Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
666/05.5TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ALMEIDA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL CÍVEL
CONTRATO ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 10/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVOLHÃ - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 4º Nº1 AL.F) DO ETAF, 270º E 405º DO CC E 66º DO CPC
Sumário: Os tribunais comuns são os tribunais competentes, em razão da matéria, para julgar a acção proposta pelo Município da Covilhã pedindo a resolução de um contrato de compra e venda celebrado com uma sociedade comercial, dado que a relação jurídico-contratual donde emerge o litígio, objecto da acção, é uma questão de direito privado em que o A. actuou desprovido de qualquer autoridade pública.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I – RELATÓRIO
1. O Município da A..., representado pelo Presidente da Câmara Municipal da A... , intentou no 2º Juízo do Tribunal Judicial da mesma cidade e comarca, a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra B.. , peticionando, a final:
a) Seja declarada a resolução da escritura de compra e venda celebrada entre o A. e a R., em 29.05.2000, através da qual o A. declarou vender à R., pelo preço de 4.010$00, o lote de terreno n. º 6 destinado a construção urbana, sito em Lameiras ou Cascalhal, freguesia do Tortosendo, com a área de 4.010 metros quadrados, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2513 e descrito na Conservatória do Registo Predial da A... sob o n.º 01562.
b) Seja ordenado o cancelamento, na respectiva Conservatória do Registo Predial, de qualquer registo que tenha sido efectuado depois da referida compra e venda a favor da R., bem como de todos os registos efectuados com referência ou base nesse contrato.
Ou, caso assim não se entenda, e na procedência do pedido subsidiário:
c) Seja a R. ser condenada a pagar ao A. a quantia de € 252.948,60 e os juros contados à taxa legal que se vencerem até integral pagamento ao A. daquela quantia ou da que se vier a apurar como sendo devida.
Para tanto, e muito em síntese, alegou que pela mencionada escritura e inerente preço a A. declarou vender à Ré o também referido lote.
Que, conforme consta da sobredita escritura tal lote destinava-se à implantação dos serviços da Ré na Zona Industrial de Tortezendo, que assim deveria nesse espaço proceder ao regular desenvolvimento da sua actividade económica habitual –Confecções para Homem.
Que, e ainda segundo a mesma escritura, a venda realizou-se nas condições estabelecidas no Regulamento de Atribuição de Lotes nas Zonas Industriais da A.... , tendo em vista –conforme o preâmbulo de tal Regulamento-, apoiar projectos que visem a expansão de unidades empresariais da região, assim como a fixação no concelho de novas unidades industriais.
Que assim –mais diz-, o A. vendeu à R. o apontado lote por um preço meramente simbólico, tendo em contrapartida no Regulamento sido estabelecidos diversos prazos a respeitar pelo Investidor, entre eles o de seis meses após a conclusão das obras para o início da laboração devidamente licenciada, sob pena de o lote reverter de novo para a Câmara Municipal.
Ora –acrescenta-, a Ré não respeitou qualquer desses prazos e correlativos procedimentos, sendo que passados mais de quatro anos desde a realização da escritura, a mesma não só não iniciou a laboração da sua actividade no lote, como nem sequer deu ainda início à construção das respectivas instalações.
Deste modo, verifica-se a condição resolutiva do contrato fundada na convenção das partes, devendo por isso o terreno reverter à posse do A. ou, caso assim se não entenda sempre haverá uma situação de enriquecimento sem causa por parte da Ré, por isso que, como se disse, o valor real do terreno, ascendendo a €. 200.500,00, largamente excede aquele preço irrisório acordado pelas partes.
E assim fundado, deduziu o A., nos moldes apontados, os acima indicados pedidos.
Citada, a Ré deduziu contestação por excepção e impugnação, formulando ainda pedido reconvencional, no sentido de condenação do A. a reconhecer que a Ré é legítima dona e possuidora do lote, ou, a assim se não entender, de condenação do mesmo a pagar-lhe o valor das benfeitorias levadas a cabo no dito lote, em valor a determinar em liquidação de sentença.
O A. aduziu réplica, secundado pela Ré com apresentação, por sua vez, de tréplica.
Conclusos os autos, o Mm.º Juiz, proferindo o competente despacho saneador, julgou oficiosamente incompetente, em razão da matéria, o Tribunal da Comarca da A.... e, declarando competentes para dirimir o litígio os tribunais administrativos, absolveu a Ré da instância.

2. Inconformado com o assim decidido, o A. interpôs o vertente recurso de agravo, cujas alegações encerra com as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença, proferida a 10.02.2006, nos termos da qual o Tribunal da 1.ª Instância se julgou incompetente, em razão da matéria, e declarou serem os Tribunais Administrativos os competentes para dirimir o presente litígio.
II. Trata-se de uma decisão inaceitável, antes sendo competentes os Tribunais Civis.
III. Ao contrário do sustentado na sentença recorrida não estamos perante uma relação jurídico administrativa.
IV. O objecto do contrato tem natureza de direito privado, uma vez que se trata de uma compra e venda.
V. Por outro lado, é óbvio que o legislador não regulou tal contrato em termos específicos pelo facto de a Administração ser parte (como é o caso típico dos contratos nominados do artigo 178.º, n.º 2 do CPA).
VI. Acresce ainda que também não encontramos no contrato qualquer marca de administratividade, pois que o Município não goza de quaisquer poderes de autoridade, nem o contrato investe o ente público dos poderes previstos no artigo 180.º do CPA.
VII. Com efeito, não é possível encontrar no Regulamento de Atribuição de Lotes nas Zonas Industriais da A.... qualquer cláusula que confira poder ao Município para modificar unilateralmente as obrigações do contraente particular.
VIII. Além do mais, apesar de serem estipulados prazos para cumprimento de obrigações do particular, este não fica sujeito a um poder de direcção do Município.
IX. Com efeito, a não atribuição de poderes de direcção ao Município denota até que o exercício da actividade levada a cabo pela Agrava não abrange sequer a satisfação imediata do interesse público.
X. Na verdade, apesar de o Município ter como objectivo último o desenvolvimento do tecido industrial da zona do Tortosendo, tal fim não é satisfeito de forma imediata, através da celebração do contrato de compra e venda com a Agravada.
XI. Por outro lado, também não se encontra qualquer marca de administratividade quanto à possibilidade de rescisão do contrato pelo Município, já que a Agravante apenas o pode fazer em casos de incumprimento por parte do contraente particular.
XII. O Município não está investido de poderes exorbitantes, pois que o Regulamento não condiciona o modo de execução do contrato à fiscalização da Administração Pública, e nem seque prevê qualquer tipo de sanções a aplicar ao particular em caso de inexecução do contrato.
XIII. Em face do exposto, dúvidas não devem restar, tanto quanto à impossibilidade do Município exercer os poderes previstos no artigo 180.º do CPA, como quanto ao facto do contrato não satisfazer, de forma imediata, o interesse público.
XIV. Com efeito, não existem quaisquer condições especiais de sujeição do contraente privado ao interesse público,
XV. O que justifica até o facto da sentença recorrida não especificar qualquer condição especial que reflicta a falta de paridade entre as partes em razão do referido interesse público.
XVI. Assim, tendo em conta que não existe qualquer elemento que permita qualificar como público administrativa a relação contratual entre as partes, não poderá ter aplicação o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
XVII. Pelo que, a competência material para apreciação da presente acção cabe aos tribunais judiciais.

II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões das alegações do Recorrente, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas.
Assim, e tendo em mente as sintéticas proposições transcritas supra, constatamos que apenas a uma se circunscreve a questão nelas enformada, a qual se traduz em saber se a competência em razão da matéria para julgar o litígio em apreço nestes autos pertence aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, neste último caso, mais exactamente, ao Tribunal Judicial da Comarca da A.... .

2. O A. e aqui Recorrente sustenta que essa competência cabe ao mencionado Tribunal, precisamente onde ele fez ingressar a sua douta P.I. com base na qual o vertente processo se desencadeou.
O Mm.º Juiz recorrido, ao invés, pronuncia-se no sentido de serem os tribunais da ordem administrativa os materialmente competentes, declinando a do seu foro
A fundar este entendimento, o Mm.º Juiz aduziu, no essencial, que no contrato em foco nos autos se pode falar de uma especial cláusula de sujeição do contraente particular (a Ré) ao interesse público emanado das especiais condições do Regulamento Municipal [de Atribuição de Lotes nas Zonas Industriais da A.... ], actuando o Município da A.... (A.), representado pelo seu Presidente, no interesse das pessoas residentes na circunscrição municipal.
O Recorrente adversa em absoluto este entendimento, dizendo, no essencial, que no ventilado contrato –cujo objecto tem natureza de direito privado, na medida em que se trata de uma compra e venda-, não existem quaisquer condições especiais de sujeição do contraente privado ao interesse público, não estando por isso o A./Município da A.... investido de poderes exorbitantes.
Que dizer? Vejamos.

3. Consoante bem se sabe, no seu agir em prossecução do interesse público ou comum, a Administração Pública, no âmbito bilateral ou consensual, celebra vários tipos de contratos, uns de direito privado –contratos civis- e outros submetidos ao direito público –contratos administrativos.
Como elucida Pedro Gonçalves, in O Contrato AdministrativoUma Instituição do Direito Administrativo do Nosso Tempo, Almedina, pág. 32, os traços nucleares desta última figura –contratos administrativos-, residem na conjugação da consensualidade (própria de todo o contrato) com a autoridade (própria do contrato administrativo).
Como também, um pouco adiante (pág. 33), explicita o mesmo Autor –por cuja exposição bem de perto nos continuaremos a nortear nos desenvolvimentos que se seguem-, esta “auctoritas” consubstancia-se numa posição de supremacia jurídica da entidade pública sobre o co-contratante particular, em função da qual essa entidade fica investida de certos poderes públicos, por vezes apelidados de “prerrogativas exorbitantes”. Estes poderes ou prerrogativas desigualizam as posições relativas a cada uma das partes, de tal modo que a relação contratual não se evidencia –a exemplo do que ocorre com as de cariz privatístico-, como uma relação direito vs. dever, mas sim, e bem diferentemente, como poder público v.s sujeição – no mesmo sentido, cfr. também José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, in Noções Fundamentais de Direito Administrativo, Almedina, pág. 243.
Deste modo, o contrato administrativo resulta, pois, da conjugação da autonomia pública contratual da entidade administrativa com a aceitação por parte do particular de se submeter a um regime jurídico-público, marcado pela supremacia contratual de tal entidade.

4. Expostas estas sumárias considerações e aproximando-as do veredicto proferido pelo Mm.º Juiz, logo concluímos que na base de tal pronunciamento esteve a consideração por parte do mesmo Magistrado do contrato firmado entre A. e Ré como um contrato administrativo, com a inerente apontada “claúsula de sujeição” desta última em relação àquela e ao prevalecente interesse por ela prosseguido.
E como assim, e por isso que “in casu” estamos perante um contrato de compra e venda dotado de objecto “não público”, e portanto insusceptível de acto administrativo, mais se conclui que foi tendo em mente o preceituado na parte final da al. f), do nº1, do art.º 4º, do novo .E.T.A.F., que o Mm.º Juiz se determinou pela atribuição da competência para o julgamento da lide em presença ao contencioso administrativo.
Com efeito, nesse segmento normativo, estipula-se que “ Compete aos tribunais da jurisdição administrativa (...) a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública (...) e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.”
Salvo o muito respeito, porém, não podemos subscrever este entendimento do Mm.º Julgador.
Senão, vejamos.

5.Como dissemos, o regime substantivo (de direito público) que caracteriza o contrato administrativo pauta-se, fundamentalmente, por conferir à entidade pública uma posição de superioridade jurídica sobre o sujeito particular, investindo aquela em poderes de autoridade que desequilibram em seu favor as posições dos intervenientes no contrato.
O fundamento para esse regime radica no princípio da prevalência do interesse público e, portanto, na circunstância de tal interesse, por virtude da sua natureza e relevo, não poder deixar de se sobrepor e vingar sobre o interesse particular. De tal modo –e uma vez mais consoante a impressiva exposição de Pedro Gonçalves (ob. cit., pág. 34) “ a “lógica do contrato” ou do “pactum” tem de ceder diante da “lógica da função”: as exigências de interesse público hão-de certamente estar acima do vínculo contratual e, portanto, do respeito pelo pacta sunt servanda.”
Como o mesmo Dr. Pedro Gonçalves também esclarece (ob. cit., pp. 34 e 106, 112 e passim)–uma vez mais em consonância com aquela dupla de Autores acima mencionados (ob. cit., pág. 243)-, a concretização legal desse específico regime está essencialmente consumada nas várias alíneas do art.º 180º do Código do Procedimento Administrativo, corporizando-se nos vários poderes públicos nesse dispositivo elencados. São estes poderes, pois, que no essencial se configuram como os apontados “poderes de autoridade” dos quais deriva a posição de supremacia da Administração –com a contraposta sujeição do particular-, no âmbito da relação jurídica emergente do contrato administrativo.
Incidindo a nossa atenção sobre essas mencionadas alíneas do art.º 180º, constatamos que tais poderes –nos quais o predito regime de exorbitância ancora-, se cifram em cinco, a saber: a) – poder de modificação unilateral do conteúdo das prestações; b) – poder de direcção da execução; c) – poder de rescisão unilateral do contrato por imperativo de interesse público; d) – poder de fiscalização da execução do contrato; e e) – poder de aplicação de sanções.

6. Ora, tendo em mente estes poderes, será que algum ou alguns são reconhecíveis em face das cláusulas integrantes do contrato dos autos?
Como antes avançámos, pensamos, sempre ressalvando diverso opinativo, que a resposta não pode ser senão negativa, à semelhança do que doutamente advoga o aqui Recorrente.
E o Mm.º Juiz, conquanto se reporte no seu veredicto, como vimos, a “uma especial cláusula de sujeição do contraente do contraente particular”, salvo sempre o muito respeito, também não precisa qual ela seja.
Que não se verifica o primeiro, terceiro e quarto daqueles poderes, tê-mo-lo não só por certo, mas também como insusceptível de controvérsia, pelo que a este respeito nos guardaremos de adicionais e despiciendas considerações.
No que tange à direcção da execução do contrato, algumas das cláusulas do ventilado convénio –notadamente as dos arts. 5º, e 8º a 12º-, poderiam eventualmente induzir no sentido da evidenciação de tal poder na esfera do A. e aqui Recorrente. Porém, e como deflui do que vem sendo o nosso discurso, assim não acontece.
Com efeito, esse poder ou prerrogativa de direcção traduz-se, consabidamente, na possibilidade –de conteúdo algo indeterminado-, de o ente público dar ordens e emitir directivas e instruções vinculativas ao contraente particular sobre o modo de execução do contrato, em ordem a garantir um eficaz, célere e perfeito cumprimento do mesmo.
Ora, revisitando essas enfocadas cláusulas, pensamos, modestamente, não ser viável inferência no sentido da outorga do poder ora em consideração.
Quanto às cláusulas insertas no art.º 5º, tendo em título “Prazos”, apenas se perfilam como meras condições do acordo, não constituindo nem de outro qualquer modo dando azo a que o A. pudesse dirigir ordens ou instruções, em tal conspecto, à Ré co-contratante. No concernente às demais cláusulas, fundam-se manifestamente as mesmas no âmbito de actuação que sobre os entes autárquicos impende de promoverem e assegurarem, quer uma ordenada e racional ocupação do território, quer a salvaguarda do ambiente e qualidade de vida das populações, contribuindo assim para um cada vez mais crucial e imprescindível desenvolvimento sustentável.
Quer dizer, aquelas cláusulas não deixariam de vigorar ou fazer sentir a sua imperatividade em sede de outro qualquer contrato de índole similar à dos autos, ainda que celebrado entre particulares, sendo certo que –consoante avisadamente se sentencia no Ac. do S.T.J. de 26-6-2001, in Col./STJ, II, pág. 132-, “... sem embargo de se reconhecer que uma Câmara Municipal há-de ter sempre presente o interesse dos seus munícipes, cumprir-lhe-á, mesmo no âmbito dos contratos privados, ´pugnar por um correcto desenvolvimento urbanístico do aglomerado urbano respectivo.`”.

7. E no que toca ao outro e remanescente quinto poder –poder de sanção-, o mesmo juízo, de rejeição do respectivo estabelecimento, haverá que proferir.
Este poder, com efeito, postula um atropelo de banda do contraente privado às cláusulas ajustadas, podendo ser actuado não só no caso de pura e simples inexecução do contrato, mas também do seu cumprimento atrasado, defeituoso ou imperfeito.
Conquanto as modalidade de sanções mais recorrentemente aplicadas sejam a multa e o sequestro, também se enquadram no respectivo leque, a sanção compulsória e a rescisão anulatória.
Ora, no art.º 7º do contrato dos autos –sob a epígrafe “Penalidades”-, acha-se estipulada uma cláusula com a redacção que segue:
“O não cumprimento dos prazos referidos nos artigos 6º, ou de outros artigos do presente Regulamento, implica a resolução do contrato de compra e venda, ou a anulação da escritura celebrada, não podendo invocar o direito de retenção. Implica ainda a restituição à Câmara do(s) lote(s) de terreno, no estado em que se encontre, com toda e qualquer instalação ou benfeitoria nele implantadas, sem que o investidor tenha direito à importância já entregue ou a qualquer indemnização, salvo se houver deliberação contrária do executivo da Câmara Municipal da A.... .”
Perante esta formulação, poder-se-ia eventualmente questionar se a cláusula por ela substanciada se não reconduziria à predita rescisão a título de sanção e, logo, se do seu âmbito não decorreria uma situação de dependência ou submissão da Ré á A., fatalmente determinante de um cunho de administratividade para o contrato.
A nosso modesto ver, como antes dissemos, a resposta queda-se negativa.
Tal como se observa no sobredito aresto do nosso mais Alto Tribunal (ib., pág. 131), “ ... uma cláusula de semelhante teor é perfeitamente possível de ser estipulada entre particulares no âmbito de um contrato de compra e venda, atento o disposto nos artigos 270º e 405º do CC.” No mesmo aresto, e em idêntico pendor, cita-se ainda o sumário do Ac. do S.T.A. de 17-3-88, Proc. nº 24.111, qual seja, “constitui acto de direito privado a deliberação da Câmara municipal que, invocando cláusula de um contrato pelo qual vendeu a um particular, para a construção de um hotel, um terreno do seu domínio privado, entende assistir-lhe o direito, que pretende exercer, de reversão em virtude do comprador não ter cumprido os prazos a que se obrigara.” E na linha do assim estatuído, mais decidiu o mesmo acórdão ora em sumário que “Consequentemente, os Tribunais do contencioso administrativo não são competentes para apreciar e decidir a questão em recurso contencioso interposto pelo comprador.”

8. Nestes termos, pois, e na linha do que antecipámos, nenhum elemento susceptível de conferir natureza administrativa (pública) ao contrato em exame é possível surpreender em todo o respectivo articulado, surgindo-nos tal convénio como mero contrato de compra e venda, enformado por condições que ambas as partes subscreveram em condições de perfeita paridade, à semelhança de outro qualquer ajuste civilístico.
Em tal conformidade, vale aqui por inteiro a ponderação também inscrita no aludido Ac. do S. T.J, no sentido de que “... na acção em apreço está em causa o incumprimento de um contrato de compra e venda e o consequente accionamento de determinada condição nele clausulada ao abrigo do princípio da liberdade contratual (artigo 450º, nº 1, do CC).”
E como assim, e em conclusão, tendo o A. actuado, ainda que em mira –como sempre e inevitavelmente se lhe impõe-, do interesse público, mais especificamente do interesse das pessoas e empresas radicadas no seu perímetro territorial, verdade é que a mesma fê-lo desprovida de qualquer autoridade pública, em pé de igualdade com a Ré sua co-contratante.
Destarte, não configurando o contrato em apreço qualquer relação jurídico-administrativa, competente em razão da matéria para dirimir o enfocado conflito em face dele desencadeado, são os tribunais comuns –art.º 66º do CPC-, mais precisamente o Tribunal “a quo”.

9. Na conformidade do exposto, o douto recurso ora apreciado logra triunfo, o que dita a revogação do douto despacho saneador agravado e sua substituição por outro que, afirmando tal competência, dê o competente seguimento aos autos.

IV – DECISÃO
Frente a tudo o expendido, e sem mais considerações, dando provimento ao recurso de agravo, revoga-se o douto despacho por ele em crise, o qual se determina seja substituído por outro que julgue o Tribunal competente em razão da matéria e, em consequência, defira aos autos o curso tido por conveniente.
Sem custas.