Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4231/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
LEI MAIS FAVORÁVEL
Data do Acordão: 02/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REENVIO
Legislação Nacional: ART.º 152º, NºS 1, AL. A), E 2 DO C. PENAL
Sumário: 1. O crime de maus tratos ao cônjuge, p. e p. pelo artº. 152º, nº.s 1, al. a), e 2, do Código Penal, só passou a ter natureza pública com a alteração da Lei 7/2000, de 27/5.
2. Por isso, na ausência de queixa, é essencial apurar, pelo menos, se os factos integradores daquele crime ocorreram depois de 2-6-2000, pois só estes poderão ser atendidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:
I-
1- Nestes autos de processo comum com o n.º 158/04 do 1º Juízo da comarca de Ourém, A... foi condenado, pela prática do crime de maus tratos ao cônjuge p. e p. pelo art.º 152º n.ºs 1 alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão com execução suspensa por 2 anos sob a condição de efectuar, em 30 dias, a contribuição de €500 para a APAV ( Associação Portuguesa de Apoio à Vítima ).
2- O arguido recorre, concluindo –
(…)
14. Tratando-se de conclusões desenquadradas das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os correspondentes factos terão ocorrido, pelo que insusceptíveis de caracterizarem o tipo de crime de maus tratos a cônjuge .
15. Pelo que , quando muito, o arguido só poderia ser condenado pelo crime de ofensas corporais simples previsto no art0 143º do C. Penal.
16. Não pode falar-se em reiteração de actos de agressão quando o provado não se encontra circunstanciado nos 23 anos de vida conjugal.
17. Dada a sua incerteza e imprecisão temporal, não deveria a factualidade ser integrada na estatuição do art.º 152º do Código Penal mas no crime de ofensa à integridade física simples.
18. Só poderiam revelar para a configuração do crime de maus tratos a cônjuge os factos ocorridos depois da entrada em vigor da lei n0 7/2000, de 27 de Maio.
19. Dos factos dados como provados somente encontramos um único facto -, o vertido no ponto 6. da sentença, perpetrado em Outubro de 2004.
20. Nenhum outro facto determinado com certeza e precisão temporal resulta provado por forma a poder enquadrar-se o comportamento do arguido/recorrente numa prática reiterada de actos de agressão.
3- Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido pelo infundado do recurso, no que foi secundado no parecer do Ex.mo Procurador - Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos e realizou-se a audiência.
Cumpre apreciar e decidir!
II-
1- Decisão da matéria de facto -
A) Factos provados -
(…)
3- Apreciação –
3.1.1- Antes do mais cumpre clarificar que tendo os interessados prescindido da documentação da prova produzida oralmente, se renunciou ao recurso da decisão sobre a matéria de facto -, cfr. art.ºs 364º/1 e 428º/2 do C. P. Penal.
Daqui que não releve a discordância do recorrente com a decisão da matéria de facto fora do alcance dos vícios enunciados no art.º410º/2 do Código de Processo Penal, vícios cuja indagação é também oficiosa -, cfr. Ac. do STJ de 19/10/95 uniformizador de jurisprudência.
3.2- Desde que o Código Penal de 1982 criou o tipo de crime em causa, este tem sofrido ao longo do tempo mutações que não podem ser ignoradas face aos termos em que, no caso, se apresenta a decisão da matéria de facto.
No período compreendido entre o início da vigência do Código e a sua revisão pela Lei n.º 48/95, de 15/3 [ em vigor a partir de 1/10/1995], o tipo legal exigia que o agente fosse determinado por «malvadez» ou «egoísmo» -, cfr. art.º 153/1 e 3 da versão originária.
Após esta revisão, o tipo prescindiu dos requisitos de «malvadez» ou «egoísmo», mas o procedimento criminal passou a depender de queixa -, cfr. art.º 152º/2 na versão da Lei n.º 45/95. Ou seja, com esta revisão o crime passou a ter a natureza de crime semi-público.
Este regime manteve-se até 7/9/1998 momento em que, embora se mantivesse a regra do procedimento dependente de queixa, se permitiu que o Ministério Público pudesse dar início ao procedimento «se o interesse da vítima o impuser e não houver oposição desta antes de ser deduzida a acusação» - cfr. redacção do n.º2 do artigo 152º na versão da Lei n.º 65/98, de 2/9.
Com a alteração da Lei n.º7/2000, de 27/5, o tipo passou a ter natureza de crime público.
3.3.1- Deu-se por provado que –
Arguido e ofendida são casados [ entre si ] desde 25 de Julho de 1982.
O arguido há vários anos vem agredindo física e verbalmente a sua cônjuge, sempre no interior da residência de ambos, sita em Ourém.
Frequentemente o arguido tem vindo a desferir-lhe empurrões, murros no corpo e bofetadas na cara.
O arguido, por várias vezes, quando está em casa com a família dirige à Jacinta Ferraz as expressões « És uma mulher morta», «És uma puta», «És uma vaca».
No dia 29 de Outubro de 2004, pelas 0H35 minutos, no interior da residência, o arguido puxou-a pelos cabelos e desferiu-lhe um murro nas costas; seguidamente, dirigiu-lhe as seguintes expressões: «És uma cabra, és uma grande puta, és uma vaca, já estás a ladrar».
O arguido, em muitas outras ocasiões, no interior da residência, bateu-lhe de forma idêntica à ora referida.
Ao longo dos anos, o arguido impôs-se-lhe pela força e intimidação verbal, fazendo com a mesma se sinta humilhada, constrangida, nervosa e permanentemente assustada. Fê-lo com intenção de magoar, ofender, causar medo, inquietação e insegurança, sabendo que a sua conduta era de molde a ofender fisicamente e a maltratar psicologicamente a sua mulher.
3.3.2- Ora, ressalvada a ocorrência do dia 29/10/2004, todo o relato de agressões físicas e morais inserto na sentença se reporta a momentos indeterminados da vivência conjugal [provavelmente] anteriores a 29/10/2004 [A ofendida, em cujo depoimento o tribunal assenta a versão dos factos, referiu no inquérito que « depois de 29 de Outubro do corrente ano [ 2004] praticamente não tem existido qualquer tipo de diálogo entre ambos, nem tem sofrido qualquer agressão ou ameaça»] , mas que urge precisar, ainda que só por mera aproximação temporal, já que não podem ser atendidas as ocorrências anteriores a 2/6/2000, ou seja, aquelas que forem anteriores à vigência da actual redacção do preceito, que caracteriza o crime como público.
Efectivamente, quanto às anteriores ocorrências extinguira-se a possibilidade do procedimento criminal por falta de apresentação de queixa da ofendida.
Nesta matéria pondera-se que, em termos gerais, é de aplicar a lei que concretamente se mostre mais favorável ao arguido, sendo de recusar a aplicação retroactiva da lei mais gravosa [cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, 1997, I pág. 272 e ss., sobre o regime de aplicação das leis processuais penais materiais.] .
3.4- A não localização temporal das agressões [físicas e/ou morais] anteriores a 29/10/2004 [Embora tal não sirva de elemento de prova, já se disse que no inquérito a ofendida afirmou não as haver em data posterior.], dentro da já longa vivência conjugal, e a falta dum mínimo de caracterização factual das mesmas, justifica que se afirme a presença, na sentença, do vício da insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada, vício previsto na alínea a) do n.º2 do art.º 410º do Código de Processo Penal,.
Na descoberta da verdade para a boa decisão da causa, há que determinar se as ocorrências relatadas sob os n.ºs 2, 3, 4 e 9 da decisão da matéria de facto são posteriores a 2/6/2000 e, dentro do possível materializá-las, i é, concretizá-las, dando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar em conformidade com o que se estatui no art.º 358º/1 do Código de Processo Penal.
Sem esta indagação não é possível a censura do arguido pelo crime por que se apresenta condenado.
III-
Decisão –
Termos em que se determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à matéria estranha à comprovada actuação de 29/10/2004, a efectuar pelo tribunal que nos termos do art.º 426-A do Código de Processo Penal for o competente.
Sem custas .

Coimbra,