Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2577/05.5TBPMS-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CULPOSO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 185º, 186º, 189º, Nº 2, AL. B), DO CIRE (DEC. LEI Nº 53/2004, DE 18/03, NA REDACÇÃO DO D.L. Nº 200/2004, DE 18/08)
Sumário: I – Estabelece o artº 189º, nº 2, al. b), do CIRE (Dec. Lei nº 53/2004, de 18/03, na redacção do D.L. nº 200/2004, de 18/08) que “na sentença que qualifique a insolvência como culposa o juiz deve decretar a inabilitação, por um período de 2 a 10 anos, das pessoas afectadas pela qualificação.

II – Esta inabilitação prevista no CIRE não visa a protecção e defesa do inabilitado, não se destina à defesa dos interesses dos credores e nada acrescenta à defesa da integridade da massa insolvente, além de que em nada contribui para a defesa dos interesses gerais do tráfego comercial.

III – A inabilitação das pessoas afectadas pela insolvência só pode ter um alcance punitivo, ferindo o sujeito sobre quem recai uma verdadeira capitis diminutio, retirando-lhe a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos ou apreensíveis para a massa insolvente e sujeitando-o à assistência de um curador.

IV – Trata-se, portanto, de uma restrição à capacidade civil do insolvente que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da insolvência e, em particular, a inibição para o exercício do comércio, tem de considerar-se inadequada e excessiva, conduzindo à conclusão de que o artº 189º, nº 2, al. b), do CIRE, está em desconformidade com o artº 26º, nºs 1 e 4, conjugado com o artº 18º, nº 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.

V – No CIRE foram instituídos incidentes (incidente pleno e incidente limitado), de carácter exclusivamente civil, destinados à qualificação da insolvência (como fortuita ou culposa) – artºs 185º a 191º -, o que é inovador em relação à lei anterior (CPEREF).

VI – Os artºs 185º e segs. do CIRE, relativos aos incidentes de qualificação da insolvência, contêm normas de carácter substantivo e normas de carácter adjectivo.

VII – Quanto às normas de carácter adjectivo, não há qualquer óbice a que se apliquem integralmente a todos os processos iniciados a partir da data da entrada em vigor do CIRE (artºs 12º e 13º do D.L. 53/2004, de 18/03).

VIII – Relativamente às normas de carácter substantivo, não lhes tendo sido expressamente fixada eficácia retroactiva, há que respeitar o regime legal da aplicação das leis no tempo – artº 12º C. Civ. -, sendo a regra principal a de que a lei só dispõe para o futuro –, face ao que toda a actuação do insolvente anterior à entrada em vigor do CIRE deverá ser desconsiderada para efeitos do incidente da qualificação da insolvência, aplicando-se o regime do CIRE apenas à factualidade restante e posterior a essa entrada em vigor.

IX – O artº 186º do CIRE, ao estatuir, no nº 1, que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e ao estabelecer, no nº 2, presunções júris et de jure de insolvência culposa, e no nº 3 presunções júris tantum de culpa grave, criou, neste domínio, regras novas de direito probatório material, as quais se não podem aplicar, face ao disposto no nº 2 do artº 12º do C. Civ., aos casos anteriores à entrada em vigor do CIRE.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. RELATÓRIO

Por apenso ao processo especial de insolvência em que é requerido A... , foi pelo credor B... pedida a qualificação da insolvência como dolosa ou, pelo menos, como culposa com culpa grave, com os efeitos previstos no artigo 189º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[1], e sem prejuízo do subsequente procedimento criminal contra os responsáveis.

Alegou, para tanto, em síntese, factos que, no seu entender, conjugados com o disposto no artº 186º, fundamentam aquele pedido.

Também o credor C... , pugna pela qualificação da insolvência como culposa, alegando factos que, a seu ver, a tal conduzem.

O Administrador da insolvência, em cumprimento do disposto no artigo 188º, n.º 2, do CIRE, apresentou o seu parecer, concluindo também no sentido da qualificação da insolvência como culposa.

Em igual sentido se pronunciou o Ministério Público.

Notificado, o requerido apresentou oposição.

Foi cumprido o disposto nos artigos 188º, nº 6 e 135º (este ex vi do artigo 188º, n.º 7), tendo os membros da Comissão de Credores, “D... , E... e “F... ”, oferecido o merecimento dos autos.

Feitos os pertinentes saneamento e instrução, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, sendo, depois, proferida a sentença de fls. 1837 a 1896, julgando o incidente totalmente procedente e, em consequência:

         a) Qualificando como culposa a insolvência;

         b) Considerando afectado pela qualificação da insolvência como culposa o devedor, A...;

c) Decretando a inabilitação de A... pelo período de 5 (cinco) anos e determinando que este seja assistido por um curador, a cuja autorização estarão sujeitos os actos de disposição de bens entre vivos e ainda a abertura de contas bancárias e respectiva movimentação, sempre que reportada (esta movimentação) a valores superiores a metade da alçada (vigente à data da instauração do processo de insolvência) do Tribunal de 1ª instância.

d) Declarando o requerido A... inibido para o exercício do comércio durante um período de 7 (sete) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.

e) Determinando a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, detidos por A..., e condenando o mesmo na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

O requerido interpôs recurso e, no final da alegação que apresentou, formulou as conclusões seguintes:

(…………………………………………………………………………)

As apeladas “F...” (membro da Comissão de Credores) e “B...” responderam, defendendo a manutenção do julgado.

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que á ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:

         a) Alteração da decisão sobre a matéria de facto;

         b) Inconstitucionalidade da norma constante do artº 189º, nº 2, al. b);

         c) Irrelevância dos factos anteriores à entrada em vigor do CIRE;

         d) Inexistência de fundamento para a qualificação da insolvência como culposa;

         e) Redução da duração das medidas de inabilitação e inibição para o exercício do comércio.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. De facto

2.1.1. Na 1ª instância foram considerados provados os factos seguintes:

(………………………………………………………………………..)


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         2.1.2. Alteração da decisão sobre a matéria de facto

(………………………………………………………………………………..)

        


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         2.2. De direito

         2.2.1. Inconstitucionalidade da norma constante do artº 189º, nº 2, al. b) do CIRE

         Estabelece o artº 189º, nº 2, al. b) do CIRE que na sentença que qualifique a insolvência como culposa o juiz deve decretar a inabilitação, por um período de 2 a 10 anos, das pessoas afectadas pela qualificação.

         O recorrente sustenta que tal norma é inconstitucional, por contrariar os artºs 18º, nº 2, 25º, nº 1 e 26º, nº 1, todos da Constituição, isto é, por violar a integridade moral e o bom nome e reputação do insolvente e restringir injustificada e desnecessariamente a sua capacidade civil.

         De acordo com o artº 18º, nº 2, a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

         Segundo o artº 25º, nº 1, a integridade moral e física das pessoas é inviolável.

         E, nos termos do artº 26º, nº 1, a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

        

         O direito à integridade pessoal (à integridade física e à integridade moral), consagrado no artº 25º, nº 1 da Constituição, consiste no direito da pessoa a não ser agredida ou ofendida no seu corpo ou no seu espírito, por quaisquer meios, físicos ou não[2].

         Esse direito constitucional proíbe, portanto, actos que ofendam a integridade física ou moral de outrem[3].

         O direito ao bom nome e reputação só é violado por actos que se traduzam em imputar falsamente a alguém a prática de acções ilícitas ou ilegais, ou que consistam em tornar públicas faltas ou defeitos de outrem que, sendo embora verdadeiros, não são publicamente conhecidos[4].

         No essencial, os inabilitados ficam submetidos à assistência de um curador, a cuja autorização estão sujeitos os actos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, forem especificados na sentença (artº 153º, nº 1 do Cód. Civil).

         Sendo inquestionável que aquela submissão integra uma limitação à capacidade de exercício do inabilitado, ela não constitui, mesmo tendo em conta a publicidade associada ao registo [artºs 156º e 147º do Cód. Civil e 1º, nº 1, al. h) do Cód. Reg. Civil], ofensa á integridade moral ou ao bom nome e reputação. A não ser assim, teria de entender-se que o decretamento de qualquer inabilitação, mesmo quando, como é regra, com ela se visa a defesa e protecção do próprio inabilitado, consubstanciaria um acto ofensivo da integridade moral e do bom nome e consideração daquele.

         Nem, portanto, o decretamento da inabilitação, por um período delimitado no tempo, das pessoas afectadas pela qualificação da insolvência como culposa, mesmo tendo em conta que também tal inabilitação é oficiosamente registada na conservatória do registo e civil, e, sendo a pessoa comerciante em nome individual, na conservatória do registo comercial (artº 189º, nº 3), ofende a integridade moral ou o bom nome e reputação do inabilitado.

         Já se disse que a inabilitação, ao submeter o inabilitado à assistência de um curador, a cuja autorização estão sujeitos os actos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, forem especificados na sentença, integra uma limitação ou restrição à capacidade de exercício do inabilitado.

         Ora, o artº 26º, nº 1 da Constituição reconhece a todos o direito à capacidade civil e o nº 4 do mesmo preceito legal estabelece que as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.

         Estas normas devem conjugar-se com o nº 2 do artº 18º da Constituição, segundo o qual a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

         A protecção constitucional do direito à capacidade civil cobre tanto a capacidade de gozo como a capacidade de exercício ou capacidade de agir.

         A restrição à capacidade civil decorrente da norma do artº 189º, nº 2, al. b) não tem, obviamente, como fundamento motivos políticos. Resta verificar se se limita ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

         A privação ou restrição da capacidade civil, quando afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da personalidade do incapaz[5].

         Carvalho Fernandes refere[6] que, diferentemente do que sucede no regime geral do Código Civil, em que é dominante, como é próprio das incapacidades, o interesse do incapaz – que carece de tutela por nele faltarem ou estarem limitadas certas qualidades –, a inabilitação consagrada no CIRE visa, primariamente, o interesse dos credores ou, mesmo, em geral, do tráfico jurídico, e assume um carácter sancionatório predominantemente preventivo.

         Também a nós se nos afigura que, contrariamente ao que sucede no regime geral da inabilitação constante do Código Civil (artºs 152º a 156º), a inabilitação prevista no CIRE não visa a protecção e defesa do inabilitado.

         Mas, se bem vemos, igualmente se não destina à defesa do interesse dos credores, pois em nada contribui para a consecução da finalidade do processo de insolvência que, nos termos do artº 1º, consiste na liquidação do património de um devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores, ou na satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.

         De resto, os interesses dos credores já se encontram defendidos com o nº 1 do artº 81º, segundo o qual a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência e pelo nº 6 do mesmo preceito legal, que sanciona com a ineficácia os actos realizados pelo insolvente em contravenção do disposto nos números anteriores.

         Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também que a inovação introduzida pelo artº 189º, nº 2, al. b) possa contribuir eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a posição dos eventuais credores futuros do inabilitado, já que estes, de acordo com o regime da inabilitação, carecerão de legitimidade para arguir a invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador.

         A inabilitação das pessoas afectadas pela insolvência só pode, pois, ter um alcance punitivo, ferindo o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis diminutio, retirando-lhe a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos ou apreensíveis para a massa insolvente e sujeitando-o à assistência de um curador.

         Trata-se, portanto, de uma restrição à capacidade civil do insolvente que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da insolvência e, em particular, a inibição para o exercício do comércio, tem de considerar-se inadequada e excessiva, conduzindo à conclusão de que o artº 189º, nº 2, al. b) do CIRE está em desconformidade com o artº 26º, nºs 1 e 4, conjugado com o artº 18º, nº 2, ambos da Constituição da República.

         Haverá, pois, face ao estatuído no artº 204º, da Constituição, que negar a aplicação daquelas normas e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que decretou a inabilitação do recorrente.


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         2.2.2. Irrelevância dos factos anteriores à entrada em vigor do CIRE

         Enquanto vigoraram os artºs 1135º a 1325º do Cód. Proc. Civil e os regimes da falência (dos comerciantes) e da insolvência (dos não comerciantes) aí se encontravam regulados, a instrução para indiciação do falido e classificação da falência (em casual, culposa ou fraudulenta) constituía um incidente processado por apenso, em que eram observados os termos prescritos nas leis de processo penal, exercendo o tribunal da falência a competência ali estabelecida para os tribunais penais (artº 1280º, nº 1).

         Na vigência do CPEREF, indiciando-se a prática de qualquer dos crimes previstos e punidos pelos artºs 227º a 229º do Cód. Penal, era dado conhecimento ao Ministério Público, seguindo-se depois, designadamente no tocante à competência, os termos prescritos nas leis de processo penal (artºs 224º a 227º).

         No CIRE manteve-se, nos artºs 297º a 300º, o procedimento previsto no CPEREF para os casos de haver indícios da prática de qualquer dos crimes previstos e punidos nos artºs 227º a 229º do Cód. Penal.

         Mas instituíram-se incidentes (incidente pleno e incidente limitado), de carácter exclusivamente civil, destinados à qualificação da insolvência (como fortuita ou culposa) – artºs 185º a 191º.

         Este incidente não tem correspondência na lei anterior, tendo carácter inovador[7].

         Estabelece o artº 186º:

         1 — A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

         2 — Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

         a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

         b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

         c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

         d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

         e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

         f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

         g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

         h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

         i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.° 2 do artigo 188.º

         3 — Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:

         a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

         b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

         4 — O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.

         5 — Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.

         Tendo o CIRE entrado em vigor em 15/09/2004 (artº 13º do Dec. Lei nº 53/2004 de 18/03), sustenta o recorrente que não podem ser atendidos, para efeito da qualificação da insolvência como culposa [e aplicação das medidas daí decorrentes, designadamente as previstas no artº 189º, nº 2)], os factos anteriores a essa data, ainda que compreendidos nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

          Que, tendo a sentença recorrida qualificado como culposa a insolvência com base em factos anteriores àquela data, aplicou retroactivamente o CIRE, incorrendo em violação do artº 12º, nº 2 do Cód. Civil (conclusão 42ª).

Que a decisão é também inconstitucional por violação do art. 18.°/3 da CRP, por ter aplicado retroactivamente um quadro jurídico – o dos arts. 185.°/1 e ss do CIRE – intrusivo em direitos fundamentais integrados no elenco de direitos, liberdades e garantias da constituição, designadamente o direito à capacidade civil (art. 26.°/1 da CRP), ao bom nome e à reputação (art. 26.°/1 da CRP) e à liberdade de iniciativa económica (art. 61.°/1 da CRP) (conclusão 43ª).

E que o art. 13.° do DL 53/2004 de 18 de Março, quando conjugado com os arts. 185.° e ss do CIRE é inconstitucional quando interpretado no sentido de admitir, na aferição do juízo de insolvência culposa e no decretamento das medidas de inibição para o comércio e inabilitação, factos que reportem a data anterior à entrada em vigor do CIRE por violação dos artigos da Constituição indicados na conclusão anterior (conclusão 44ª).

Vejamos.

         Os artºs 185º e seguintes do CIRE, relativos aos incidentes de qualificação da insolvência, contêm normas de carácter substantivo e normas de carácter adjectivo.

         Quanto às de carácter adjectivo, não há qualquer óbice a que se apliquem integralmente a todos os processos iniciados a partir da data da entrada em vigor do CIRE (artºs 12º e 13º do Decreto-Lei nº 53/2004 de 18/03).

         Relativamente às de carácter substantivo, não lhes tendo sido expressamente fixada eficácia retroactiva, há que respeitar o regime legal da aplicação das leis no tempo, constante, no essencial[8], do artº 12º do Cód. Civil, sendo a regra principal a de que a lei só dispõe para o futuro (nº 1, 1ª parte). Essa regra é reforçada com a estatuição de que, se à lei for atribuída eficácia retroactiva, se presume que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (2ª parte do nº 1).

         Esclarecendo aquela regra principal, estabelece o nº 2 que quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, se entende, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

         O artº 186º do CIRE, ao estatuir, no nº 1, que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e ao estabelecer, no nº 2, presunções juris et de jure de insolvência culposa e no nº 3 presunções juris tantum de culpa grave, criou, neste domínio, regras novas de direito probatório material, as quais se não podem aplicar, face ao disposto no nº 2 do artº 12º do Cód. Civil, aos casos anteriores à entrada em vigor do CIRE[9].

         A situação enquadra-se, se bem vemos, na 1ª parte do nº 2 do artº 12º do Cód. Civil, já que o artº 186º, nºs 1, 2 e 3 dispôs sobre os efeitos das actuações que descreve, situadas nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

         A aplicação daquelas normas aos actos praticados pelo recorrente antes da entrada em vigor do CIRE, ainda que situados nos três anos anteriores ao início do processo, integra inadmissível aplicação retroactiva da lei.

         E, na medida em que conduz ao decretamento das medidas previstas no artº 189º, nº 2 e estas contendem com direitos, liberdades e garantias, aquela aplicação retroactiva padece também de inconstitucionalidade, por violação dos artºs 18º, nº 3 e 26º, nº 1 da Constituição[10].       

         Assim sendo, toda a actuação do recorrente anterior à entrada em vigor do CIRE deverá ser, para efeitos do incidente da qualificação da insolvência, desconsiderada, aplicando-se o pertinente direito apenas à factualidade restante.


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         2.2.3. Inexistência de fundamento para a qualificação da insolvência como culposa

         Não levando em conta, pelos motivos acima expostos, os factos ocorridos antes de 15/09/2004, data da entrada em vigor do CIRE, a factualidade a considerar com vista á qualificação da insolvência reduz-se à alegada omissão do dever de requerer a declaração de falência, à venda, no dia 30/11/2005, à sociedade G... , de uma viatura de marca Mercedes 2361, com a matrícula X...., pelo valor de € 50.069,36 (nº 10 dos factos provados) e à venda, no dia 07/11/2005, a H... , de um Manitou MT 65, no valor de € 500,00 (nº 12          dos factos provados)[11].

         Relativamente à viatura de marca Mercedes, há que ter ainda presente que a sociedade G... – registada em 28/11/2000 (fls. 72) – sempre a utilizou no exercício da sua actividade; e, no tocante à máquina Manitou MT 65, que tinha vários anos de idade tendo sido utilizada com muita frequência na A..., ENI.

         Na sentença sob recurso foi a insolvência qualificada como culposa, em primeira linha, por se ter considerado preenchida a previsão da al. a) do nº 2 do artº 186º (conjugado com o nº 4 do mesmo preceito legal), ou seja, que o devedor fez desaparecer parte considerável do seu património.

         Esse entendimento baseou-se essencialmente na factualidade constante dos nºs 4, 16 e 17 da relação dos factos provados, factualidade essa que, por ter tido lugar antes de 15/09/2004, não pode ser considerada.

         A factualidade restante, já atrás mencionada, apresenta-se como claramente insuficiente para preencher aquela previsão, já que, por um lado, a viatura de marca Mercedes e a máquina Manitou MT 65, não constituíam, face a quanto consta dos autos, a totalidade ou parte considerável do património do insolvente e, por outro, não está provado nem que os preços de venda fossem inferiores aos reais, nem que os respectivos montantes não tenham entrado naquele património.

         Não se mostra, portanto, integrada a previsão do artº 186º, nº 2, al. a) nem, por isso, se verifica a presunção inilidível de insolvência culposa que daí decorreria.

         Outro dos fundamentos invocados na sentença sob recurso para a qualificação da insolvência como culposa foi a omissão por parte do insolvente do dever de requerer a declaração de insolvência, o que constitui, nos termos do artº 186º, nº 3, al. a), presunção ilidível – mas, segundo a sentença, não ilidida – de culpa grave.

         A aludida omissão constitui presunção (ilidível) de culpa grave, mas não dispensa a prova do nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência (nº 1 do artº 186º)[12].

         Comecemos, pois, por verificar se houve ou não omissão de questionado dever. Havendo-a, passará a apurar-se da ilisão ou não da presunção de culpa grave. E, não se mostrando ilidida a presunção, da existência ou não do falado nexo de causalidade.

         A situação de insolvência ocorre quando o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artº 3º, nº 1).

         O devedor – exceptuando se for uma pessoa singular que não seja titular de uma empresa na data em que se verifique aquela impossibilidade, hipótese que, in casu, está arredada – deve cumprir o dever de apresentação dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da sua situação de insolvência, ou à data em que devesse conhecê-la, presumindo-se, de forma inilidível, o conhecimento, no caso de devedor titular de empresa, decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº 1 do artº 20º[13] (artº 18º).

         Não há elementos factuais no sentido de que tenha ocorrido o incumprimento generalizado susceptível de accionar a presunção juris et de jure de conhecimento por parte do recorrente da situação de insolvência.

         Da mesma forma que faltam factos que permitam situar no tempo o conhecimento – ou a obrigação de conhecimento – da situação de insolvência por parte do recorrente.

         Há mesmo alguns factos, nomeadamente os constantes dos nºs 13, 34 a 36 e 46 do rol dos factos provados, indiciadores de que o recorrente – apesar da superioridade do passivo relativamente ao activo – pode ter estado até próximo da entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência (30/11/2005) convicto de que conseguiria cumprir as suas obrigações vencidas e, consequentemente, de que a sua situação não era de insolvência.

          Não se mostra, pois, também, preenchida a previsão da al. a) do nº 3 do artº 186º.

         Finalmente, restará dizer que, contrariamente ao entendimento expresso na sentença recorrida, a factualidade provada, expurgada daquela que, por ser anterior a 15/09/2004, não pode ser considerada, não reúne virtualidades para preencher a previsão do nº 1 do artº 186º.

         Com efeito, as vendas da viatura de marca Mercedes e da máquina Manitou MT 65, nas circunstâncias em que ocorreram, não indiciam actuação dolosa ou com culpa grave do recorrente capaz de criar ou agravar a situação de insolvência[14].

         De quanto fica dito decorre que inexiste fundamento para a qualificação da insolvência como culposa, com a consequente qualificação da mesma como fortuita (artº 185º) e ficando prejudicado o conhecimento da questão da redução da duração das medidas de inabilitação e inibição para o exercício do comércio, também colocada, subsidiariamente, pelo recorrente.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida e qualificar de fortuita a insolvência de A..., declarada por sentença proferida em 12/01/2006, transitada em julgado em 06/02/2006.

As custas são a cargo das recorridas.


[1] Aprovado pelo Dec-Lei nº 53/2004, de 18 de Março e alterado pelos Decretos-lei nº 200/2004, de 18 de Agosto e 282/2007, de 7 de Agosto.
  São deste diploma as disposições legais adiante citadas sem outra menção.
[2] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, págs. 267/279.
[3] Ac. Trib. Const. de 0170471992, D.R., II Série, nº 169, de 24/07/1992.
[4] Ac. Trib. Const. referido.
[5] Ac. Trib. Const. nº 564/2007, de 13/11/2007, in DR nº 31, Série II, de 2008/02/13, cuja argumentação, com a devida vénia, passaremos a seguir de perto, por vezes com transcrição quase textual de algumas passagens.
[6] Revista “Themis”, 2005, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor, pág. 97.
[7] Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Volume II, 2006, págs. 11 e seguintes.
[8] O artº 13º também se refere ao mesmo tema, mas limita-se á questão das leis interpretativas.
[9] Acórdãos do STJ de 25/01/1977, in BMJ, nº 263, pág. 232 e de 23/10/1979, in BMJ, nº 290, pág. 333; Prof. Vaz Serra, RLJ; anos 110º, págs. 383 e segs e 111º, págs. 3 e segs.
[10] Não se vê que a aplicação retroactiva em causa conflitue com o direito à liberdade de iniciativa económica, previsto no artº 61º, nº 1 da Constituição. Nem se encontra fundamento para equiparar esse direito aos direitos, liberdades e garantias, não lhe sendo, pois, aplicável o regime do artº 18º, nº 3.
[11] A dação em cumprimento, feita em 09/02/2006, referida no nº 6 dos factos provados, de um bem imóvel que constituíra uma parte do imobilizado afecto à actividade do insolvente perdeu qualquer relevo face à alteração para não provado da resposta dada ao quesito 2º e à consequente eliminação do nº 15 dos factos assentes. É que, como se explicou, o prejuízo para o património do insolvente decorreu da alienação desse bem para a sociedade “Cernale, SA”, feita em 28/11/2003 (cfr. ponto 17 dos factos provados) e não da dação em cumprimento feita em 09/02/2006.
[12] Ac. Rel. Porto de 13/09/2007 (Proc. 0731516, relatado pelo Ex.mo Des. José Ferraz); Ac. Rel. Guimarães de 20/09/2007 (Proc. 1728/07-2, relatado pelo Ex.mo Des. António Gonçalves); e Ac. Rel. Évora de 17/04/2008 (Proc. 2773/07-2, relatado pelo Ex.mo Des. Sílvio Sousa), todos in www.dgsi.pt.
[13] São elas: i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência.
[14] Além da mais porque, como acima se referiu, não está provado que os preços de venda tenham sido inferiores aos valores reais dos bens vendidos, nem que os respectivos montantes não tenham entrado no património do insolvente.