Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
221/11.0GBOBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: RESPONSABILIDADE DO DENUNCIANTE
DENÚNCIA DE MÁ FÉ OU COM NEGLIGÊNCIA GRAVE
Data do Acordão: 09/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 520º CPP
Sumário: 1.- Quando se verifique que a denúncia que deu causa ao processo narrou factos que o denunciante sabia não corresponderem à realidade das coisas ou que não tinha fundamento sério para os reputar como correspondentes à realidade, há que decidir sobre a condenação, ou não, do denunciante nos termos do citado artº 520º do CPP
2.- O momento próprio para apreciar esse comportamento é o do fim desse mesmo processo.
Decisão Texto Integral: 1.
Em 21-4-2011 A... apresentou queixa contra B..., imputando-lhe a prática de factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de importunação sexual e um outro de ofensa à integridade física.

Entretanto em 20-9-2011 B... apresentou queixa contra A... por ter sido constituído arguido devido à queixa por esta apresentada, pessoa que nem sequer conhece. Por isso declarou «desejar procedimento criminal contra a denunciada pela difamação …».

Em 9-1-2012 o Ministério Público deduziu acusação contra B...pela prática dos factos denunciados por A...e arquivou o inquérito instaurado na sequência da queixa apresentada por B… .
Simultaneamente promoveu a condenação de B... nos termos do art. 520º do Código de Processo Penal.

Sobre o pedido foi proferida a seguinte decisão: «a questão da eventual condenação do queixoso B...em custas (relativamente ao arquivamento do crime de denúncia caluniosa) é prematura pois que, não obstante a acusação deduzida com base na denúncia, não houve ainda condenação do visado pelos factos em causa, sendo de respeitar o princípio da presunção de inocência do arguido.
Assim sendo, nada a determinar por agora quanto ao promovido …».

2.
Inconformado, o Ministério Público recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:
«1º A fls. 4 a 6 dos presentes autos, em 21.04.2011, A... apresentou queixa contra B..., pela prática de um crime de importunação sexual e de ofensa à integridade física.
2º Na sequência das diligências efectuadas no inquérito, em 09.01.2012, o Ministério Público deduziu acusação contra o ali arguido B... pela prática dos crimes por ela denunciados.
3º Resulta suficientemente indiciado ter o arguido incorrido na prática daqueles crimes, pois toda a prova indiciária indicada na acusação, designadamente pericial, testemunha e documental, vai ao encontro da versão dos factos apresentada pela ali denunciante A... .
4º No inquérito nº 481/11.7GBOBR, apenso aos presentes autos, em 20.09.2011, B... apresentou queixa contra A..., porquanto refere que, naquele dia, foi constituído arguido no inquérito nº 221/11.0GBOBR, supra aludido e que "ao ser confrontado com os factos do qual é acusado pela denunciada, A..., ficou admirado pelo facto de não conhecer a pessoa que o acusa das agressões.
Por tal facto, o denunciado vem desejar procedimento criminal contra a denunciada pela difamação dos facto que lhe são imputados (...)".
5º Os factos assim descritos pelo ali denunciante B... são susceptíveis, em abstracto, de integrar a prática de um crime de denúncia caluniosa, p.p. pelo art. 365º nº 1, do Código Penal, contra A....
6º Atenta a prova indiciária recolhida no inquérito, por despacho de 09.01.2012, o Ministério Público arquivou o crime de denúncia caluniosa, em que era denunciante B..., por considerar que a denunciada A... não agiu com "consciência da falsidade da imputação"; e deduziu acusação pela prática de um crime de importunação sexual e ofensa à integridade física, em que o mesmo é arguido.
7º Existem, assim dois despachos finais, em que, quanto ao crime de denúncia caluniosa, B... é denunciante, e um despacho de acusação pela prática de crimes de importunação sexual e ofensa à integridade física, em que aquele assume a qualidade de arguido.
8º Na sequência daquele despacho de arquivamento, promoveu o Ministério Público ao M.mo J.I.C. condenação de B..., nos termos do art. 520º do Código de Processo Penal, uma vez que ele, quanto ao crime de denúncia caluniosa, tem a qualidade de denunciante.
9º Decorrido que se encontram os prazos para a competente reacção processual de B... face àquele despacho de arquivamento, designadamente através de requerimento para abertura de instrução e reclamação hierárquica, foram os autos conclusos ao M.mo J.I.C., nos termos e para os efeitos do art. 520º do Código Penal, conforme promovido pelo Ministério Público.
10º Por douto despacho de fls. 109, o M.mo J.I.C. decidiu que: "a questão da eventual condenação do queixoso em custas (relativamente ao crime de denúncia caluniosa) é prematura pois que, não obstante a acusação deduzida com base na denúncia, não houve ainda condenação do visado pelos factos em causa, sendo de respeitar o princípio da presunção de inocência do arguido.
Assim sendo, nada a determinar por ora quanto ao promovido".
11º É deste despacho que o Ministério Público recorre, por dele não se conformar.
12º Vejamos: a condenação em custas requerida pelo Ministério Público visa sancionar a actuação processual de B..., não enquanto arguido pela prática dos crimes de importunação sexual e ofensa à integridade física, mas enquanto denunciante pela prática do crime de denúncia caluniosa.
13º Atentas as declarações prestadas por B... na denúncia efectuada no inquérito nº 481/11.7GBOBR, em conjugação com o teor da prova indiciária indicado na acusação, resulta que a queixa apresentada por B... se destinou a condicionar a vontade de A... quanto ao prosseguimento do exercício legítimo do processo, na sequência do direito de queixa por ela exercido.
14º No entanto, o exercício daquele direito de queixa, por parte de B..., tratou-se de um meio ilegítimo para condicionar a marcha do processo, relativamente aos crimes pelos quais aquele foi constituído arguido, sendo, por conseguinte, uma manobra processual alheia ao funcionamento da justiça e, até, ao âmbito do exercício legítimo dos direitos de defesa que lhe assistem enquanto arguido.
15º Por outro lado, no despacho recorrido alega-se o princípio de presunção de inocência do arguido. No entanto, na óptica do Ministério Público, a condenação de B..., nos termos do art. 520º do Código de Processo Penal, radica na actividade processual levada a cabo enquanto denunciante da prática do crime de denúncia caluniosa e não enquanto arguido pela prática dos crimes de importunação sexual e de ofensa à integridade física.
16º O art. 520º exprime a vontade do legislador em sancionar o desnecessário accionamento da máquina da justiça: o Estado tem interesse em que o processo penal somente seja desencadeado a partir de uma denúncia ou suspeita séria e fundada, de forma a obstar que a máquina da administração da Justiça seja abusivamente e em vão posta em marcha. Parece-nos, pois, que, ao apresentar queixa pela prática do crime de denúncia caluniosa, B... agido com má fé, nos termos do art. 52º do Código de Processo Penal.
17º Também não parece que a condenação nos termos do art. 520º do Código de Processo Penal vá pôr em causa o princípio de presunção de inocência titulado por B..., uma vez que o crime por ele denunciado - o de denúncia caluniosa - não consta da acusação deduzida pelo Ministério Público. Ora, como é consabido, os factos da acusação, in casu, é que fixam o objecto do processo, sendo certo que a condenação promovida, nos termos do art. 520º do Código de Processo Penal, em nada contende com o objecto do processo que há-de ser submetido a apreciação judicial na fase de julgamento.
18º São os factos integrantes da prática dos crimes de importunação sexual e de ofensa à integridade física que vão ser introduzidos em juízo e não nos parece que a condenação nos termos do art. 520º do Código de Processo Penal, pelo M.mo J.I.C., de B..., enquanto denunciante de outros factos que o Juiz do julgamento não pode conhecer, seja sequer susceptível de condicionar a convicção do julgador, com prejuízo da presunção de inocência que assiste ao mesmo.
19º Por outro lado, no despacho recorrido entende-se nada haver a determinar por ora quanto ao promovido. Com todo o respeito, parece-nos que não será assim. Senão vejamos: o inquérito já foi encerrado com a dedução de despacho de arquivamento e outro de acusação. A condenação promovida contende com a prática de um acto processual levado a cabo por B... na fase de inquérito: a denúncia apresentada no inquérito nº 481/11.7GBOBR, apenso a estes autos.
20º Não nos parece que, num momento ulterior, já depois de os autos serem remetidos a juízo, possa depois o juiz do julgamento conhecer e apreciar a Pr. efectuada pelo Ministério Público, por causa de um acto processual praticado por B... na fase de inquérito e relativamente ao qual o mesmo assume a qualidade, não de arguido, mas de denunciante.
21º Por outro lado, como foi dito, o Juiz da fase de julgamento não pode apreciar quaisquer factos alheios ao objecto do processo, fixados na acusação deduzida. Nem tal seria possível na sentença, em caso de condenação ou até absolvição, até porque, como dispõe o art. 379º nº 1, c), do Código de Processo Penal, é nula a sentença que conheça de questões de que o tribunal não podia tomar conhecimento, como é o caso de factos praticados por B... enquanto denunciante e na qualidade de queixoso, na fase de inquérito.
22º E, uma vez que não houve qualquer reacção processual àquele despacho de arquivamento pela prática do crime de denúncia caluniosa, foram os autos arquivados, nessa parte, pelo que incumbia ao M.mo J.I.C. condenar o denunciante B..., nos termos do art. 520º e 8º, nº 6 do Regulamento das Custas Processuais.
23º Acresce que, na parte da denúncia caluniosa, e decorrido que se encontra o prazo para abertura de instrução ou reclamação hierárquica, os autos foram arquivados; o processo encontra-se, pois, findo, nessa parte, sendo, por conseguinte este o momento processual oportuno para apreciação pelo M.mo J.I.C. daquela promoção, nos termos do art. 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais.
24º Também não parece que, em momento posterior à remessa dos autos para a fase de julgamento, possa depois o M.mo J.I.C. pronunciar-se quanto àquela Pr. do Ministério Público, uma vez que a intervenção do M.mo J.I.C. se esgota nas fases processuais de inquérito e instrução, sendo que, quanto a esta última fase, a ela já não pode haver lugar».
Termina imputando ao despacho recorrido a violação dos art. 520º do C.P.P. e 8º, nº 6 e 9, do Regulamento das Custas Processuais.

3.
O recurso foi admitido.

4.
Nesta Relação o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido do provimento do recurso porque, diz, estamos perante uma denúncia que já teve despacho final e não ultrapassou a fase de inquérito, cabendo nesta fase o exercício de tal competência ao juiz de instrução criminal.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.
*
DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir respeita à oportunidade de apreciação do comportamento processual de B... para efeitos do art. 520º do C.P.P.

*

Como dissemos, o Ministério Público promoveu a condenação do queixoso B...nos termos do art. 520º do C.P.P. por entender que a queixa que ele apresentou contra A...apenas visou condicionar a vontade desta quanto ao prosseguimento do processo resultante da queixa que esta apresentou contra ele.
Sendo a denúncia de factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime um direito fundamental reconhecido a todos, já o seu exercício abusivo, com o exclusivo fim de obstar ao correto funcionamento da máquina da justiça, deve ser travado. A isso se destina o mecanismo do art. 520º do C.P.P.

Vejamos, então, se assiste razão ao recorrente, sobre o oportunidade da aplicação, ou não, do art. 520º do C.P.P..

O despacho recorrido entendeu ser prematura a «eventual condenação do queixoso B...em custas» e protelou a apreciação da questão para momento posterior porque «não obstante a acusação deduzida com base na denúncia, não houve ainda condenação do visado pelos factos em causa, sendo de respeitar o princípio da presunção de inocência do arguido».
Daqui resulta que para a decisão recorrida há uma conexão íntima entre o destino do processo derivado da queixa apresentada por A...e o processo resultante da queixa de B...e só haverá que decidir da eventual condenação deste em custas, nos termos do art. 520º do C.P.P., se ele vier a ser condenado pela prática dos factos denunciados por aquela.

O art. 520º insere-se no livro XI do código que respeita à responsabilidade por custas do arguido, do assistente, do Ministério Público e, ainda, às custas das relativas ao pedido cível.
O art. 513º, que inicia o livro, diz que o arguido paga custas quando for condenado em 1ª instância e quando decair totalmente em qualquer recurso. Do mesmo modo quando condenado pagará os encargos a que a sua atividade houver dado lugar, nos termos do art. 514º.
Os art. 515º a 519º tratam das situações de pagamento de taxa de justiça por parte do assistente.
O art. 522º estabelece a isenção do Ministério Público quanto ao pagamento de custas e o art. 523º remete para o processo civil as regras de custas quanto aos pedidos de indemnização civil.
Quanto ao art. 520º, ele trata da “responsabilidade do denunciante” e diz que «paga também custas o denunciante, quando se mostrar que denunciou de má fé ou com negligência grave».
Perante isto é claro que a responsabilidade por custas do denunciante nada tem a ver com a eventual condenação desse denunciante em custas derivada da sua condenação pela prática de um qualquer crime: a condenação em custas resultante de uma condenação crime deriva do disposto no art. 513º; a condenação em custas nos termos do art. 520º nunca resulta de uma condenação crime.
Portanto, o art. 520º não é aplicável ao condenado pela prática de um crime.

Assiste, pois, inteira razão ao recorrente quando diz que a eventual condenação de B...ao abrigo do art. 520º do C.P.P. radica, apenas, na atividade processual que a sua queixa infundada, gratuita, determinou, nada tendo a ver com o destino do processo que contra si corre, donde a sua eventual condenação em custas ao abrigo do art. 520º nunca ofenderá o princípio da presunção de inocência.
O processo resultante da queixa apresentada por B...findou sendo este, então, o momento para apreciar, à luz do art. 520º do C.P.P., o seu comportamento processual enquanto denunciante.
Tal como se refere no recurso, esta norma visa sancionar o desnecessário acionamento da máquina da justiça, cuja marcha apenas deve ser despoletada quando ocorra uma suspeita séria da prática de um crime. Quando se verifique que esta máquina foi posta a funcionar de forma leviana, ou seja, quando se indicie que a denúncia que deu causa ao processo narrou factos que o denunciante sabia não corresponderem à realidade das coisas ou que não tinha fundamento sério para os reputar como correspondentes à realidade, então há que decidir sobre a condenação, ou não, do denunciante nos termos do citado art. 520º do C.P.P.

Já a condenação em custas do denunciante B...como arguido, à luz do art. 513º do C.P.P., só poderá ocorrer no termo do processo em que ele responde, pois que a sua condenação anterior geraria, isso sim, uma clara violação do princípio da presunção de inocência.
*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na procedência do recurso, revoga-se o despacho recorrido e determina-se a sua substituição por outro que aprecie o comportamento do denunciante para os efeitos do art. 520º do C.P.P.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.


Coimbra, 2012-09-12