Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1535/99.1TACBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
Data do Acordão: 01/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 311º, 358º DO CPP
Sumário: 1.O juiz não pode, no início da audiência, alterar a qualificação jurídica dada na acusação aos factos imputados ao arguido. O juiz ao fazê-lo está a pronunciar-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que desta faz parte a qualificação jurídica. O juiz ao proferir o despacho recorrido exerceu um poder que ainda não está em posição de tomar.
Decisão Texto Integral: M não se conformando com o despacho proferido pela Mma Juiz que decidiu alterar a qualificação jurídica dos factos narrados na acusação, uma vez que entendeu que tal materialidade se subsume ao tipo do artº 277º nº 1 al b) e 285º, ambos do CPenal, vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:
1ª) A pretensa verificação da alteração não substancial de factos descritos na acusação, não decorreu no decurso da audiência, discussão e julgamento.
Com efeito
2ª) Antes e, tão só, decorre de uma leitura, análise e interpretação sobre enquadramento jurídico-penal da acusação deduzida e, impetrada em juízo.
3ª) O douto despacho proferido de admissão da acusação e, a designar data para a audiência, transitou em julgado.
4ª) Ao Juiz incumbe o julgamento da factualidade acusatória e, consoante a prova produzida, com respeito pelos direitos da defesa e da salvaguarda do principio de inocência do arguido.
5ª) O douto despacho recorrido insere uma alteração qualificativa, substantiva e, agravativa da incriminação imputada e; da qual, a arguida está incursa; constituindo um imput a traduzir uma submissão desta em julgamento, a uma figura criminal, punível com moldura penal abstracta muito mais grave.
6ª) Como repercussão directa na competência e constituição do próprio Tribunal.
7ª) A exigir, justamente, uma alteração do tipo legal de crime, tanto no elemento objectivo, como subjectivo; qualitativamente, específico.
8ª) O tipo legal de crime p.p. no art. 277°, n° 1, al. b) do CP; segue a estrutura comum dos crimes de perigo.
9ª) Este tipo legal de crime é doloso, quer em relação à conduta, quer quanto ao perigo.
10ª) No caso sub judice, a douta acusação não contêm todos os elementos do tipo legal de crime, indicada na nova qualificação jurídica, quer quanto ao dolo em qualquer das suas modalidades e/ou espécies.
11ª) Aliás e, antes bem pelo contrário, da douta acusação consta que, a arguida ao mandar sinalizar o "buraco", com cartão e palete, por forma a identificar o perigo; no intuito de evitar qualquer perigo ou risco de acidentes de trabalho; pretendeu, por isso, criar perigo e proteger o local de quedas pelo mesmo, de quaisquer pessoas; cumprindo as exigências legais de prevenção e protecção das elementares regras de segurança no trabalho.
12ª) Por erro de interpretação e/ou aplicação, não foram, nem se mostram, correctamente observados e/ou aplicados; os normativos atinentes e, concretamente, os dispositivos legais previstos nos arts. 358°, n° 1 do CPP; arts. 13°; 14°; 40°; n° 2; 277, nº 1, al. b) do CPP.
DEVE O RECURSO MERECER PROVIMENTO, REVOGANDO-SE O DOUTO DESPACHO RECORRIDO E, ORDENANDO-SE O PROVIMENTO DOS AUTOS, COM A QUALIFICAÇÃO DADA NA ACUSAÇÃO DEDUZIDA E, COM A INTERVENÇÃO DO TRIBUNAL SINGULAR.
JUSTIÇA

O Ministério Público não respondeu ao recurso.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual pugna pela procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

É este o despacho recorrido:
Deve desde logo dizer-se que o Tribunal não está vinculado à qualificação jurídica efectuada na acusação.
Na verdade o acórdão de 2/93 de 27/01 publicado no D R. 1ª serie A de 10/03, esclarece que não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, a convolação ainda que esta se traduza na submissão a uma figura criminal mais grave (sublinhe-se que a declaração de inconstitucionalidade de que este acórdão para fixação de jurisprudência foi alvo. só frisou o prejuízo eventualmente advindo para a defesa do facto de não haver preparação bastante para a nova qualificação. A tese sufragada pelo T.C conhece hoje inequívoca a refracção legai no regime do art° 358, n° 3 do CPP).
Ora, nos presentes autos, a arguida encontra-se acusada da prática do crime de homicídio por negligência p.p. no art° 137° nº 1 e 2 e p.p. Tal imputação resulta da subsunção dos comportamentos descritos na acusação ao aludido tipo de crime.
Todavia, examinada a factualidade descrita na mencionada peça acusatória, afigura-se que as condutas aí relatadas preencherão, ao invés, o tipo de crime p.p. no art° 277°, nº 1 al. b) do C.Penal - infracção das regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços; com efeito, o que é imputado à arguida é que esta sabia que tinha de sinalizar a existência de um buraco no local do trabalho e protegê-lo para evitar a queda de pessoas, o que não fez.
Ou seja. imputa-se à arguida a titulo de dolo a omissão de instalação de meios destinados a prevenir acidentes.
Ora, a aludida actividade típica é, nos termos do preceito normativo citado. punível com pena de prisão de 1 a 8 anos; acresce ainda que o art° 285° do mesmo diploma legal agrava tal moldura penal de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo. sempre que do aludido crime resultar, como resultou, a morte de uma pessoa.
Isto é, a moldura máxima aplicável à aludida conduta passará a ser de 10 anos e 8 meses.
Assim face ao exposto é notório que este Tribunal deixa de ter competência para julgar tais factos uma vez que este, de acordo com estatuído nas disposições conjugadas constantes da ai. a) e b) do art° 14° do CPP passam a ser da competência do Tribunal colectivo.
Como já se deixou dito, o Tribunal não está vinculado à qualificação jurídica efectuada na acusação, devendo no entanto, alertar a defesa para a nova qualificação nos termos do disposto no art° 358, n° 1 do CPP, por remissão expressa do nº 3 do mesmo preceito.
Assim, decide-se alterar a qualificação jurídica dos factos narrados na acusação. uma vez que se entende que tal materialidade se subsume ao tipo do art° 277° nº 1 al. b) e 285°, ambos do C.Penal.
Desde já se notifica a arguida da aludida alteração nos termos e para os efeitos do nº 1 do art° 358 do C. Penal.
Por outro lado declara-se a incompetência do Tribunal para proceder ao julgamento pelos factos assim qualificados, devendo o presente processo ser remetido ao Exmº Juiz de Circulo com vista à designação de data para julgamento.
De referir ainda que do exame dos autos se constata que foi admitido o pedido de Indemnização civil nos termos e contra quem foi efectuado, sendo certo que há pessoas aí demandadas que não foram notificadas do mesmo.
Assim, cumpra relativamente a elas o disposto no art° 78° do CPP.
Ao abrigo do disposto no art° 316 do CPP, admite-se o adicionamento ao rol das testemunhas apresentado a fls. 197.
Dada a palavra à Digna Magistrada do Mº Pº e ilustres mandatários, pelos mesmos foi dito nada terem a requerer.
Notifique.

Questão a decidir:
Se se encontram preenchidos todos os pressupostos para proceder a uma alteração substancial dos factos.

Nos presentes autos a Sra Juiz abriu a audiência e, de imediato proferiu o despacho recorrido. Não houve produção de qualquer tipo de prova.
Assim, o despacho recorrido não é mais que um complemento ou substituição do despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 311 do CPP.
A sra juiz entendendo que o Tribunal não está vinculado à qualificação jurídica efectuada na acusação e socorrendo-se do disposto no artº 358 do CPP altera a qualificação jurídica dos factos narrados na acusação e imputa à arguida a prática de um crime p. e p. pelo artº 277 nº 1 al b) e 285 do CPP. E, com base em tal alteração declara a incompetência do Tribunal para proceder ao julgamento pelos factos assim qualificados.
É verdade, que se ao arguido forem imputados factos cuja pena, abstractamente aplicável seja superior a cinco anos de prisão a competência para o julgamento caberá ao Tribunal colectivo.
A questão que se coloca é saber se aberta a audiência e sem qualquer produção de prova, o Tribunal pode qualificar juridicamente de modo diferente os factos constantes da acusação.
Dispõe o artº 358 nº 1 do CPP que “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia….”
E o nº 3 estipula que “o disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação”.
Basta ler o preceito para concluirmos que andou mal o Tribunal ao decidir como o fez – alterar a qualificação jurídica sem proceder ao julgamento, isto porque basta a leitura da norma para entendermos que a alteração tem, necessariamente que resultar da prova produzida e não de uma reapreciação dos indícios recolhidos na fase de inquérito. A Sra juiz teve uma fase para proceder a essa análise, não é na fase de julgamento e sem ter produzido qualquer prova que altera a qualificação jurídica dos factos. Daí o dizermos que o despacho em crise mais não é um complemento ou substituição do despacho proferido ao abrigo do disposto no art 311do CPP.
O nosso sistema penal consagra uma estrutura acusatória do processo, ou seja,” o juiz tem de ser imparcial relativamente às posições assumidas pela acusação e pela defesa e, por isso, não pode nunca assumir a veste de acusador, ainda que indirectamente, provocando a acusação pelo Mº Pº ou definindo-lhe os termos” (Germano M. Silva, Curso de Processo Penal,I, 58).
Refere ainda este autor e, também, o A. RC de 5/1/2000 na CJ, I, 42 que no processo penal com estrutura acusatória, como é o nosso, a acusação é que define o objecto do processo e este integra não só os factos mas também a pretensão que nela se formula. O juiz do futuro julgamento, com posição de independência em relação quer ao acusador quer ao acusado, não pode nem deve ultrapassar o objecto que lhe é submetido, sendo certo que este compreende a qualificação jurídica. Até porque um dos requisitos obrigatórios da acusação é a indicação das normas legais aplicáveis. São inseparáveis, na acusação, os factos e a incriminação (os factos e a pretensão). O objecto do processo contém uma dimensão qualitativa e uma dimensão quantitativa.
O juiz não pode, no início da audiência, alterar a qualificação jurídica dada na acusação aos factos imputados ao arguido. O juiz ao fazê-lo está a pronunciar-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que desta faz parte a qualificação jurídica. O juiz ao proferir o despacho recorrido exerceu um poder que ainda não está em posição de tomar. “Nesta fase processual o tribunal não é livre na subsunção até porque desconhece ainda se ela está efectivamente errada”.
O art. 358 do CPP e como já referimos, integra-se na fase do julgamento e será determinado pelo juiz do julgamento, quando já se encontra em “pleno exercício das suas funções de julgador e essa alteração resulta como consequência directa das suas funções. A sua situação de independente das partes, até então exigida, dá lugar à sua vinculação à verdade emergente do julgamento. E mesmo então, não é livre de julgar de acordo com o que resulta do julgamento já que deve observar o disposto no nº 1, do mesmo artigo. E isto sendo alteração não substancial, porque se o for, então outra solução não resta que dar cumprimento ao art.359, nº1” – Ac de 5-1-2000, citado.
E continuando a citar, “parece-nos, assim, claro que o juiz não pode, no despacho a que se refere o art. 311, sem mais, alterar a qualificação jurídica dos factos. Exige-o a estrutura acusatória do processo e a posição do juiz nesta fase processual. Nesta o juiz deve limitar-se a pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa (art. 311, nº 1) e não a pronunciar-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que desta faz parte a qualificação jurídica. Tomar posição sobre ela será tomar posição como defensor ou como acusador, uma vez que ainda não exerce funções de julgador nem pode antecipar-se a elas”.
Nos factos da acusação podendo até existir o elemento objectivo do crime de infracção das regras de construção falta de todo o elemento subjectivo.
Nesta fase desconhece-se se a qualificação jurídica dos factos efectuada na acusação está, ou não, errada.
Assim, o despacho recorrido é ilegal, pois que viola as disposições do processo penal, e como não é determinada a sua nulidade, sofre de irregularidade, a qual afecta a total validade do mesmo, importando a sua invalidade.


Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação e Secção Criminal em declarar inválido o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que designe dia para a audiência de julgamento.

Sem tributação.

Coimbra,

Alice Santos