Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2377/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
FUNDAÇÃO
Data do Acordão: 10/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 5.º, N.º 1 E 2; 6.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGO 158.º, N.º 2; 185.º, N.º 3 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Só o reconhecimento converte a massa de bens que serve de substrato material à fundação num centro autónomo de direitos e obrigações, elevando-a juridicamente à condição de pessoa colectiva.
2. Pode ter personalidade judiciária um património autónomo sem titularidade definida, semelhante à herança jacente, apesar de desprovido de personalidade jurídica.

3. Tem personalidade judiciária a massa de bens doados a uma fundação sem personalidade jurídica, por falta de reconhecimento.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A A..., com sede no Largo da Corredoura, Celorico da Beira, intentou acção declarativa sumária contra a B..., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 13 500, de rendas vencidas e vincendas, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.
Alegou, em síntese, ter dado de arrendamento à ré, pelo prazo de três anos e mediante a renda mensal de 100 000$00, um imóvel sua propriedade e, desde Dezembro de 2001, data em que abandonou o arrendado, a ré não ter pago as rendas.
A ré contestou, excepcionando a nulidade do contrato, em virtude locado não possuir licença camarária, e impugnando a duração do contrato, que afirma ter sido celebrado pelo prazo de um ano apenas; ter, em 06-01-03, denunciado o contrato, com efeitos a partir de 2-04-03; e ter pago as rendas até Março de 2003, muito embora a autora não lhe tenha entregue os respectivos recibos.
Conclui pela declaração da nulidade do contrato ou pela improcedência da acção, com a consequente absolvição da ré do pedido.
A fls 159 a autora veio reduzir o pedido para a quantia de € 6 000, considerando ser somente este o montante das rendas em dívida pela ré.
Foi proferido despacho saneador, no qual, tabelarmente, se afirmou a validade e regularidade da instância, dispensando-se a fixação da base instrutória face à simplicidade da matéria controvertida.
Prosseguindo o processo seus ulteriores termos, foi proferida sentença em que, tendo-se conhecido oficiosamente do pressuposto processual da personalidade judiciária, se concluiu pela ausência da personalidade judiciária da autora, dado não ter obtido reconhecimento pela entidade competente, e se absolveu a ré da instância.
Inconformada, a autora interpôs o presente agravo, em cuja alegação, reconhecendo embora não ter ainda sido reconhecida, mas ter já requerido tal reconhecimento, conclui afirmando ser proprietária de bens imóveis já registados em seu nome e ter, de acordo com o art.º 6º do C. P. Civil, personalidade judiciária.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir
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Os Factos
Aos factos julgados provados pelo tribunal a quo e que aqui se dão por reproduzidos, decide esta Relação aditar, ao abrigo do disposto no art.º 712º n.º1 al. b) do C. P. Civil, a seguinte factualidade provada documentalmente, através dos docs. de fls 150 e segs, 194 e segs, 236 e 237 dos autos:
- A fundação ora autora foi constituída por escritura pública de 06-10-99 lavrada no Cartório Notarial de Celorico da Beira, tendo como fundadores a B... e a Associação Para o Desenvolvimento do Concelho de Celorico da Beira;
- A fundação possui cartão provisório de identificação de pessoa colectiva;
- Por requerimento, entrado, em 28 de Junho de 2000, na Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna, foi pedido o reconhecimento da fundação ora autora, encontrando-se o pedido em fase final da análise.
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O Direito
Como é sabido são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso (art.ºs 684 n.º 3 e 690º n.º 1 do C.P.Civil), não podendo o Tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.
A única questão a decidir, de acordo com as conclusões da alegação da agravante, consiste em saber se esta possui ou não personalidade judiciária.
Estatui o n.º 1 do art.º 5º do C. P. Civil que “a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte”. Acrescentando no n.º 2 do mesmo preceito que “quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária”.
Por a sua vez, o n.º 2 do art.º 158º do C. Civil afirma que “as fundações adquirem personalidade pelo reconhecimento, o qual é individual e da competência da autoridade administrativa”.
Só o reconhecimento, portanto – como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in C. Civil Anotado, vol. I, pag 163, 4ª ed. revista e actualizada – converte a massa de bens que serve de substratum material à fundação num centro autónomo de direitos e obrigações, elevando-a juridicamente à condição de pessoa colectiva.
Ora, é indesmentível que a ora agravante não obteve ainda reconhecimento.
Daí que a sentença recorrida tenha concluído pela falta de personalidade jurídica da autora e, consequentemente, pela ausência de personalidade judiciária.
Pensamos, porém, que a questão não pode ser encarada de forma tão linear. É que o C. P. Civil logo no seu art.º 6º estabelece um conjunto de excepções ao princípio da coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, estendendo a personalidade judiciária a uma série de entidades destituídas de personalidade jurídica. Concretamente a al. a) do citado preceito, quando reconhece personalidade judiciária à “herança jacente” e aos “patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado”.
No caso sub judice tudo está, assim, em saber se entre o momento da instituição de uma fundação e o momento do seu reconhecimento pela autoridade administrativa competente, a universalidade de bens afectados à sua constituição e que funcionariam como substracto da pessoa colectiva, pode ser tido, para efeitos processuais, como um património autónomo de titularidade incerta.
Adiantamos já que, em nosso entender, a resposta a tal questão deve ser afirmativa.
Com efeito, sob a designação de patrimónios autónomos consideram-se, do ponto de vista processual – como diz Luso Soares, in Direito Processual Civil, ed. da Almedina, pag. 155 – todas as situações em que existe uma massa patrimonial que carece de titular definido e que, no entanto, necessita de um regime jurídico adequado a uma representação que lhe permita actuar validamente e com eficácia.
É o que ocorre no caso em análise. Também aqui se assiste a uma massa de bens destacada e autonomizada do restante património dos fundadores e por estes afectada à realização de um escopo fundacional. Uma dotação de bens que, tendo origem num acto entre vivos, se torna, por isso, irrevogável a partir do momento em que o reconhecimento é requerido ( vide art.º 185º n.º 3 do C. Civil ) e que fica, dessa forma, entre o momento da eficácia do acto de instituição e o momento do reconhecimento da fundação, à semelhança da herança jacente, sem titular activo ( ou, como outros preferem, verificar-se-á um estado de vinculação desses bens, em vista do surgimento futuro de uma pessoa com um direito sobre eles – vide Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 4ª reimpressão, pags 154 e segs).
Portanto, uma massa de bens unificada com um titular ainda incerto, que poderá vir a ser: a própria fundação, caso ocorra o seu reconhecimento; os instituidores, aos quais reverterão os bens, se negado o reconhecimento quer por insuficiência do património ( art.º 188º n.º 3 do C. Civil) quer por ausência de interesse social do fim estabelecido, como alguns doutrinadores defendem; outra fundação, mesmo sem fim análogo, a designar pela autoridade administrativa encarregada do reconhecimento, se este for negado por ausência de interesse social ( vide Castro Mendes, in Teoria Geral, 1978, I - 668).
Do ponto de vista processual, estamos assim em face de um património autónomo sem titular definido, semelhantemente à herança jacente, o qual, embora desprovido de personalidade jurídica, tem personalidade judiciária.
Daí que – contrariamente ao decido pelo tribunal a quo – a massa de bens com que os instituidores dotaram a fundação ora autora possa ser parte na acção.
Haverá, assim, que conceder-se provimento ao agravo e revogar a decisão recorrida.

Decisão
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao agravo e revogar a decisão recorrida, que deverá ser subsistida por outra onde, a não se verificar a ocorrência de outra qualquer excepção que a tal obste, se conheça do mérito da causa.
Sem custas por delas estar isenta a agravada.

Coimbra,