Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
108/09.7TTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
TRABALHADOR INDEPENDENTE
Data do Acordão: 09/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 6º DO DEC. LEI 159/99, DE 11/05; DEC. LEI 143/99, DE 30/04
Sumário: I – É reparável o acidente sofrido por trabalhador independente no regresso do local onde prestou serviços inerentes à sua actividade de mediador de seguros para o estabelecimento.

II – Ao A. cabe provar que se deslocava de tal local para o estabelecimento, circulando pelo trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto.

III – Provando-se que depois de terminar o serviço com os clientes o A. iniciou o regresso ao estabelecimento, sofrendo o acidente, tal ónus revela-se cumprido.

Decisão Texto Integral:

   Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Coimbra:

   E(…), interpôs recurso da sentença.

   Pede a sua revogação e prolacção de acórdão que julgue a acção procedente.

   Formula as seguintes conclusões:

[…]

   C(…), S.A., com sede em Lisboa, contra-alegou pugnando por que se negue provimento ao recurso, defendendo, em suma, que não existe qualquer contradição entre a fundamentação e a sentença, nem se mostra violado o disposto no Artº 6º do DL 143/99.

   O MINISTÉRIO PÚBLICO junto desta Relação emitiu parecer segundo o qual não há a invocada contradição e, atentas as especificidades do regime aplicável aos trabalhadores independentes, a sentença não merece censura.

   O Recrte respondeu alegando que o Ministério Público, tal como a sentença, qualificam, erroneamente o acidente como in itinere.


*

   Para cabal compreensão, eis um breve resumo dos autos:

   E(…) veio instaurar acção especial emergente de acidente de trabalho, contra C(…), alegando, em síntese, que, enquanto profissional de seguros por conta própria (mediador), celebrou com a ré um contrato de seguros abrangente dos riscos de acidente de trabalho como trabalhador independente; a 23 de Fevereiro de 2008, pelas 22 horas, foi vítima de um acidente de viação, quando regressava da sua actividade de angariação e visita de clientes, apesar de ser um sábado, devendo o sinistro ser havido também como de trabalho; resultaram de tal acidente incapacidades temporárias e uma incapacidade permanente para o trabalho de 28,89 %; em consequência do acidente, gastou, com transportes, consultas e taxas moderadoras, um total de 777,36 €.

   Finalizando o seu articulado inicial, o autor pediu a condenação da ré a pagar-lhe: 976,38 euros, a título de incapacidade temporária; 777,36 euros, a título de despesas; 1.140,98 euros de pensão anual e vitalícia, a partir de 22 de Maio de 2008, inclusive, obrigatoriamente remível; juros à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

   A ré contestou, dizendo, em resumo que o acidente se verificou fora do horário do trabalho e quando o autor regressava de uma festa particular de aniversário do filho de um seu amigo, pelo que não pode, assim, ser considerado um acidente de trabalho, por não regressar o autor de qualquer actividade profissional, nem no percurso entre a sua casa e o seu habitual local de trabalho, nem no horário em que normalmente exerce a sua actividade.

   Terminou a sua contestação requerendo a sua absolvição do pedido, com as legais consequências.

   Realizou-se a audiência de julgamento, na sequência da qual se proferiu sentença que julgou a acção improcedente.


***

   Das conclusões acima exaradas, que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso, extraem-se duas questões a decidir:

   1ª – A sentença é nula?

   2ª – O Tribunal errou na aplicação que fez do Artº 6º do DL 143/99?


***

   A matéria de facto cuja prova se obteve é a seguinte:

[…]


***

   Comecemos, então, a discussão, detendo-nos na primeira questão enunciada – a nulidade da sentença.

   […]


*

   Detenhamo-nos, então, sobre a segunda questão – a errada aplicação do Artº 6º do DL 143/99 aos factos.

   Ponderou-se na sentença que o acidente que nos ocupa ocorreu no exercício da condução, por parte do sinistrado, sem que este, nesse momento, exercesse alguma actividade típica da sua profissão. E, subsumindo o caso à figura retratada no nº 2 do Artº 6º do DL 143/99 de 30/04, concluiu-se que o sinistrado se encontrou no exercício do seu trabalho, na localidade de Matança, mas que tal trabalho se desenvolveu até um momento temporal que não é compatível com a afirmação, feita pelo A., de que regressava do seu trabalho. Defendeu-se, para tanto, que a versão cuja prova se obteve “não permite saber se o regresso se deu logo após a actuação do A. enquanto profissional ou se mediou entre os dois momentos qualquer outra actividade (ou inactividade) que nada tenha a ver com o desempenho profissional”.

   Começamos por sinalizar que, atenta a data de ocorrência do sinistro, – 23/02/2008 –, e a especificidade decorrente da circunstância de o A. ser trabalhador independente, se lhe aplica o regime decorrente do DL 159/99 de 11/05.

   Decorre de tal diploma a obrigatoriedade de efectuar um seguro que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas pela Lei 100/97 de 13/09 (Artº 1º/1), regendo-se o seguro respectivo, com as necessárias adaptações, pelo que ali se dispõe e diplomas complementares (Artº 2º).

   No que concerne ao conceito de acidente de trabalho, o regime especialmente aplicável aos independentes contém normas próprias, que se afastam do regime geral consignado na Lei 100/97.

   É assim que, estando nós em presença de acidente ocorrido fora do local de trabalho ou do local onde é prestado o serviço, só se considera acidente o que ocorrer no trajecto que o trabalhador tenha de utilizar na ida e regresso para e do local de trabalho ou entre o local de trabalho e o local da refeição ou entre quaisquer destes locais e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento (Artº 6º do DL 159/99).

   Entende-se por local de trabalho para este efeito todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho (Artº 6º/3 da Lei 100/97 e 6º/a) do DL 159/99).

   Por sua vez, na sequência do que veio a ser regulamentado pelo DL 143/99 de 30/04, na alínea a) do Artº 6º da Lei 100/97 – que acolhe os conceitos de acidente no trajecto de ida e regresso de e para o local de trabalho – estão compreendidos os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador entre, no que para aqui releva, o local onde (por determinação da entidade empregadora) presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual (d)).

   Conforme se exarou no Acórdão do STJ de 28/03/2007, na actual LAT... para que se considere um acidente de trajecto como acidente de trabalho basta que ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador, mesmo quando esse trajecto sofra interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito” (disponível em www. dgsi. pt, Refª 06S3957).

   Consignou-se na sentença, e não mereceu qualquer reparo, que o trajecto efectuado é o adequado e, como acima já se deixou antever, que o A. desenvolveu actividade profissional no local de onde regressava.

   Não há, assim, dúvidas, de que o A. regressava para o seu local de trabalho – o estabelecimento – de um local onde prestou serviços.

   A sentença afastou a reparabilidade do sinistro porque, como já se disse, não se provou que o trabalho se desenvolveu até um momento temporal compatível com a afirmação de que regressava do trabalho, tudo indicando estar subjacente a esta conclusão que se deveria alegar a concreta hora de término das negociações a fim de se poder aferir se a viagem de regresso se verificou durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto a fazê-la, concluindo-se que, por se ter provado apenas que foi já depois de terminar com os clientes que o A. iniciou o regresso, e não, conforme alegado, que foi justamente depois de terminar, não se prova o elemento temporal que permitiria a subsunção dos factos no conceito de acidente de trabalho.

   Com o devido respeito parece-nos que o encadeado de factos leva á conclusão oposta, não podendo pôr-se a cargo do A. um ónus que não lhe compete ou, dito de outra forma, impondo-se-lhe uma obrigação de provar o contrário de quanto a R. invocava.

   Ao A. compete a alegação e prova dos factos que preencham os conceitos sobre os quais nos vimos debruçando. Á R., por sua vez, o de abalar a estrutura factual.

   Ora, os autos evidenciam que o acidente ocorreu cerca das 22h, quando o autor regressava ao seu estabelecimento em Fornos de Algodres, vindo de alguns contactos para angariação de seguros, realizados, quer na festa de anos de um filho do seu amigo e cliente, A(...), quer fora desse âmbito. Já depois de terminar com estes clientes – apresentados pelo A(...) –, o autor iniciou o regresso ao estabelecimento e foi vítima do acidente dos autos.

   Sabendo-se quando ocorreu o acidente, não se sabe até quando se desenvolveu o trabalho. Mas, daí não pode concluir-se que o momento de ocorrência do acidente não é compatível com a sua caracterização como acidente de trabalho.

   Nenhum facto indicia algum desvio de percurso ou que o tempo em que ocorreu o acidente não seja compatível com o gasto pelo A. no regresso., sabendo-se, contudo, que, depois de terminar com os clientes, o A. iniciou o seu regresso ao estabelecimento. Donde se nos afigura que o ónus a cargo do A. se mostra cumprido, revelando-se errónea a imposição do ónus de provar para além dos elementos que integram o conceito.

   Na verdade, não é ao A. que cabe a prova de que entre a sua actuação profissional e o seu regresso não mediou qualquer outra actividade ou inactividade que nada tenha que ver com o seu desempenho profissional. Tal prova, pela positiva, cabia á R. e esta, manifestamente, não a efectuou.

   Donde se nos afiguram cabalmente preenchidos os conceitos em análise, concluindo-se que o A. tem direito ás prestações decorrentes da LAT pelo acidente de que foi alvo.

   O A. reclama pensão anual, indemnização por IT e o valor das despesas.

   Se do acidente resultar redução na capacidade de trabalho, o sinistrado terá direito, no caso de IPP inferior a 30% – como é o caso – a um capital de remição de uma pensão anual vitalícia que, no caso, se cifra em 1.140,98€.

   Por outro lado, em face da prova do período de incapacidade temporária, é-lhe devida a quantia reclamada – 976,38€.

   E, no que tange às despesas cujo valor se reclama, resultando elas evidentes no acervo fáctico, tem o mesmo direito à quantia também peticionada – 777,36€.

   Sobre as quantias devidas são devidos juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a citação até integral pagamento.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, condenar a apelada a pagar ao apelante:

a) o capital de remição de uma pensão anual vitalícia no valor de 1.140,98€, desde 22/05/2008, acrescido de juros de mora à taxa anual de 4% desde a citação até integral pagamento;

b) a quantia de 1.753,74€, acrescida de juros de mora à taxa anual de 45 desde a citação até integral pagamento.

   Custas pela Recrdª.

   Notifique.


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   Elabora-se o seguinte sumário:

   1 - É reparável o acidente sofrido por trabalhador independente no regresso do local onde prestou serviços inerentes à sua actividade de mediador de seguros para o estabelecimento.

   2 - Ao A. cabe provar que se deslocava de tal local para o estabelecimento, circulando pelo trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto.

   3 - Provando-se que depois de terminar o serviço com os clientes o A. iniciou o regresso ao estabelecimento, sofrendo o acidente, tal ónus revela-se cumprido.


MANUELA BENTO FIALHO (RELATORA)
LUÍS AZEVEDO MENDES
JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA