com os mesmos, os quais constam já da acusação. Não integram o objecto do processo;
6. Não tem de ser feita nenhuma comunicação, sendo certo que não seria produzida prova sobre tal. O instituto da alteração substancial e não substancial dos factos, tem a ver com os factos que integram o objecto do processo, não se justificando, conforme argumenta a recorrente, que o Tribunal a tivesse que ouvir acerca do teor da notificação, da qual tomou conhecimento, nos termos e para os efeitos do artigo 105º, nº.4, al. b) do RGIT, na redacção da Lei nº. 53-A/2006 de 29/12.
7. A decisão do Mmº JIC não violou qualquer preceito legal, nomeadamente os artigos 283º, 308º, nº. 3, 309º, nº. 1, 310º, 358º, 359º, todos do Código Penal; 105º, nº.4, al. b) do RGIT, na redacção da Lei nº. 53A/2006, de 29/12 e 29º, nºs. 1 e 4 e bem assim artigo 32º, nº. 10 da Constituição da República Portuguesa;
8. Pelo que, não existindo a violação de qualquer norma legal, deve negar-se provimento ao recurso interposto pela arguida, mantendo-se no tocante ao alegado pela mesma, a decisão recorrida nos seus precisos termos.
(…)”.
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O recurso foi admitido com subida em separado, de imediato e com efeito devolutivo.

O Mmo. Juiz de Instrução sustentou laconicamente o despacho recorrido.

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, aderindo aos fundamentos da resposta da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, se pronunciou pelo não provimento do recurso e consequente confirmação da decisão recorrida.

Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo a arguida respondido, reafirmando as conclusões da motivação, arguindo a inconstitucionalidade material do art. 105º, nº 1, do RGIT pois, ao fazer desaparecer o conceito de apropriação, constitui uma prisão por dívidas.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO.


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A nulidade da decisão instrutória ao pronunciar os arguidos por factos que constituem uma alteração substancial dos descritos na acusação;
- A nulidade decorrente de, a considerar-se a alteração como não substancial, ter sido omitida a audição da arguida sobre tal questão e sobre o teor da notificação efectuada ao abrigo do art. 105º, nº 4, b) do RGIT na redacção da Lei 53-A/2006 de 29 de Dezembro.
Deverá ainda ser conhecida a inconstitucionalidade material do art. 105º, nº 1, do RGIT, pela arguida suscitada na resposta ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
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Para a resolução destas questões importa ter presente o teor do despacho recorrido, que por isso se transcreve:
“ (…).
T…, LDA, J... B..., nos termos do Artº 309 nº 1 e 2 do C.P.Penal, arguir a NULIDADE da referida decisão com os fundamentos que aqui dou por reproduzidos ;
Sobre tal questão o MP pronunciou-se a fls. 985 dos autos, pugnando pelo indeferimento de tal arguição.
Cumpre apreciar e decidir:
Alegam no essencial que no caso em concreto existe alteração substancial dos factos constantes da acusação do Ministério Publico porque a lei nova alargou a condição objectiva de punibilidade que na anterior lei/redacção (mantida na lei nova) valia apenas para as não entregas da prestação tributária (por incumprimento declarativo ou simples falta de pagamento do imposto liquidado na declaração apresentada) cujo valor não excedesse 1.000 € – cfr. artº 105.º, n.º 6, na redacção da Lei nº 15/2001, de 5.6 ou na redacção da Lei nº 53-A/2006, de 29.12 e o despacho de pronúncia constitui uma, alteração substancial dos factos porque o que está em causa não é a notificação da Administração Fiscal mas sim o facto novo que resulta do comportamento dos arguidos em face de tal notificação.
Assim, a Lei impõe ao juiz de Instrução, que depois de constatada a alteração dos factos em sede de despacho de pronuncia, deve comunicar essa alteração aos arguidos, a esta comunicação, e por respeito aos princípios do contraditório e do direito de defesa dos arguidos, os sujeitos processuais podem reagir e têm o direito de se pronunciar sobre a mesma, quer quanto à existência dos pressupostos processuais necessários ao conhecimento dos factos, quer quanto ao seu acordo para esse conhecimento;
Depois, dependendo das posições do Ministério Público e arguidos ou a Instrução prosseguirá (depois preparada a defesa relativamente aos novos factos), ou aquela comunicação valerá como denúncia apresentada ao Ministério Público para este iniciar o procedimento criminal pelos novos factos.
Dado que este formalismo não foi respeitado nos presentes autos de Instrução Criminal, ocorre a NULIDADE prevista no art. 309 nº 1 do C.P.Penal, com a consequente anulação de todos os actos posteriormente praticados, nos termos do nº 2 do art. 122 do mesmo diploma.
A alteração substancial respeita a factos constitutivos do crime pois é uma condição objectiva de punibilidade que não se verificava na data da acusação, sendo certo que alguma Jurisprudência vai no sentido de que a norma da alin. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, é uma norma descriminalizadora.
A alteração substancial dos factos agora verificada no despacho de pronúncia de 21 de Julho de 2008, não foi notificada previamente aos arguidos, para que se lhe permitisse a sua defesa e/ou se pronunciassem acerca daquela alteração à acusação, sendo que a decisão recorrida é não só nula por violar o disposto nos artºs 60, 61 nº 1 b), 309, 359º e 379 nº 1 alíneas b) e c) do C.P.P (estes dois últimos preceitos por força do estatuído no artº 4º do C.P.P) mas também é nula por violar os princípios da defesa dos arguidos e do contraditório.
Acontece que o despacho de pronúncia é NULO porque os arguidos não foram ouvidos sobre o teor das informações carreadas para os autos pela Administração Fiscal. Com efeito, os arguidos tem o direito a ser ouvidos sobre a resposta da Administração Fiscal pois como é sabido, o Legislador, introduziu através da Lei nº 53-A/2006 a nova exigência prevista no art. 105 nº 4-b) do RGIT e não tendo simultaneamente alterado, como se impunha, o disposto no art. 105 nº 6 do RGIT), fez uma distinção.
1. Por todo o exposto o despacho de pronúncia é NULO porque os arguidos deveriam ter sido ouvidos pelo Tribunal para se pronunciarem sobre a aplicabilidade dos regimes do art. 105 nº 4 al. b) e nº 6 do RGIT, sendo certo que esta última pressupõe a existência da infracção de pequeno valor – não exceder € 2.000,00 – considerando cada declaração.
2. O despacho de pronúncia é NULO porque os arguidos também têm direito de ser ouvidos pelo Tribunal para se averiguar se a "coima aplicável" aludida no art. 105 nº 4-b) do RGIT, será determinada "pelo seu valor mínimo", não indicando, sequer, qual a contra-ordenação que considera verificada neste caso particular (sendo certo que, o DL nº 64/89, de 25/2 – que estabelece o regime de contra-ordenação no sistema da segurança social – não prevê contra-ordenação equivalente à prevista no art. 114 do RGIT, v.g. no caso em que a conduta consiste na falta de entrega da contribuição devida à segurança social no prazo legal).
3. O despacho de pronúncia é NULO porque os arguidos têm ainda direito ao contraditório, ou seja, nos casos em que a Administração Fiscal, na notificação a efectuar nos termos do art. 105 nº 6 do RGIT, terá de ter em atenção o "valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal" (ou seja, reportando-se à contra-ordenação prevista no art. 114 do RGIT).
4. O despacho de pronúncia é NULO porque a omissão do contraditório sobre os novos factos e, consequentemente sobre o teor da notificação aludida no art. 105 nº 4-b) do RGIT, pode determinar a violação do valor da coima aplicável, tendo em atenção o disposto no mesmo art. 114 do RGIT (coima que é variável e, portanto, poderá ser fixada em valor diferente do mínimo, v.g. tendo em atenção o disposto no art. 27 do RGIT).
Conforme se alcança do artº 309º, n.º 1 do CPP a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público.
No que diz respeito ao que seja alteração substancial dos factos descritos na acusação resulta do art.º 1º alínea f) que se traduz na imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Salvo o devido respeito, torna-se evidente que o despacho de pronúncia proferido nos autos não imputa aos arguidos factos que constituam um crime diverso do imputado pelo MP ou agravação dos limites máximos aplicáveis.
Na verdade, tal despacho apenas se limite a consignar que «Os arguidos notificados para efeitos do disposto no art.º 105º , n.º 4 , alínea b) do RGIT em conformidade com fls. 302 ss, que aqui se dá por integralmente reproduzido, não procederam a qualquer pagamento».
Sobre a natureza de tal circunstância no caso concreto dos autos já ocorreu caso julgado em face do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 7.05.2008 e em apenso aos autos – 98/06.8IDLRA-B – que desatendeu por completo a pretensão dos arguidos – e que refere «Quanto à notificação em si ela configura uma condição de procedibilidade, figura própria da lei adjectiva (…). Mas note-se que nenhuma nova lei processual pode afectar a valia dos actos processuais validamente praticados segundo a lei da época em que foram praticados. O que significa que a acusação tendo sido validamente praticada tem de subsistir . Apenas haverá que dar ao contribuinte cuja situação seja prevista no segmento inicial da referida alínea b) esta nova oportunidade de pagamento com vista à sua não punição». – pag . 84 dos referidos autos.
Assim e como se refere no citado acórdão, uma vez que o facto típico é o mesmo antes e depois da alteração legal – v. p. 83 – a alteração apenas se reconduz a uma nova possibilidade dos contribuintes relapsos que tenham efectuado as suas declarações não virem a ser punidos desde que no prazo referido procedam ao pagamento do devido e acréscimos legais indicados.
Em conformidade e ao mencionar-se o cumprimento da referida alínea b) do art.º 105º, n.º 4 do RGIT na acusação não se está a proceder a qualquer alteração substancial dos factos descritos na acusação.
A tudo isto acresce que o Supremo Tribunal de Justiça veio expressamente tomar posição sobre a questão no sentido de que «As condições objectivas do punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção anti-jurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção. Por seu turno, os pressupostos processuais são regras do procedimento cuja existência se fundamenta na possibilidade de desenvolver um procedimento penal e ditar uma sentença de fundo. Como os pressupostos processuais pertencem exclusivamente ao direito processual não afectam nem o conteúdo do ilícito, nem a punibilidade do facto, limitando-se exclusivamente a condicionar a prossecução da acção penal»
(…) Estamos em crer que é inequívoco o entendimento de que a verdadeira essência das condições objectivas de punibilidade como categoria dogmática autónoma no marco dos pressupostos materiais de punibilidade é, na perspectiva substancial, a sua autonomização em relação á ilicitude. O que sucede dado que esta classe de condições se coloca à margem da conduta ilícita e, consequentemente, a sua verificação vem a colocar em relevo tão-somente a questão da necessidade da pena. Nessa sequência, e num plano de conceitos, os elementos do tipo de ilícito e condições objectivas de punibilidade são noções que se excluem mutuamente (21). Como se referiu, as condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que se encontram em relação directa com o facto mas que não pertencem nem ao tipo de ilícito nem ao de culpa. Constituem pressupostos materiais da punibilidade. A origem histórica do instituto reflecte a necessidade de conciliar exigências contrapostas. Por um lado, existem desde sempre razões de conveniência prática e de oportunidade de política criminal que levam a subordinar a efectiva punibilidade de alguns tipos de comportamentos ao verificar de determinadas circunstâncias: proceder a uma punição incondicionada pode em certos casos conflituar efectivamente com a tutela de outros interesses merecedores de consideração ou, mais vulgarmente, provocar inconvenientes superiores às vantagens que do sancionamento se retiram. Por outro lado, vigorando em matéria penal o princípio da legalidade, as razões de conveniência ou de oportunidade não podem estar condicionadas ao poder discricionário do juiz: o princípio da legalidade impõe ao legislador a tipificação expressa das circunstâncias capazes de influenciar as opções relativas às concretas aplicações de pena (22). Neste ponto de vista, a introdução legislativa de condições objectivas de punibilidade desdobra-se em duas funções: uma função de delimitação ou da redução da relevância penal de determinados comportamentos e, simultaneamente, uma função de garantia ligada ao respeito pelo principio da legalidade (23). As condições objectivas de punibilidade próprias (24) são puras causas de restrição da pena, podendo ser perspectivadas como o contraponto objectivo das causas pessoais de exclusão ou de anulação da pena. Isto porque ainda que se verifiquem o ilícito e a culpa, o legislador rejeita, em determinados casos, a necessidade de pena quando não se verifique uma circunstância ulterior que possa referir-se ao próprio facto, ou à evolução subjacente, e lhe confere uma maior significação na relação com o mundo circundante. Como acentua Jeschek, o merecimento da pena pela prática do facto implica, em principio, a necessidade da pena, sendo que circunstâncias existem em que, antes que possa reconhecer-se a necessidade politico criminal da mesma, deve produzir-se, além do mais, uma particular deterioração dos valores protegidos pelo correspondente preceito penal. São as circunstâncias que devem acrescentar à acção que realiza um ilícito responsável para que se gere a punibilidade e que têm subjacente uma ponderação de finalidades extra penais que têm prioridade em relação á necessidade da pena (25). As condições objectivas de punibilidade são, assim, circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar anti jurídico importe consequências penais (26) (27). São condições em que uma ponderação das finalidades extra penais tem prioridade em face da necessidade da pena. Uma vez que não pertencem ao tipo não se requer que sejam abrangidas nem pelo dolo nem pela negligência, A aparição das condições objectivas de punibilidade é indiferente para o lugar e tempo do facto.
As condições objectivas de punibilidade participam de todas as garantias do Estado de Direito estabelecidas para os elementos do tipo. Jeschek exemplifica com a aplicabilidade da função de garantia da lei penal ou as exigências de prova sobre as mesmas condições».
E concluiu tal acórdão que: «A exigência prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2 nº 4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT)».
Em relação ao demais alegado pelos arguidos de que os mesmos não forma notificados para querendo se pronunciarem sobre o cumprimento ou não da referida alínea b) do art.º 105º, n.º 4 do RGIT, com violação do principio do contraditório sempre se dirá que não se vislumbra a existência de qualquer nulidade processual atento o disposto no art.º 118º, n.º 1 do CPP . Quando muito tal vício constitui uma irregularidade processual que em face do disposto no art.º 123º do citado diploma se encontra já sanada.
Em conformidade e salvo o devido respeito por opinião em sentido contrário, improcede a argumentação dos requerentes sendo o incidente suscitado meramente dilatório,
Custas do incidente que se fixa em 5 UCs, sem prejuízo do apoio judiciário.
Notifique.
(…)”.

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Da nulidade da decisão instrutória por pronunciar os arguidos por factos que constituem uma alteração substancial dos descritos na acusação

1. Pretende a recorrente que constituem alterações substanciais dos factos as alterações às condições objectivas de punibilidade dos crimes fiscais e de descriminalização em função do valor, operadas através das sucessivas leis orçamentais, pelo que deveria o Mmo. Juiz de Instrução comunicar a alteração substancial ocorrida face aos novos factos apurados e que implicavam a requalificação do crime constante da acusação para subsunção mais grave. Não o tendo feito, foi praticada a nulidade prevista no art. 309º, nº 1, do C. Processo Penal [conclusões 1 a 4 e 8].
Na perspectiva da recorrente, que se apreende no corpo da respectiva motivação do recurso, o facto novo que consta do despacho de pronúncia e não consta da acusação é o constante do ponto 19º daquele despacho, que tem o seguinte teor:
Os arguidos notificados para os efeitos do disposto no art. 105º, nº 4, alínea b) do RGIT em conformidade com fls. 302 e ss, que aqui se dá por reproduzido, não procederam a qualquer pagamento.”.
Posto isto.

1.1. Como é sabido, a Constituição da República Portuguesa consagra no seu art. 32º, nº 5, a estrutura acusatória do nosso processo penal. Consequência desta estrutura, ao nível da fase da instrução, é a vinculação do juiz de instrução na pronúncia, ao complexo factual definido na acusação ou no requerimento instrutório.
Por isso, dispõe o art. 309º, nº 1, do C. Processo Penal que, a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.

Nos termos do art. 1º, f), do C. Processo Penal, considera-se «alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Os arguidos foram acusados pelo Ministério Público pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30º, nº 2 e 79º do C. Penal, e 6º a 8º e 105º, nºs 1 e 5, do RGIT, conjugados com os arts. 91º, 98º, nºs 1 e 3, 99º e 101º, do CIRS e 35º e 44º, da LGT.
Este crime, porque agravado pelo nº 5 do art. 105º, do RGIT, é punível com prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
Os arguidos foram pronunciados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. pelos arts. 91º, 98º, nºs 1 e 3, 99º e 101º, do CIRS, 35º e 44º, da LGT, 6º a 8º e 105º, nºs 1. 4, a) e b), e 5, do RGIT, e 30º, nº 2 e 79º, do C. Penal.
Mantendo-se na decisão instrutória a agravação pelo nº 5 do art. 105º, do RGIT, a moldura penal aplicável é precisamente a mesma que decorre dos termos da acusação.

Assim, o crime pelo qual foram os arguidos pronunciados é precisamente o mesmo crime pelo qual foram acusados. Logo, não existe na pronúncia, imputação de crime diverso.
E como se mantém, obviamente, a mesma moldura penal abstracta, não existe qualquer agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

1.2. É certo que o que consta do ponto 19º do despacho de pronúncia, que atrás se deixou transcrito, não integrava a acusação pública mas isto pela simples razão de que, tendo a mesma sido deduzida em 12 Dezembro de 2006 [como refere a arguida no requerimento em que arguiu a nulidade do despacho de pronúncia, a fls. 23 verso destes autos de recurso, e concretizou na resposta ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto], e estando a matéria vertida naquele ponto directamente relacionada com a nova alínea b) do nº 4, do art. 105º, do RGIT, aditada pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e entrada em vigor em Janeiro de 2007, não poderia nunca constar daquela peça acusatória.

O nº 1, do art. 105º, do RGIT [na redacção anterior à da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro] dispõe:
Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”.

Assim tipifica a lei o crime de abuso de confiança fiscal que tutela, além do mais, a confiança do credor tributário na capacidade contributiva dos respectivos devedores (cfr. Prof. Costa Andrade, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 134, 309), desenhado como crime de omissão pura [consuma-se no momento em que termina o prazo para o cumprimento pelo agente da prestação tributária a que estava obrigado e que omitiu – art. 5º, nº 2 do RGIT].
São pois, elementos constitutivos do respectivo tipo:
- A não entrega pelo agente à administração tributária de prestação tributária deduzida nos termos da lei, entrega que aquele estava obrigado a efectuar e;
- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto.

A Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, como se referiu, alterou o art. 105º do RGIT, dando distinta redacção ao seu nº 4.
Assim, na redacção anterior à dada por esta lei, o nº 4 do art. 105º do RGIT tinha a seguinte redacção:
Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.”.
Aqui se estabelecia uma condição objectiva de punibilidade (cfr. Cons. Lopes de Sousa e Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, 2ª Ed., 645 e Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 166).
Com a alteração introduzida pelo art. 95º da Lei nº 53-A/2006, o nº 4 do art. 105º passou a ter a seguinte redacção:
Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”.

Desta forma, a condição objectiva de punibilidade prevista na versão originária do nº 4 do art. 105º do RGIT passou para a actual alínea a) do mesmo número. E na recém criada alínea b) estabeleceu-se uma segunda condição objectiva de punibilidade que só opera, além do mais, se a prestação tiver sido comunicada à administração tributária através da correspondente declaração.

A tipicidade, a ilicitude e a culpa constituem as categorias do crime. Com a sua verificação o facto, em regra, é também punível.
As condições objectivas de punibilidade integram, juntamente com as causas de exclusão da pena, os pressupostos adicionais da punibilidade.
Se, por razões de prevenção geral ou especial, ou por razões de tutela do bem jurídico, o legislador, excepcionalmente, estabelece uma condição objectiva de punibilidade, é então seguro que ela não integra, nem o facto típico e ilícito, nem a culpa.
Assim, e acompanhando parte significativa da jurisprudência (cfr. Acs. do STJ de 20/12/2007, nº 07P3220 e de 10/10/2007, nº 07P2077, ambos em http://www.dgsi.pt/jstj, de 07/02/2007, CJ, S, XV, I, 184, de 21/02/2007, nº 06P4097, http://www.dgsi.pt/jstj, e de 21/03/2007, nº 06P4079, da R. de Coimbra de 14/03/2007, nº 1728/06.7IRCBR, http://dgsi.pt/jtrc, de 21/03/2007, nº 232/04.2IDGRD.C1, http://dgsi.pt/jtrc, e de 28/03/2007, nº 72/03.6IDAVR.C1, http://dgsi.pt/jtrc, da R. de Lisboa de 23/04/2007, CJ, XXXII, II, 134, e da R. do Porto de 11/07/2007, nº 10.227/06.5, http://www.dgsi.pt/jtrp), sempre entendemos que a nova condição objectiva de punibilidade constante da alínea b), do nº 4 do art. 105º do RGIT, porque não integra o facto típico e ilícito nem a culpa, não alterou os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal, que continuam a ser, apenas, os que constam do nº 1 do art. 105º do RGIT – e muito menos o eliminou da lista dos crimes – pelo que, não operou a descriminalização das condutas anteriores que a não preenchem.
E é também este o entendimento que se colhe do Acórdão Uniformizador do STJ de 09/04/2008 (proc. nº 07P4080, em http://www.dgsi.pt), que fixou a seguinte jurisprudência obrigatória:
A exigência prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2º, nº 4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT).”.

Resta pois dizer que o teor do ponto 19º do despacho de pronúncia, apenas relacionado com a nova alínea b), do nº 4, do art. 105º, do RGIT e portanto, com uma condição objectiva de punibilidade, em nada alterou o tipo do crime pelo qual foram os arguidos acusados e depois, pronunciados.
1.3. Em conclusão do que antecede, não tendo o teor do ponto 19º do despacho de pronúncia a virtualidade de imputar aos arguidos um crime diverso do acusado pois o crime é precisamente o mesmo – abuso de confiança fiscal agravado – e não tendo também, como é evidente, possibilidade de conduzir à agravação dos limites máximos das penas aplicáveis – a pena é, necessariamente, a mesma – não se traduz tal ponto numa alteração substancial dos factos descritos na acusação pública e por isso, não enferma o despacho de pronúncia da nulidade prevista no art. 309º, nº 1, do C. Processo Penal.
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Da nulidade decorrente da omissão de audição da arguida sobre tal questão e sobre o teor da notificação efectuada ao abrigo do art. 105º, nº 4, b) do RGIT na redacção da Lei 53-A/2006 de 29 de Dezembro

2. Pretende a recorrente que, a não se entender existir pronúncia por factos que constituem uma alteração substancial dos descritos na acusação, sempre deveria ter sido ouvida sobre o que veio a constar do ponto 19º da pronúncia bem como, bem como sobre o teor da notificação efectuada ao abrigo do art. 105º, nº 4, b), do RGIT [conclusões 5 a 7 e 8].
Entende pois a arguida que não lhe foi assegurado o direito ao contraditório.

Dispõe o art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa:
O processo criminal tem natureza acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.”.

O princípio do contraditório ou de audiência que, como se vê, tem assento constitucional, consiste na oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo (Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 153). Dito de outra forma, quer a acusação, que a defesa, têm o direito de se pronunciarem sobre as alegações, as iniciativas, os actos ou outras atitudes processuais da outra (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª Ed., 77).
Deve notar-se que a fase da instrução, e como decorre da norma constitucional, não é completamente contraditória na medida em que, só no debate instrutório e na produção de prova que nele tenha lugar, impõe o C. Processo Penal que seja assegurado o princípio em questão (arts. 289º, nº 1, 298º e 301º, nº 2, do C. Processo Penal).
Posto isto.

2.1. A notificação sobre a qual entende a arguida que deveria ter sido ouvida é a prevista na alínea b), do nº 4, do art. 105º, do RGIT.
Esta norma define o objecto da notificação e os efeitos com ela visados.

Por outro lado, e face ao Acórdão que fixou jurisprudência, acima referido, a notificação em questão tem que ser efectuada em todos os processos pendentes, independentemente da fase em que se encontrem, pois que é aplicável, para os efeitos previstos no art. 2º, nº 4, do C. Penal, aos factos praticados anteriormente à sua entrada em vigor [verificados que sejam os demais pressupostos fixados daquele aresto].

Assim, sendo a notificação em análise uma consequência da lei, e sendo imposta a sua aplicação aos factos pretéritos por força de jurisprudência obrigatória, não se descortina qualquer razão que determine a necessidade de assegurar o contraditório, como pretende a arguida.

2.2. E também não tinha que ser assegurado o contraditório relativamente ao que a administração fiscal informou sobre a conduta dos arguidos na sequência da notificação feita.
É que, feita tal notificação, cujo conteúdo, portanto, não podia ser ignorado pelos notificados, podiam os mesmos então reagir se porventura entendessem que o respectivo teor não era conforme a lei.
Pretender a arguida ser notificada da resposta da administração fiscal que só pode ter por objecto a sua conduta [activa ou passiva], bem como a dos demais arguidos, relativamente à notificação efectuada e que, portanto, conhece, é destituído de fundamento legal.

2.3. Em conclusão, não enferma o despacho de pronúncia da apontada nulidade.
Mas ainda que assim não fosse, e como se refere no despacho recorrido, estaríamos perante uma mera irregularidade, já sanada nos termos do art. 123º, nº 1, do C. Processo Penal.
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Da inconstitucionalidade material do art. 105º, nº 1, do RGIT

3. Na resposta ao parecer do Exm. Procurador-Geral da República veio a arguida, além do mais, invocar a inconstitucionalidade material do art. 105º, nº 1, do RGIT, por violação do art. 27º, nº 1, da Lei Fundamental pois, ao deixar de prever como elemento do tipo a «apropriação» e passando a punir apenas a não entrega das prestações, entra-se no campo da prisão por dívidas, sem ressonância ética para se localizar no domínio criminal.
Vejamos se assim é.

Dispõe o art. 27º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa que, todos têm direito à liberdade e à segurança.
O direito à liberdade, no âmbito deste preceito, corresponde ao direito à liberdade física, ao direito a não ser detido que compreende os seguintes aspectos: o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas fora dos casos previstos no mesmo artigo [v.g. prisão preventiva]; o direito de não ser aprisionado ou constrangido por parte de outrem e; o direito à protecção do Estado contra os atentados de outrem à própria liberdade (cfr. Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Ed. Revista, 478).

Parte da doutrina vem questionado a constitucionalidade das incriminações por abuso de confiança fiscal, por alegada violação do princípio da proibição de prisão por dívidas, previsto no art. 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicável por força do disposto no art. 8º, nº 2, da Lei Fundamental, princípio segundo o qual, ninguém pode ser privado da liberdade por não poder cumprir uma obrigação contratual (cfr. Prof. Costa Andrade, RLJ, Ano 134, 307 e ss.).
Certo é porém, que o Tribunal Constitucional tem vindo a decidir no sentido da conformidade do crime de abuso de confiança fiscal com a Constituição da República, essencialmente porque a obrigação tributária não é uma obrigação contratual mas legal [o dever de pagar impostos é um dever fundamental] e porque o agente do crime, enquanto substituto tributário, ocupa uma posição próxima do fiel depositário (cfr. Acs. do T. Constitucional, nº 516/00 de 29 de Novembro, nº 427/02 de 18 de Outubro e nº 54/04 de 20 de Janeiro, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
E nenhumas razões vemos, até porque nada de novo adianta a arguida, para divergir do entendimento do Tribunal Constitucional pois, como é evidente, a obrigação tributária não é nunca uma obrigação contratual não podendo por outro lado ser esquecido, que é essencialmente através das receitas fiscais que o Estado assegura a realização dos fins para que existe.

Em conclusão, improcede a invocada constitucionalidade.
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Na motivação de recurso, ainda que de forma meramente incidental (cfr. fls. 48 v destes autos e notas 4 e 5 a fls. 44) faz a arguida alusão à nova redacção que a lei do orçamento para 2009 (então ainda não aprovada) iria dar ao art. 105º, do RGIT com consequências ao nível da descriminalização da conduta.
Já na resposta ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, entrada em juízo a 25 de Fevereiro de 2009, refere a arguida a entrada em vigor da nova redacção do nº 1 do art. 105º, do RGIT, dada pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, relativamente à descriminalização das condutas referentes à não entrega de prestações tributárias de valor inferior a € 7.500.

Trata-se de uma questão nova, na medida em que não foi, nem podia ser conhecida pelo Mmo. Juiz a quo.
Uma vez que os arguidos foram pronunciados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, e a fim de ser garantido o duplo grau de jurisdição, devem ser conhecidas na 1ª instância as incidências decorrentes da aplicação ao caso em apreço da Lei Nova isto é, da nova redacção dada ao art. 105º, nº 1, do RGIT pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
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III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, e em consequência, confirmam integralmente o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 87º, nº 1, b), do C. Custas Judiciais).

Coimbra, 28 de Abril de 2009


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(Heitor Vasques Osório)

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(Jorge Baptista Gonçalves)