Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
490/09.6JAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ATO SEXUAL DE RELEVO
Data do Acordão: 03/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 171º CP
Sumário: O arguido que ordena a uma menor de 6 anos de idade que baixe as cuequinhas e outra eventual peça de roupa que tivesse vestida por cima das mesmas, ficando nua da cintura para baixo e de seguida, e sem tirar a roupa, se aproxima desta, flete as pernas encosta a sua cintura e barriga à barriga dela, simulando a prática de uma relação sexual, pratica ato sexual de relevo, e assim o crime de abuso sexual de criança.
Decisão Texto Integral: No processo comum colectivo, acima identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferido acórdão que:
A) – Condenou o arguido, A..., pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
B) – Suspendeu a execução desta pena, por igual período ao da sua duração, subordinada ao dever de o arguido, no prazo máximo de seis meses, pagar à lesada a quantia fixada no pedido de indemnização civil, devendo pagar metade desse valor no prazo máximo de três meses.
C) – Julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela menor, B..., condenando o arguido a pagar-lhe a quantia de € 1.000 (mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da notificação para contestar até integral pagamento.

Deste acórdão interpôs recurso o arguido, A..., sendo do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso:

1ª O arguido, ora recorrente, não pode concordar com a forma como o tribunal a quo julgou a matéria de facto, nem com, tendo em conta a prova produzida, os factos que deu como provados.
2ª Desde logo, o Tribunal a quo desconsiderou, sem justificação plausível, testemunhos produzidos em audiência de discussão e julgamento relevantes para a boa decisão da causa e que colocavam em causa a matéria de facto dada como assente no douto acórdão.
3ª Da prova oferecida não poderá resultar a conclusão de que o arguido cometeu o crime de abuso sexual de criança, p. e p, pelo art. 171°. n.º 1, do Código Penal.
4ª Não podem dar-se como provados os factos constantes da matéria de facto assente, nos seus pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, que o arguido, ora recorrente, aqui expressamente considera incorrectamente julgados.
5ª Não está verificado o pressuposto da ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações entre o arguido e a vítima ou, mais concretamente, entre o arguido e a denunciante (mãe da vitima) pois existe verdadeiramente um ressentimento sério da mãe da menor para com o arguido e a esposa, que levou ao ponto de imputar falsamente àquele a prática dos factos em apreço nos autos.
6ª A assistente, C..., tinha motivos pessoais para destruir a relação de amizade e confiança que existia entre a sua mãe, que é avó da menor, e o arguido e sua esposa, na medida em que, e porque, aquela confiava mais nos vizinhos do que na própria filha (C...) para lhe guardar durante anos a fio o dinheiro, os valores e as chaves do correio!
7ª Acresce que o tribunal a quo não considerou que quando perguntado à menor B..., nas declarações, para memória futura, porque é que a mãe desta poderia desconfiar do arguido, a menor afirma: “a minha mãe não gostava dele!
8ª Por outro lado, a assistente deu, no dia da audiência de discussão e julgamento, ao prestar declarações, uma versão igual (e menos gravosa do que dera antes) à dada pela menor nas declarações para memória futura e às quais assistira, mas completamente diversa da que havia dado quando apresentou queixa ou quando confirmou a mesma ou sempre que foi ouvida em declarações durante todo o processo, o que não é de todo normal numa mãe de uma menor que verdadeiramente tenha sido abusada.
9ª Tudo somado, está demonstrado que havia um móbil de ressentimento e inimizade por parte da denunciante, denunciante esta que instrumentalizou a sua filha, à data com apenas 6 anos.
10ª E essa instrumentalização que justifica que tenha havido tantas diferentes versões dadas pela menor de: todas as vezes que foi questionada sobre os factos que se imputavam ao arguido.
12ª O depoimento para memória futura, tomado em conta pelo Tribunal de 1ª Instância para vir a condenar o arguido, não só não é coincidente com o teor da denúncia (feita pela mãe da menor e assistente nos autos), nem tão pouco, com o que consta do “auto de conversa informal” realizado na PJ com a menor, e, acrescente-se, nem a menor jamais ao longo do processo relatou os factos da forma como a sua mãe quis e entendeu contar às autoridades policiais.
12ª Torna-se evidente de que todas as vezes em que a menor foi ouvida, e no que ora nos importa, na tomada de declarações para memória futura, a menor contou versões sugestionadas pela sua mãe, que com este processo teve em vista a destruição da relação de amizade e confiança existente entre a sua própria mãe (avó da menor) e o arguido e sua esposa e, consequentemente, a obtenção de vantagens patrimoniais pelo mais fácil acesso que daí adviria, aos valores da sua mãe, D....
13° Pelo que acaba de se expor supra, também não está verificado o pressuposto de haver persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições.
14ª Quanto ao pressuposto da verosimilhança, ou seja, do testemunho estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória também este não pode considerar-se como verificado, pois a menor conhecia bem esses espaços (casa e quintal do arguido), não só pelas habitações onde ambas as partes habitam serem contíguas, e à data, sem quaisquer muros ou vedações de vistas, como por ir frequentemente e desde pequena até lá com a sua avô.
15ª Por outro lado, os factos constantes da acusação, baseados também eles nas declarações para memória futura da menor, prestadas no Juízo de Instrução de Águeda, afiguram-se como manifestamente impossíveis, indo contra as mais elementares regras de bom senso, da experiência e da razoabilidade: um septuagenário, que padece de problemas de saúde, designadamente de hipertensão arterial, diabetes, varizes nos membros inferiores e obesidade (Cfr. ponto 13 dos factos dados como provados que flecte as pernas e assim se mantém durante algum tempo encostando a sua barriga à barriga da menor, que teria 6 anos e tinha uma constituição mediana para a sua idade (6 anos), carece de qualquer sentido!
16ª De notar ainda que, a menor, durante aquele período temporal a que se refere o ponto 4 dos factos dados como provados, não teve um comportamento em nada diferente do habitual até à data em que os mesmos se imputam ao arguido, nem perdeu o sono, e nem a mãe nem a avô da menor B..., nunca notaram qualquer alteração comportamental compatível com o estado de espírito de uma criança que se sente abusada sexualmente.
17ª Impõem, assim, decisão diversa da recorrida as declarações do arguido A..., as declarações da assistente C..., e as declarações da testemunha arrolada pelo M.P ., D..., bem como as declarações, para memória futura da menor B….
18ª Todos os supra identificados depoimentos "encontram-se gravados através do sistema integrado de gravação digital" conforme o consignado na Acta da Audiência De Discussão E Julgamento de 13/09/2011 e na Acta De Declarações Para Memória Futura de 10-01-2011, respectivamente.
19ª As gravações encontram-se assim registadas:
As do arguido: gravação áudio com inicio em 13-09-2011 10:21:59 e fim em 13-09-2011 10:42:58.
As da assistente C...: gravação áudio com inicio em 13-­09-2011 11:00:33 e fim em 13-09-2011 111:32:22 e ainda as de inicio em 13-09-2011 11:33:37 e fim a 13-09-2011 11:41:21.
As da testemunha D...: gravação áudio com inicio em 13-09-2011 11:42:21 e fim em 13-09-2011 11:35:08
As da menor B..., em declarações para memória futura, gravado no Juízo de Instrução Criminal através do sistema integrado ele gravação digital, conforme consignado na Acta De Declarações Para Memória Futura de 10-0l- 2011, com inicio em 10-01-2011 16:07:34 e fim em 10-01-2011 16:17:42.
20ª Requer-se, pois, aos Venerandos Juízes Desembargadores desta Relação que renovem a prova fundada nas, passagens relativas aos depoimentos das pessoas supra referidas e nas passagens acima indicadas.
21ª Tendo em conta os depoimentos supra indicados tem o recorrente sérias reservas em relação à suficiência das mesmas para determinar a sua autoria na prática do crime de que veio acusado e consequentemente a sua condenação no tipo legal de crime p. e p. no artigo art. 171°. n.° 1. do Código Penal.
22ª Por outra banda, e salvo o devido respeito por opinião diversa, sempre que sobrem dúvidas acerca da conduta do arguido não deve, em obediência aos mais elementares princípios do direito penal, ser aquele condenado (principio in dúbio pro reo).
23ª É Jurisprudência assente que o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. É um princípio que tem a ver com a questão de facto e que significa que perante cactos incertos a dúvida favorece o arguido.
24ª Qualquer terceiro imparcial na qualidade de homem médio teria ficado com dúvidas, ao assistir à audiência de discussão e julgamento, acerca da prática destes factos de que foi acusado o arguido.
25ª Sem prescindir nem conceder, o que se admite por mero dever legal de patrocínio, mesmo que se provassem tais factos, a conduta em causa não é susceptível de se subsumir à previsão normativa do art. 171. n.º 1 do C.P. porquanto o conceito de acto sexual de relevo não se encontra preenchido.
26ª Com efeito, não deveria o arguido ter sido condenado por não estar preenchido o tipo objectivo do crime sob o conceito de "acto sexual de relevo".
27ª A conduta do arguido não assumiu gravidade, intensidade objectiva e concretização de intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto­determinação da menor B....
28ª Também o tipo subjectivo de crime não se encontra preenchido, por não poder dar-se como provado que em alguma circunstancia de tempo e lugar o arguido tenha tido o propósito de satisfazer a sua lascívia, e consequentemente que poderia por em causa a liberdade de autodeterminação sexual da menor B....
29ª Deverá pois, o Tribunal ad quem fazer um juízo segundo as regras da experiência comum aplicada, às circunstâncias concretas da situação, tendo em vista o teor literal do preceito que define o tipo de crime e os princípios relativos à interpretação e aplicação da lei penal, para vir a concluir, justamente e face a este caso concreto, que os factos dos autos são insignificantes ou bagatelares e não contêm, a densidade e dignidade penal ínsita no tipo de crime.
30ª A sentença recorrida violou, nomeadamente, o princípio in dubio Pro reo, bem como as normas constantes dos artigos 71º e 14º, nº 1 e 2 do Código Penal.
31ª Sem conceder quanto ao exposto sobre a matéria de facto, a conduta em causa não é susceptível de se subsumir à previsão normativa do art. 171, n.º 1 do C.P. porquanto o conceito de acto sexual de relevo não se encontra preenchido.
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve conceder-se integral provimento ao recurso, revogando-se o douto acórdão recorrido e substituindo-o por outro que absolva o arguido da prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p, pelo art. 171º, nº 1, do Código Penal, assim se fazendo JUSTIÇA

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu a assistente pugnando pela i procedência do recurso.

Respondeu o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito e de facto já que a prova se encontra documentada.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:
1. A menor B..., nascida em … , vive na companhia da sua mãe, C..., e da sua avó materna, D..., na Rua … , Anadia.
2. O arguido, A..., vive na mesma Rua, sendo vizinho da menor e sua mãe e avó.
3. Por força da relação de vizinhança entre a avó da menor B... e o arguido, aquela era frequentadora assídua da casa deste último, ali se dirigindo frequentemente, normalmente após o almoço, a fim de tomar café com o mesmo e a respectiva mulher.
4.Pelo menos no período compreendido entre 04-06-2009 e 18-10-2009, a menor B... acompanhou a sua avó materna nas deslocações e visitas frequentes que esta fez à residência do arguido, sendo que a partir do início do ano lectivo de 2009/2010, altura em que a menor ingressou na escola, tal acompanhamento passou a suceder apenas aos fins de semana.
5. Em momento não concretamente apurado daquele período temporal, aproveitando o facto de a menor B... acompanhar a sua avó nas visitas à casa do arguido, este formulou o propósito de se relacionar intimamente com a menor, sempre que para tal tivesse oportunidade, com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos, propósito esse que foi desenvolvendo nos actos concretos que adiante se descrevem.
6. Assim, no decurso das referidas visitas e naquele período de tempo, em número de vezes não concretamente apurado, mas nunca inferior a duas, o arguido, aproveitando a presença da menor B... na sua residência e da confiança que a mesma depositava nele, chamava-a para uma garagem anexa à casa, enquanto a avó da menor e a mulher do arguido permaneciam na cozinha.
7. Quando a menor chegava ao interior da garagem, o arguido ordenava-lhe que baixasse as cuequinhas e outra eventual peça de roupa que tivesse vestida por cima das mesmas, ficando nua da cintura para baixo.
8. De seguida, e sem tirar a roupa, o arguido aproximava-se da menor B..., flectia as pernas e encostava a sua cintura e barriga à barriga dela, ao mesmo tempo que dizia “ai que bom, ai que bom”, situação que mantinha durante algum tempo, altura em que ordenava à menor que voltasse a vestir a roupa.
9. Finalmente, o arguido dizia-lhe para não contar a ninguém o que se havia passado e oferecia-lhe maracujás.
10. O arguido agiu sempre e em todas as circunstâncias de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de satisfazer a sua lascívia, concretizada no contacto físico acima descrito estabelecido entre ele e a menor, bem sabendo a idade desta e que, com aquelas condutas, punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual.
11. Mais sabia o arguido que a sua conduta lhe estava vedada por lei penal e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiu de as realizar.
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12. Em consequência dos factos supra descritos, a menor B... passou a sentir receio de encontrar o arguido, designadamente fugindo quando o vê, situação que ainda presentemente se mantém.
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13. O arguido, presentemente com 75 anos de idade, padece de problemas de saúde, designadamente de hipertensão arterial, diabetes, varizes nos membros inferiores e obesidade, o que lhe acarreta despesas com medicamentos.
14. No meio social em que se insere, o arguido é tido como pessoa séria e considerada, estando integrado e inserido na comunidade, mesmo após a divulgação da acusação proferida nos presentes autos.
15. O arguido é analfabeto, tendo começado a trabalhar em criança e desempenhando ao longo da sua vida várias actividades profissionais, a última das quais de serralharia civil por conta própria, encontrando-se presentemente reformado.
16. Vive em casa própria, com a mulher, também reformada, recebendo cada um deles uma reforma no valor de cerca de € 370 mensais. Têm um filho, que se encontra emigrado na Suíça.
17. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
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MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Para além dos que já resultam logicamente excluídos em face da matéria provada, provaram-se todos os factos descritos na acusação.
Quanto à matéria alegada no requerimento do pedido de indemnização civil, não se provou que:
- A menor sofreu e sofre de um profundo temor de que tal situação ocorra novamente, sentindo-se constantemente amedrontada, situação que lhe causa grande sofrimento e depressão.
- Acorda em sobressalto durante o sono diariamente e tem pesadelos constantes.
- Tornou-se desconfiada e deixou de acreditar nos amigos.
- Mantém um desgosto e uma tristeza constantes.
- Sente insegurança e tem choros inexplicáveis.
- Recorreu a médicos psiquiátricos e a acompanhamento médico.
Por seu lado, em relação à factualidade alegada na contestação, não se provou que:
- Os problemas de saúde do arguido impedem-no de se colocar em posições de esforço, nomeadamente sobre os joelhos.
A demais matéria alegada é meramente conclusiva, de direito ou irrelevante para a decisão da causa.

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MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

1. O tribunal colectivo formou a sua convicção sobre os factos provados com base na análise e valoração crítica dos meios de prova produzidos e examinados em audiência, avaliados de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e à luz das regras da experiência comum.
Assim, atendeu-se às declarações prestadas pelo arguido, na parte em que confirmou a relação de vizinhança entre ele e a avó da menor, o facto de esta e a mãe viveram em casa daquela e as frequentes deslocações e visitas das mesmas à sua própria residência, tudo em conformidade com o descrito nos pontos 1 a 4 da factualidade provada.
Já no que concerne às condutas do arguido descritas na mesma matéria, apesar de este negar os respectivos factos, sustentando ser tudo mentira e atribuindo a denúncia a uma invenção por parte da mãe e da avó da menor, foi produzida prova bastante sobre tal factualidade.
Desde logo porque a própria menor B..., no depoimento prestado em declarações para memória futura e ouvido em audiência de julgamento, circunstanciou e relatou os comportamentos assumidos pelo arguido para com ela nos termos que essencialmente constam da matéria provada, depoimento esse que nos pareceu credível e verdadeiro, nada de concreto nos levando a duvidar da sua veracidade, apesar da tenra idade da testemunha.
Com efeito, a menor afirmou, em suma, que, mais do que uma vez, quando já tinha 6 anos de idade, encontrando-se o arguido junto à porta que ia dar à casa de banho da sua residência, a chamava com a mão, deslocando-se ambos para a garagem, onde o mesmo lhe dizia para baixar as cuequinhas, após o que, permanecendo ele vestido, encostava a barriga dele à sua, baixando-se, e dizia “ai que bom, ai que bom”. Posteriormente a menor vestia as cuequinhas, o arguido dizia-lhe para não contar nada à mãe e à avó e dava-lhe maracujás.
A propósito do valor a atribuir a esse depoimento da menor, vítima do comportamento do arguido, cumpre referir o seguinte:
Como é sabido, em matéria de crimes sexuais as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante1, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.
Daí que se entenda que, em função das especialidades destes crimes e do especial valor que as declarações do ofendido assumem no âmbito dessa criminalidade, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, às do arguido, podem ser suficientes para desvirtuar a presunção de inocência e fundamentar uma decisão condenatória se, depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados, se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.
Para tanto, deve-se exigir a concorrência dos seguintes elementos2:
- A ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações entre o arguido e a vítima ou denunciante, que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento ou inimizade.
- A verosimilhança, ou seja, o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória.
- E a persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições.
Vejamos, então, se no caso vertente se encontram reunidos todos esses elementos:
a) - Em primeiro lugar, no que concerne à ausência de incredibilidade subjectiva, é certo que o arguido, negando a prática dos factos, atribuiu-os a uma invenção e mentira por parte da mãe e da avó da menor, que teriam instrumentalizado esta última, com vista a obterem de si algum dinheiro.
Porém, a forma como a menor relatou os factos e os pormenores por si fornecidos, não é muito consentânea com um depoimento instruído, atenta a sua tenra idade. Acresce que se a mãe e a avó da menor tivessem sido motivadas pelo referido propósito, natural seria que, com vista a mais facilmente alcançarem o objectivo pretendido, optassem por imputar ao arguido factos mais graves, como por exemplo a manipulação genital ou masturbação e mesmo contactos entre os órgãos sexuais, ainda insusceptíveis de deixarem marcas físicas, em vez de se ficarem por actos muito mais simples como os denunciados.
Acresce que a modesta condição económica do agregado familiar do arguido, que sobrevive com as parcas reformas recebidas por ele e pela esposa, não tornava expectável a obtenção de uma relevante vantagem patrimonial.
Por outro lado, ao longo do depoimento da mãe e da avó da menor, não nos foram dados a perceber traços de personalidade compatíveis com a sujeição da filha e da neta às consequências vexatórias decorrente da denúncia de factos desta natureza, com vista à obtenção de uma vantagem económica. Aliás, a mãe da menor mostrou-se chocada e revoltada com essa hipótese, afirmando mesmo, com aparente sinceridade, não pretender dinheiro nenhum. Por seu lado, a avó da menor, a determinado ponto do seu depoimento, ao aludir ao relato dos factos que a menor fez à respectiva progenitora, emocionou-se e chorou com aparente naturalidade e espontaneidade. Note-se ainda que, quer a mãe, quer a avó da menor, não confirmaram o núcleo essencial dos factos alegados no requerimento do pedido de indemnização civil, como seria de esperar que fizessem caso pretendessem obter uma compensação económica.
De todo o modo, em relação à avó da menor, a defesa do arguido não logrou apontar qualquer móbil que a pudesse levar a participar na instrumentalização da neta. Ao invés, ficou demonstrada a existência de um bom relacionamento entre a avó da menor e o arguido e a mulher deste, sendo que aquela chegou a estar na Suíça, durante cerca de um ano, a cuidar de um neto dos mesmos.
Já em relação à mãe da menor, o arguido aludiu a um eventual ressentimento para consigo e para com a sua mulher, derivado do facto de, quando a avó da menor foi para a Suíça, lhes ter confiado a guarda do dinheiro proveniente da sua reforma, por não ter confiança na filha, sendo que esta frequentemente lhes ia pedir quantias desse dinheiro. Porém, a mãe da menor confirmou tais pedidos, mas sustentando estar devidamente autorizada pela sua progenitora para os fazer. Por seu lado, a avó da menor afirmou que por vezes a sua filha ia a casa do arguido solicitar dinheiro sem falar consigo, mas que posteriormente restituía-o à mulher daquele. Acresce que esta última confirmou que quando a mãe da menor ia buscar dinheiro tinha autorização da progenitora para lho entregar, pois falavam ao telefone. E apenas aludiu a uma situação em que não lhe deu qualquer quantia, por já ter esgotado a reforma da avó da menor, tendo acabado por lhe dar € 20, por instruções da sua nora, em casa de quem aquela se encontrava na Suíça.
Ora, não nos parece que estes factos, só por si, sejam suficientes para justificar a existência de um ressentimento sério da mãe da menor para com o arguido e a esposa, a ponto de imputar falsamente àquele a prática dos factos em apreço nos autos.
Por tudo quanto fica exposto, quer-nos parecer estar verificado o pressuposto da ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações entre o arguido e a vítima ou denunciante.
b) – Quanto ao elemento da verosimilhança, existem efectivamente certas corroborações objectivas e instrumentais do testemunho da menor B..., que lhe conferem credibilidade.
Desde logo o contexto e o espaço em que a menor afirma que os factos ocorreram foram confirmados por testemunhas inquiridas em audiência, designadamente a mãe e a avó da menor e a própria mulher do arguido. Saliente-se que apesar de este ter procurado sustentar não ser possível ter praticado os factos sem que a sua mulher e a avó da menor se apercebessem, porquanto a garagem é contígua à cozinha e a porta existente está sempre aberta, o certo é que daqueles depoimentos, inclusive o prestado pela mulher do arguido, resulta claro que assim não é, porquanto entre as duas dependências existe um corredor com quatro ou cinco metros de comprimento, pelo qual é necessário avançar para se ver o que se passa na garagem.
Por outro lado, de acordo com o relatório do exame médico-legal pedopsiquiátrico efectuado à menor, a observação e o exame mental realizados permitiram concluir ao perito que o relato dos factos pela menor é compatível com uma exposição a situação de abuso sexual.
Também o receio que a menor passou a demonstrar, fugindo quando vê o arguido, é sintomático da veracidade do seu depoimento.
É certo que, tal como invoca o arguido na sua contestação, inexistem quaisquer vestígios físicos medicamente detectáveis da prática dos factos, o que, porém, é óbvio, atenta a natureza e o tipo desses actos.
c) - Por fim, a propósito do pressuposto da manutenção da incriminação, sustenta o arguido na sua contestação que a menor deu versões diferentes dos factos em todas as vezes que foi ouvida, designadamente na conversa informal que teve com o inspector da Polícia Judiciária, no exame de perícia sexual a que foi submetida, no exame médico-legal pedopsiquiátrico e na tomada de declarações para memória futura.
É um facto que na referida “conversa informal” com o inspector da Polícia Judiciária (cfr. auto de fls. 29 e ss.), a menor afirmou que o arguido baixava as calças e esfregava a pilinha dele na “xanoca” dela. Já aquando da realização da perícia de natureza sexual, a menor declarou às peritas médicas que o arguido lhe mexia com as mãos na sua região genital e que encostava a pilinha (cfr. relatório de fls. 69 e ss.). Por seu lado, à perita médica que efectuou o exame pedopsiquiátrico, a menor afirmou que o arguido tirava as calças dele e negou a existência de toque ou carícias ou algo mais (cfr. fls. 91 e ss.). Por fim, nas declarações para memória futura, único momento processualmente relevante, a menor depôs em termos coincidentes com o que consta da matéria de facto provada, ou seja, que o arguido, sem tirar a roupa dele, se aproximava de si, flectia as pernas e encostava a sua cintura e barriga à barriga dela, não lhe tocando com as mãos.
Inexiste, pois, uma coincidência entre esses vários relatos feitos pela menor. Todavia, não podemos olvidar a tenra idade desta (presentemente 8 anos), com as evidentes e naturais dificuldades e limitações na exteriorização de episódios de natureza sexual. Por outro lado, esses quatro momentos processuais foram separados no tempo por vários meses, mediando mais de um ano entre o primeiro e o último deles. Acresce que nessas diligências a menor foi sempre questionada por pessoas diferentes, com distintas perspectivas e formas de formular as perguntas, possivelmente algumas delas de forma sugestiva, desde logo em função da respectiva formação profissional. Por fim, atenta a reiteração dos actos de abuso sexual praticados pelo arguido, é natural que não tenham assumido rigorosamente sempre a mesma forma de execução. Por exemplo, é possível que o arguido, numa ou noutra situação tenha baixado as suas calças, facto que a menor, por variadas e justificadas circunstâncias, pode ter mencionado num relato e já não noutro.
De todo o modo, independentemente das apontadas divergências, o certo é que a menor, ao longo do processo, manteve sempre a incriminação do arguido no que concerne à prática de actos sexuais de relevo para consigo.
Perante todos estes elementos, ficou-nos a firme convicção de que o arguido praticou os factos constantes da matéria de facto provada.
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Os factos atinentes ao pedido de indemnização civil, mais concretamente o receio manifestado pela menor, foram mencionados pelas testemunhas C... e D..., respectivamente mãe e avó da mesma.
Por seu lado, a matéria relativa às condições pessoais do arguido, nomeadamente sociais, familiares e económicas, foi confirmada pelas testemunhas de defesa … , todos eles conhecedores das condições de vida do arguido, fruto das relações de parentesco ou amizade que mantêm com ele.
Os problemas de saúde que afectam o arguido derivaram do depoimento da testemunha Dr.ª …, sua médica de família, que também subscreveu o atestado junto a fls. 287, cujo teor confirmou.
Para além dos já mencionados supra, atendeu-se ainda ao teor dos seguintes documentos, juntos a fls.:
- 45 (certidão do assento de nascimento da menor);
- 271 (certificado de registo criminal do arguido);
- 318 e ss. (relatório social relativo ao arguido, atendido para as suas condições pessoais).
2. No que concerne à factualidade não provada e que havia sido alegada no requerimento do pedido de indemnização civil, não foi objecto de qualquer prova, uma vez que nenhuma das testemunhas inquiridas, mormente a mãe e a avó da menor, a confirmou.
Quanto à alegada impossibilidade de o arguido se colocar em posições de esforço, nomeadamente sobre os joelhos, em consequência dos seus problemas de saúde, não foi feita prova suficiente. Com efeito, para além de a sua referida médica de família declarar não dispor de elementos suficientes para o afirmar, ficou amplamente demonstrado, designadamente por vários depoimentos prestados por testemunhas de defesa, que o arguido se dedica regularmente à prática de actividades que exigem algum esforço físico, como seja a condução de motorizada, a pesca, o jogo da malha e a agricultura. Destaque-se designadamente o depoimento da testemunha …, ao afirmar que ainda este ano foi o arguido quem arrancou as batatas no quintal que o casal cultiva, bem como que já o viu flectir as pernas e baixar-se para apanhar objectos.


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Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questões a decidir:
- Se foram incorrectamente julgados os factos dados como provados sob os nºs 5,6,7,8,9,10, e 11;
- Se se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artº 171, nº 1 do CPenal;

O poder de cognição do Tribunal da Relação em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e esqueça o princípio da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, tal como refere o Prof. Germano Marques da Silva, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância.
O poder de cognição deste Tribunal está limitado aos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, tendo em atenção o estatuído no art 412, nº 3 e 4 do CPP.
Portanto, a matéria de facto impugnada, “só pode proceder quando o recorrente, tendo como base o raciocínio lógico e racional feito pelo tribunal na decisão recorrida, indica provas que imponham decisão diversa. É isso que resulta claro do disposto no art 412 nº 3 al b) do Código Processo Penal. O recorrente não pode fazer o seu julgamento esquecendo a convicção formada pelo tribunal à luz das regras da experiência comum. Se aquela resulta clara destas, demonstradas no exame crítico das provas que a lei lhe impõe (art 374 nº 2 do Código Processo Penal) o raciocínio feito pelo tribunal não pode ceder perante um qualquer outro raciocínio do recorrente. Exige-o o princípio da livre apreciação da prova (art 127 do referido diploma).
Ora, o recorrente ao pretender a alteração da matéria de facto apenas se baseia em partes das declarações da assistente, do arguido e do depoimento das testemunhas ouvidas.
Tal não é indicar provas que imponham decisão diversa. Estes depoimentos têm de ser apreciados em conjugação com todos os outros elementos trazidos aos autos, ou seja, no depoimento de todas as testemunhas e documentos junto aos autos. Foi no conjunto de todos os elementos que o tribunal fundou a sua convicção.
O que o recorrente faz é impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova inserta no art 127.
De acordo com o disposto no art 127 a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
“O art 127 do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador.
A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).
Tal como refere o Prof Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, Vol II, pg 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcede a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.
Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objectivos.
Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta « é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal -até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros ."- Cfr., in "Direito Processual Penal", 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355 do Código de Processo Penal. É ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela intima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". -Cfr. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”.
O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo:
« Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais ". -In "Direito Processual Penal", 10 Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 233 a 234 .
Assim, e para respeitarmos estes princípios se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de_2002 (C.J. , ano XXV|II, 20 , página 44) "quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum".
Ora, se atentarmos aos factos apurados e compulsada a fundamentação temos de concluir que os juízos lógico-dedutivos aí efectuados são acertados, designadamente no que se refere aos factos apurados e postos em questão pelo recorrente.
O Sr juiz na decisão recorrida, nomeadamente, em sede de convicção probatória, explica de forma clara e coerente os seus juízos lógico-dedutivos, analisando as provas tidas em consideração.
Na verdade, da motivação e do exemplar exame crítico da prova resultam as razões pelas quais a Exma juiz deu como provados determinados factos e como não provados outros, permitindo ao arguido e assistente, todos os meios de defesa e a este Tribunal, reconstruir retrospectivamente o percurso percorrido na decisão recorrida.
Analisando este percurso não procede a critica do recorrente.
O recorrente com a sua argumentação apenas pretende e com já se referiu extrair dos elementos analisados uma diferente convicção.
O recorrente fez o seu próprio julgamento pretendendo, agora impor o seu próprio raciocínio.
A decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada, não apontando o recorrente qualquer fundamento válido que a possa abalar.
O recorrente ao impugnar a matéria de facto esquece os elementos de prova nos quais o tribunal se baseou. É no conjunto de todos esses elementos que se fundamenta a convicção e não, apenas, num ou noutro dos mesmos elementos (Rec nº 2541/2003 do Tribunal da Relação de Coimbra).
O acórdão recorrido explica de forma clara, lógica e racional todos os motivos que levaram à prova de tais factos. No entanto, o que o recorrente faz é o seu próprio julgamento e pretende uma alteração dos factos segundo o seu próprio raciocínio.
Na verdade, o recorrente para fundamentar a sua discordância no que respeita aos factos apurados baseia-se e tão só, em partes isoladas das declarações da assistente, do arguido e depoimentos prestado pelas testemunhas. O recorrente ao impugnar a matéria de facto esquece elementos de prova nos quais o tribunal se baseou. É no conjunto de todos esses elementos que se fundamenta a convicção e não, apenas, num ou noutro dos mesmos elementos.
Sustenta o recorrente que a assistente, mãe da menor, instrumentalizou-a e modo a que o arguido e esposa fossem desapossados dos valores pertencentes à avó da menor a quem esta pediu que os guardasse e que o arguido recusava entregar, sem autorização da avó da assistente.
O recorrente pretende descredibilizar as declarações da assistente e da menor, bem como da avó da menor.
Ora, a assistente refere mostrando ter conhecimento que o arguido e sua esposa tinham as chaves do correio e guardavam os cheques da sua mãe, dizendo que não sabia, mas que possivelmente guardavam economias e objectos da sua mãe. Contudo, das suas declarações se depreende que esta se estava a reportar a momento posterior ao regresso da testemunha D... da Suíça.
E, confirma ter conhecimento que tais valores se encontravam na posse do arguido e da sua esposa.
A assistente nunca negou conhecimento de que os valores da sua mãe se encontravam na posse do arguido e esposa, ou seja, não existe qualquer contradição nas suas declarações.
No que respeita aos factos e à forma como a assistente os relata, temos de notar que não são mais do que um "ouvir dizer" da boca da menor B... que, com apenas 6 anos à data dos factos, não terá a percepção da realidade sexual que a envolveu, sendo que, ocorrendo frequentemente, também não se terão desenrolado sempre do mesmo modo, pelo que, natural será que a mãe C... não pudesse fazer mais do que relatar o que lhe foi contado.
No que se refere à alegada incoerência dos diversos momentos do dia em que a menor e a respectiva avó iam a casa do arguido e esposa, tal não tem a relevância que o recorrente lhe quer dar. Na verdade, esta não os presenciava e não os podia relatar com precisão, apenas sabendo que tinham uma frequência praticamente diária e que, portanto, a sua mãe regularmente frequentava a casa daqueles. Aliás, a testemunha D..., diz que ia vários dias que não tinha dias fixos, ia quando lhe apetecia tomar a bica, que dependia realmente da sua vontade.
Portanto, o depoimento da assistente revelou-se credível, nomeadamente, descrevendo o espaço físico em que ocorreram os factos, demonstrando que a assistente tinha acesso aos valores da sua mãe, respectivamente dinheiro, porque esta dava autorização para que o arguido e sua esposa lho entregassem, pelo que, nenhum benefício adicional poderia aquela obter com a sua retirada da posse dos arguidos.
Portanto, a haver qualquer incompatibilidade entre o arguido e a assistente surgiu com os factos aqui em questão.
Sustenta, ainda o recorrente que tal instrumentalização justifica as diversas versões contadas pela menor.
É de notar que o único momento processualmente atendível na produção de prova reporta-se à prestação de declarações para memória futura, e não ao que anteriormente esta declarou em inquérito. Com efeito, as declarações para memória futura, realizadas nesta sede, têm em vista a sua utilização como meio de prova em julgamento. Sendo que, o principal objectivo do recurso ao mesmo, nos crimes sexuais, será poupar a vítima ao vexame de contar a história e à sua exposição em audiência de julgamento.
Por outro lado e como bem refere o Mº Pº, sempre se há-de considerar a idade da menor (6 anos à data e 8 anos aquando da realização daquela audiência), a sua parca percepção do mundo de um ponto de vista da sexualidade a existência de um comportamento reiterado por parte do arguido, certamente nem sempre actuando da mesma forma, aliado ao facto de os vários momentos em que a menor foi ouvida, no inquérito, serem espaçados por um lapso temporal relevante, atenta a sua idade, e as questões lhe terem sido colocadas por pessoas diferentes e de forma, quiçá, sugestionada.
Entende o recorrente e no que respeita ao pressuposto da verosimilhança que o mesmo não se poderá considerar verificado pelo simples conhecimento da menor da casa e quintal do arguido, por frequentar tais espaços desde pequena com a avó.
A menor, nas suas declarações, faz uma descrição do espaço compatível, quer com o depoimento da sua mãe e avó, bem como com o da própria esposa do arguido.
E tal descrição não se coaduna com a fornecida pelo arguido. Na verdade, este salientou que a cozinha e a garagem eram contíguas, e aquando dos factos, na primeira encontravam-se a sua esposa e a avó da menor, e, na segunda, a menor e o arguido, não sendo de todo possível ocorrerem os factos em causa, uma vez que a porta se encontrava sempre aberta e era possível ver tudo o que lá se passava. Ora, conforme decorre dos depoimentos supra citados, bem como das declarações da menor, entre tais divisões existe um corredor com cerca de quatro ou cinco metros, que é necessário avançar, para ver o que se passa na garagem.
Por outro lado, e para além da própria valoração das declarações da menor, há-de se considerar que a menor realizou exame médico-legal no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental - Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência, do Hospital … (cfr. fls. 95 a 97), do qual se conclui que, pelas "informações recolhidas nesta perícia, a observação e exame mental da menor, (, .. ) o relato dos factos é compatível com possível exposição a situação de abuso sexual",
Refere, ainda, o recorrente, que a versão apresentada pela menor não faz sentido dado que, com a idade do arguido e as suas dificuldades de saúde, se este quisesse efectivamente abusar dela poderia tê-lo feito numa outra posição, mais adequada à sua condição física.
É certo que poderia ter escolhido outra posição. No entanto foi dado como não provado o facto de os problemas de saúde do arguido o impedirem de colocar-se em posições de esforço, nomeadamente sobre os joelhos. Facto este que o presente recurso não atacou.
E, a médica de família, testemunha neste processo, e com conhecimento dos problemas do arguido, referiu que desconhecia tais problemas do arguido.
As testemunhas … (irmã do arguido), … (cunhado do arguido), ….foram coerentes a atestar a sua capacidade física, dizendo que o arguido se dedica regularmente à prática de actividades que exigem algum esforço físico, como seja a condução da motorizada, a pesca, o jogo da malha e a agricultura. A testemunha … afirmou mesmo ter sido o arguido a arrancar as batatas no quintal que esta cultiva, tendo-o visto a flectir as penas e baixar-se para apanhar objectos.
Portanto o arguido tinha capacidade física para satisfazer os seus impulsos e desejos.
Refere o recorrente que a menor não teve um comportamento em nada diferente do habitual, não perdeu o sono e nem a mãe, nem a avó da menor, nunca notaram qualquer alteração comportamental compatível com o estado de espírito de uma criança que se sente abusada sexualmente.
O exame junto aos autos refere uma situação compatível com uma situação de abuso sexual. Por outro lado a menor passou a ter receio do arguido, fugindo quando vê o arguido.
Atento a todo o circunstancialismo envolvente, analisadas as declarações prestadas pela assistente, ofendida, arguido, bem como testemunhas ouvidas e documentos junto aos autos, nomeadamente o relatório médico, temos de considerar que a factualidade apurada, tem amplo apoio na prova produzida e a sua fundamentação bem explica a opção feita.
Mais uma vez se refere que a critica do recorrente, patenteia a sua discordância com a opção da Sra Juiz ao dar crédito a uns depoimentos, em detrimento de outros que na óptica do recorrente merecem mais crédito que aqueles que foram acolhidos na decisão recorrida.
Ora, a matéria apurada baseia-se na prova testemunhal e documental produzida em julgamento. Tendo a factualidade apurada apoio na prova produzida e encontrando-se devidamente fundamentada, nada há a alterar. Na verdade é o juiz de julgamento que tem em virtude da oralidade e da imediação, uma percepção própria do material probatório que nós, neste Tribunal, não temos. O juiz do julgamento tem um contacto vivo e imediato com todas as partes, ele questiona, ele recolhe todas as impressões e está atento a todos os pormenores.
O juiz perante dois depoimentos contraditórios por qual deve optar? “Esta é uma decisão do juiz do julgamento. “Uma decisão pessoal possibilitada pela sua actividade congnitiva, mas também por elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais.
Como refere Damião da Cunha (RPCC, 8º, 2º pg 259) os princípios do processo penal, a imediação e a oralidade, implicam que deve ser dada prevalência às decisões da 1ª instância” (Ac RP nº 6862/05).
A decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada e, de forma exaustiva faz uma exposição dos motivos de facto que fundamentaram a decisão e faz um exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. O acórdão recorrido indica de forma clara e na medida do que é necessário, as provas que serviram para a formação da convicção do tribunal.

Sustenta o recorrente que atendendo aos depoimentos das testemunhas, paira a dúvida sobre a imparcialidade e isenção da prova testemunhal. Assim, a única certeza que o julgador deve ter é a da existência e da obrigatoriedade da aplicação do princípio constitucionalmente assegurado da presunção da inocência e do “in dubio pro reo”.
A presunção da inocência é identificada com o princípio “in dubio pro reo”, “no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido”.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o Tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido (Ac STJ de 2/5/996 in CJ, ASTJ, Ano VI, 1º, pg, 177).
No caso “sub judice”, não há lugar a aplicação de tal princípio. Na verdade, as provas existentes nos autos são deveras convincentes e não criaram ao tribunal recorrido qualquer dúvida que levasse o mesmo a socorrer-se do referido princípio, de molde a proferir um juízo decisório favorável ao arguido.

Sustenta o recorrente que a conduta em causa não é susceptível de se subsumir à previsão normativa do artº 171º, nº 1 do CPenal porquanto o conceito de acto sexual de relevo não se encontra preenchido.
Segundo o Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias. "Ao exigir que o acto sexual seja de relevo a lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes ou bagatelares, mas que investigue do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido (...); e dizer, que determine - ainda aqui de um ponto de vista objectivo - se o acto representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima" (in "Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I Artigos 131.° a 201.°, Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra Editora, 1999, em anotação ao então art. 163.°. do CPP, pág. 449). Ou seja, tem que se analisar se o acto em causa é um acto insignificante ou bagatelar, bem como relacionar a dimensão daquele acto relativamente ao bem jurídico protegido - a autodeterminação sexual.
Portanto há que apreciar se perante os factos apurados estamos ou não perante um acto sexual de relevo.
Assim, temos que o arguido pedia à menor que se despisse da cintura para baixo, aproximando-se de seguida, flectia as pernas e encostava a sua cintura e barriga à barriga dela, ao mesmo tempo que dizia "ai que bom, ai que bom".
O arguido, com a sua actuação, pretendia simular a prática de um acto sexual com a menor.
Não tem qualquer razão o recorrente quando defende não estarmos perante um acto sexual de relevo. Na verdade, o arguido com a sua actuação simulava a prática de uma relação sexual em que satisfazia os seus desejos sexuais, utilizando para o efeito uma menor, com a idade de seis anos.
A actuação do arguido, simulando a prática de uma relação sexual, nos termos acima descritos, com contacto com o órgão sexual da menor (6 anos), é de considerar um acto sexual de relevo.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2011, "o acto sexual de relevo é ( .. .) todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (...) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas, (in www.dgsi.pt. proc. n.º 889/09.8.TAPBL.C1).
Por outro lado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05.09.2007, no qual se diz que "a lei presume que a prática de actos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem (...). O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei" (in www.dgsi.pt, processo n.º 07P2273).
Ora, no caso vertente e considerando que a menor tinha seis anos de idade, sendo uma criança, imatura para este tipo de actos temos de concluir que tais actos são susceptíveis de a envergonhar até porque a menor ainda não tem capacidade para compreender a dimensão de tais actos.
O acto praticado pelo recorrente é um acto sexual de relevo, capaz de afectar o desenvolvimento integral e harmonioso da menor.

Termos em que se tem o recurso interposto por improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 uc.


Alice Santos (Relatora)
Belmiro Andrade