Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
127/09.3SAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 153º,Nº1 DO CP E 311ºNº1,2 E 3 DO CPP
Sumário: 1- A acusação considera-se manifestamente infundada quando: a) não contenha a identificação do arguido; b) não contenha a narração dos factos; c) não indica as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) os factos narrados não constituírem crime.
2.Não é licito ao juiz quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º do CPP fazer um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida.

3 Só quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.

Decisão Texto Integral: 11

I. RELATÓRIO.

No processo comum singular nº …/09.3SAGRD.C1, tendo sido deduzida acusação pelo Ministério Público contra M…, imputando-lhe a prática de um crime de ameaças, p.p. artigo 153º n.º 1 do Código Penal, o senhor juiz rejeitou a acusação, por se revelar manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º n.º 1, n.º 2 alínea a) e n.º 3 alínea d) do CPP.

Não se conformando com esta decisão, interpôs o Ministério Público recurso para este Tribunal da Relação.

Na sua motivação conclui:

«I — O Ministério Público, porque durante a fase de inquérito, recolheu indícios suficientes da prática pelo arguido M. do crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 1530, n° i, do Código Penal, deduziu acusação contra este.

II — Por despacho de fis. 47-48, o Mmo. Juiz “a quo” considerou que os factos narrados não constituem a prática de qualquer crime, tendo considerado a acusação manifestamente infundada, pelo que foi rejeitada.

III — Salvo o devido respeito por opinião contrária, os factos narrados, preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de ameaça.

IV - Resulta da acusação que, devido à atitude do arguido e seriedade com que foram proferidas as palavras que lhe dirigiu, o ofendido sentiu intranquilidade pela sua integridade fisica, o que o levou desde logo a participar os factos em causa nos autos, tendo o arguido agido com intenção de provocar receio no ofendido e de o afectar na sua liberdade de determinação.

V - No contexto em que tais expressões foram proferidas, não é de excluir a possibilidade de estas expressões serem susceptíveis de provocar medo e inquietação na pessoa do visado, face ao dito contexto circunstancial e à própria atitude e personalidade do arguido e visado.

VI - As palavras valem pelo seu sentido e pelo significado que se lhes atribui.

VII - Tendo o arguido usado as expressões que dirigiu ao ofendido, de forma séria e no contexto de um comentário que lhe foi desfavorável (como árbitro), com a intenção descrita na acusação, tendo o ofendido sido atingido na sua tranquilidade, não há dúvida de que se preenche o tipo de crime de ameaça, uma vez que, pelas razões aduzidas, dúvidas não haverá de que a atitude e as palavras usadas são idóneas a provocar na pessoa do ofendido o receio de vir a ser atingido na sua integridade fisica, o que o levou, desde logo, com tais fundamentos, a apresentar a queixa que deu origem aos presentes autos.

VIII - Entendemos, salvo o devido respeito por opinião contrária, não ser legitimo ao Mmo. Juiz “a quo”, nesta sede, rejeitar a acusação, pelas razões já expostas, não se pode dizer que tais factos, tal como estão narrados na acusação, não possam conduzir à eventual condenação do arguido em audiência de julgamento.

IX — Só a discussão ampla em audiência de julgamento poderá confirmar, com os juízos de certeza e segurança jurídica, a existência dos actuais indícios de ameaça, sendo certo que, os factos descritos na acusação são idóneos para submeter o arguido a julgamento por forma a esperar que da discussão em julgamento poderá decorrer a condenação do arguido por aqueles factos e com o enquadramento constante da acusação, ou de outro que seja legalmente consentido, sem prejuízo da aplicação das regras processuais adequadas.

X - Da factualidade constante da acusação, verifica-se que o arguido Mário Jorge Costa Pinto, em diversos dias, a saber: 12-02-2009, 15-02-2009, 07-03-2009 e 08-03-2009, enviou SMS para o telemóvel do ofendido tais expressões, com o intuito de o “irritar” cfr. fis. 23.

X - Tais factos, sempre seriam susceptíveis de configurar, em abstracto, a eventual prática do crime de perturbação da vida privada, previsto e punido pelo artigo 190°, n° 2, do Código Penal.

XII - Pelo que, também por este fundamento, o Mmo. Juiz “a quo”, não deveria ter rejeitado a acusação, sem prejuízo da aplicação das regras processuais adequadas.

XIII — Mas mesmo que assim se não entendesse, nunca o Mmo. Juiz “a quo” deveria ter proferido despacho de arquivamento dos autos, após o trânsito da decisão, mas sim, sempre seria de determinar a remessa dos autos ao Ministério Público.

XIV — O despacho de rejeição da acusação por manifestamente infundada, por inexistência de crime, violou as disposições conjugadas dos artigos 153°, n° 1 ou 190°, nos 1 e 2, do Código Penal e 311°, n° 1, n°2, alínea a e n°3, alínea d), do Código de Processo Penal.

XV — Face ao exposto, deverá ser dado provimento ao recurso interposto, determinando-se a substituição da decisão recorrida por outra que receba a acusação nos termos do artigo 313°, do Código de Processo Penal.

XVI — Caso assim se não entenda, deverá ser substituído o despacho na parte em que determina o arquivamento dos autos, após trânsito em julgado da decisão, por outro, que determine, apôs trânsito, a devolução dos autos ao Ministério Público».

Não foram produzidas contra-alegações, tendo o Exmo Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal emitido parecer concordante com o recorrente.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

A questão que importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente na sua motivação, sustenta-se tão só na questão de saber se se verifica no caso motivo para rejeição liminar da acusação, por manifestamente infundada.

Vejamos antes de mais o teor do despacho impugnado:

«O Tribunal é o competente.

Autue como processo comum com intervenção do tribunal singular.

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Compulsado o teor da acusação proferida pelo Ministério Público a fis. 33 a 37, verifica-se que ao arguido M é tão-só imputado ter dirigido ao ofendido J. as seguintes expressões, através de SMS:

“...lemb. aquilo. que. escreves te.pode. te.ficar. Caro. e. tudo.Mentira. eu. eide. te. dar. as .Normas. de. Inst.para. tu. as. ler. ok.perdeste. um. gr. amigo... “,

“...deixa.andar.uma.Umas.equipas.de.arbitragem.Em.Paz.andarem. apitar.muito.cuidado.com. essas. bocas...”

“... Isso. e. tudo, mentira. não. arranjas. lanha.para. te. queimar... “,

“...Eu. ate .pensava. Que fosses. afazer. o. Meu .jogo. isso. O .que. tu. disses. tedo. arb.GZ .mZ… eu. nao. admito. Isso .deixa .andar. a.arb.da.guarda.em.paz.e. tu.ja. la. andas. te. e.ja.algem. te.matou.a fome .Na. arbitragem. e. nao. so. isso.pode. te.fl car. caro. ok... “.

Alega-se ainda que o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, actuando de modo susceptível e adequado a causar receio e medo no ofendido, dadas as circunstâncias e o modo como proferiu as expressões em causa, fazendo temer o visado pela sua integridade física, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Assim imputa-lhe o Ministério Público a prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153°, n.° 1, do Cód. Penal.

Ora, dispõe o artigo 153°, n.° 1, do Cód. Penal que “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade fisica, a liberdade pessoal, a liberdade e auto determinação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”. Relativamente ao bem juridico protegido por tal incriminação, escreve Taipa de Carvalho (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, t. 1, pág. 342) que se trata da liberdade de decisão e de acção, uma vez que o ofendido, ao sofrer a conduta típica, fica afectado na sua paz individual, que é condição da verdadeira liberdade.

Segundo o mesmo autor, e já quanto ao elemento objectivo do crime de ameaça, será o mesmo o anúncio de um mal que constitua crime contra a vida, a integridade fisica, a liberdade pessoal, ou a liberdade e autodeterminação sexual, ou a bens patrimoniais de valor considerável, adequado a provocar, na pessoa a quem se dirige, receio ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Por outro lado, a conduta típica poderá traduzir-se na expressão de palavras, na realização de gestos ou na utilização de outro meio, desde que traduza o anúncio da prática de um dos crimes enumerados.

Face ao exposto, é imediatamente ao nível deste tipo objectivo que se nos colocam as maiores objecções no nosso caso concreto. Com efeito, não podemos esquecer que o tipo legal do crime de ameaça pressupõe um anúncio suficientemente claro da prática futura de um crime em concreto contra qualquer dos bens jurídicos que se explicitam no tipo legal. No caso dos autos, mesmo a demonstrar-se que o arguido em causa teria dirigido ao ofendido as expressões acima descritas, não conseguimos vislumbrar qual seja o (suposto) crime é que com tais atitudes pretenderia o mesmo arguido anunciar.

Por outro lado, julgamos que, face às expressões imputadas ao arguido, de forma nenhuma se pode extrair, como se faz na acusação, que com aquela expressão visasse tal arguido provocar no ofendido receio e medo, fazendo-o temer pela sua integridade fisica, pois não só estas extrapolações são insuficientemente fundadas nos factos objectivos, como também, por si só, não podem ter a virtualidade de “suprir” a vaguidade daqueles factos objectivos e com isso pretender referir-se (afinal) a um qualquer crime contra a integridade fisica, que não se vislumbra.

Perante o exposto, na medida em que entendemos que os factos narrados não constituem a prática de qualquer crime, a conclusão necessária é a de que a acusação se revela manifestamente infundada, pelo que vai rejeitada, nos termos do disposto no artigo 3 11°. n.° 1. n.° 2. al. a) e 3. al. d). do Cód. de Proc. Penal

Sem custas.

Notifique.

Oportunamente, após trânsito, arquivem-se os autos.

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Guarda, d.s.»

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Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente».

De igual modo, o nº 3 do mesmo artigo estabelece que «para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d)se os factos não constituírem crime».

Assente que o modelo processual penal vigente desde 1987 em Portugal se estrutura no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, (estrutura acusatória mitigada pelo princípio da acusação, segundo artigo 2º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal) um dos seus traços estruturais radica exactamente na distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e se for caso disso sustenta uma acusação e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação.

A compreensibilidade da lineariedade do modelo esteve, durante alguns anos, sujeita a várias dúvidas e flexões jurisprudenciais (que levaram inclusive à caducidade do Assento do STJ n.º 4/93 Nesse sentido a reforma de 1998, introduzida pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto veio efectuar algumas alterações que permitiram reforçar a clareza e a inequivocidade do modelo pretendido para o processo penal, nomeadamente explicitando as funções dos vários sujeitos processuais.

Nesse sentido e com essa intenção estabeleceu-se, normativamente, no artigo 311º nº 3 as situações que o legislador entendeu poder o juiz sustentarem uma rejeição da acusação, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido.

Impediu-se assim, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida. Nesse sentido os quatro motivos explicitados na lei são hoje muito claros: quando a acusação não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.

Ora esta taxatividade, legalmente estabelecida, não pode e não deve ser substituída por outra interpretação que não aquela que o legislador quis.

Se no que respeita às alíneas a) a c) não se suscitam grandes dúvidas sobre o que o seu conteúdo traduz, já a alínea d) [em causa também nestes autos] não sendo, nem podendo ser tão clara, não pode, na sua interpretação ir além do que a estrutura dos princípios processuais admite.

Ou seja só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.

E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.

Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.

Efectuado este esclarecimento e debruçando-nos agora sobre a decisão sub judice importa referir que o Senhor Juiz não seguiu este caminho imposto pela Lei. O que se passou foi apenas e só uma interpretação divergente sobre os factos imputados e que resultam do inquérito, absolutamente legítima, diga-se, mas que não permite nesta fase e à face do normativo referido a subsunção ao conceito de «manifestamente infundado».

Os indícios recolhidos subsumidos nos factos imputados podendo para o senhor juiz em causa ser insuficientes para, no seu juízo, configurarem o crime de ameaças, não foram postos em causa nem são «preto no branco» passíveis de não configurarem o crime imputado.

Os factos em causa, que se sustentam em afirmações constantes de vários SMSs assumem um conteúdo cuja interpretação não é incontroversa em função do contexto em que foram escritas e por isso não pode sem mais, afirmar-se que os factos não constituem crime (o que não quer dizer nem é a mesma coisa que os factos constituam crime, diga-se!).

Assim sendo e em conformidade a decisão em causa deve ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por inadmissibilidade legal, designe data para julgamento, se não se verificarem outras circunstâncias que impeçam a designação dessa data.

*

III DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, devendo o senhor Juiz, caso não encontre qualquer outro motivo que imponha a rejeição da acusação, dar seguimento aos termos do processo, tendo em conta ao artigo 311º do CPP.
Sem custas.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 25 de Março de 2010

Mouraz Lopes


Félix de Almeida