Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29/1997.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: ACÇÃO DE DESPEJO
PROPRIETÁRIO
SENHORIO
RESIDÊNCIA PERMANENTE
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS - 2º J.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1057º, 1072º, 1083º Nº2, 1093º Nº1, 1098º, 1102º DO CC, 26º NºS 1 E 2 E 59º Nº1 DA LEI 6/06, DE 27/2, 6º DO DL 321-/90, DE 15/10
Sumário: I. Transmitida a propriedade do locado, operou-se a correspondente translação da posição jurídica do locador, por efeito imperativo da lei, impondo-se a subentrada do adquirente na posição do locador, por força do direito de sequela, em consequência do princípio do «emptio non tollit locatum».

II. Com a citação do réu, independentemente das vicissitudes que possam vir a acontecer na titularidade do locado, sendo este propriedade dos autores, fixaram-se os elementos essenciais da causa, designadamente, no que se refere aos sujeitos, com as ressalvas previstas na lei, por força do princípio da estabilidade da instância, com a inerente limitação do objecto da acção e, consequentemente, do recurso.

III. Não sendo a acção de despejo uma acção real, porquanto através dela o autor não se propõe fazer valer o direito de propriedade sobre o prédio em cuja entrega está empenhado, mas antes uma acção de natureza pessoal, emergente de um contrato de arrendamento, não carece o senhorio de juntar documento que comprove a propriedade do prédio despejando.

IV. Se os réus emigraram para a Alemanha, para conseguir melhores proventos do trabalho, onde vivem, há cerca de 30 anos, deslocando-se a Portugal, para passar as férias de Verão, e, por vezes, pelo Natal, deixaram de ter residência permanente no locado, de fazer uso do mesmo, não beneficiando da excepção que consagra a inaplicabilidade dessa causa de resolução, em virtude de o arrendatário se haver ausentado, por tempo superior a dois anos, em cumprimento de deveres profissionais por conta de outrem.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A... e mulher, B..., casados, comerciantes, residentes em Serra de Santo António, Alcanena, propuseram a presente acção declarativa condenatória, de despejo, com processo comum, na forma sumária, contra C... e mulher, D..., casados, residentes na X..., pedindo que, na sua procedência, se declare a resolução do contrato de arrendamento celebrado com estes, com fundamento na falta de residência permanente, com a consequente condenação dos mesmos a despejar e a entregar o arrendado, alegando, para tanto, e, em síntese, que são proprietários do prédio urbano, sito na Avenida X..., destinando-se a fracção arrendada à habitação dos réus, os quais, há já vários anos, que não residem no locado, encontrando-se emigrados, em Hamburgo, na Alemanha.

Na contestação, os réus invocam a excepção de caducidade do direito à propositura da acção e a impossibilidade de os autores alegarem a existência de arrendamento, e, em impugnação, que emigraram em procura de trabalho, mas que vêm ao locado, durante as férias e Natal, onde mantêm a luz e a água ligadas e recebem correspondência.

Na resposta à contestação, os autores sustentam que as excepções invocadas devem improceder, concluindo como na petição inicial.

Os autores interpuseram recurso de agravo do despacho que, na sequência de articulado superveniente apresentado pelos réus, aditou à matéria assente alguma factualidade, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª - O despacho saneador que aditou matéria assente na sequência de um articulado superveniente deduzido pelos réus, fez "tábua rasa" do alegado pelos autores na resposta aquele articulado.

2ª - Os réus no articulado superveniente põem em causa o direito de propriedade da autora mulher apesar de se encontrar junta aos autos a fotocópia autenticada da escritura pública de compra e venda efectuada por E... e do testamento desta a favor da autora mulher, em que aquela lhe lega todos os prédios urbanos sitos no concelho de Torres Novas, como é o caso do imóvel arrendado.

3ª - Sendo aquele legado um legado de coisa certa e determinada, a aceitação pela legatária importa a transmissão da propriedade.

4ª – Os autores na sua resposta invocam actos que se não são declarações expressas de aceitação do legado por parte da legatária terão, pelo menos, que considerar-se condutas de que se pode inferir inequivocamente a aceitação, como seja, a entrada na posse do imóvel, o recebimento e embolso das rendas, a emissão dos respectivos recibos, o pagamento de todas as contribuições relativas ao prédio, e o pagamento do imposto sucessório sobre o imóvel arrendado aos réus.

5ª - Acresce que decorridos mais de 10 anos sobre aquela aceitação, procedeu-se à relacionação e inventário por morte de E....

6ª - O facto da requerente poder vir a abrir mão deste bem a favor de outro interessado não importa revogação daquela aceitação, não só porque ainda não existe sentença homologatória de partilha, como também porque a mesma é irrevogável nos termos da legislação civil.

7ª - A aceitação do legado produz todos os seus efeitos atribuindo ao aceitante legatário um direito de propriedade pleno e absoluto quanto ao objecto do legado certo e determinado.

8ª - Direito este também irredutível, se não for inoficioso, como é o caso dos autos e os autores recorrentes alegaram este facto na resposta ao articulado superveniente.

9ª - Devem assim os factos alegados em 2o, 3o, 4o, 5o, 6o, 7o, 8o e 25°, da resposta dos autores, ser aditados ou na matéria assente ou pelo menos na base instrutória. Violados foram, entre outros, os artigos 2050º, nºs 1 e 2, 2031º, 2119º, 2249º, 2279º, 2061º e 2066º do Código Civil e artigos 265º, 266º, 511º e 519° do CPC.

10ª - Deve, assim, determinar-se que se proceda ao aditamento dos factos acima descritos e alegados pelos autores no despacho saneador.

Nas suas contra-alegações, os réus defendem o não provimento do agravo, porquanto o despacho recorrido é perfeito.

A sentença julgou as excepções improcedentes e a acção procedente, porque provada, e, em consequência, declarou resolvido o contrato de arrendamento vigente entre os autores e os réus, condenando estes a entregarem o locado, supraidentificado, aos autores, livre de pessoas e coisas, absolvendo-os, porém, do pedido de condenação como litigantes de má-fé.

Desta sentença, os réus interpuseram recurso de apelação, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:

1a - Tendo os autores intentado a presente acção aludindo a existência do contrato de arrendamento verbal e a sua qualidade de proprietários, mas sem terem invocado quem contratou enquanto senhorio e vindo a constar como facto assente que os réus tomaram de arrendamento o andar locado a outrem que não aos autores, impõe-se a estes provar a sua qualidade de proprietários, por os réus terem impugnado essa invocada qualidade (art° 342° do CC).

2ª – Limitando-se os autores, na p.i., no que concerne à sua alegada qualidade de proprietários do locado, a mencionar que são proprietários do prédio urbano sito na Ava S. José, Rua A., Torres Novas, inscrito na matriz sob o art°1458 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas sob o n°60704, composto por dois pisos dos quais o 1o andar é o objecto da acção, só juntando a competente certidão da Conservatória do Registo Predial com a inscrição a seu favor do mencionado prédio - o que não fizeram - podiam lograr fazer prova da alegada qualidade de proprietários.

3ª – Os autores embora tenham junto certidão da descrição e das inscrições em vigor de fls. 51 a 55, certidão da escritura de compra e venda de fls. 45 a 48, certidão do testamento de fls. 42 a 44, não fizeram prova de que o andar locado é sua pertença, pois mesmo que se admitisse que F... e mulher eram donos do prédio que declararam vender a G..., então casado com E... e este declarou comparar-lhe, e que este, assim, o adquiriu na mencionada escritura de compra e venda, já se não provou que por óbito do referido G..., o prédio integrasse o seu acervo hereditário e muito menos que passou por algum momento a integrar o património de E... (que nem se sabe se ficou viúva dele).

4ª - E não se provando que o prédio locado era pertença de E... ao falecer, é evidente que não se provou que ele integrasse o legado feito à autora.

5ª - E mesmo que o prédio que integra o andar locado aos réus fosse coisa legada à autora - que não é - a autora, enquanto legatária estava impedida de intentar a acção de despejo, invocando a falsa qualidade de proprietária porque o legado não é de coisa certa e determinada, sendo que corre termos processo de inventário onde o prédio em questão está a ser partilhado e até foi adjudicado a outrem que não aos autores.

6ª - Assim, não fizeram os autores prova de serem proprietários do andar locado aos réus.

7ª - Os factos provados na acção e acima elencados devem fazer concluir que o réu sempre teve residência permanente no locado.

Nas suas contra-alegações, os autores defendem que a sentença deve ser mantida, porque primou pela correcta apreciação dos factos e aplicação do direito.

Na sentença recorrida, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, aditando-se, porém, outra factualidade, sob os nºs 23 e 24:

Na declaração de prédios arrendados, modelo 130, com referência ao artigo urbano n°1458, da freguesia de S. Pedro, consta o nome do réu marido como arrendatário do primeiro andar esquerdo e como data do arrendamento 1 de Março de 1969 – A) – (1).

O artigo urbano n°1458 corresponde ao 1o andar esquerdo do prédio, sito na Rua X... Torres Novas – 15º - (2).

Os réus tomaram de arrendamento, para habitação, ao Sr. F..., o 1o andar esquerdo do prédio, sito na Rua X..., Torres Novas – B) – (3).

Actualmente, a renda mensal ascende a 1.618$00 – C) – (4).

Os réus emigraram para Hamburgo, na Alemanha, onde ainda se encontram – D) – (5).

O réu marido residiu em Hamburgo – 4º - (6).

O réu marido emigrou para conseguir melhores proventos do trabalho – 10º – (7).

Deslocam-se a Portugal, durante as férias, em regra, nos meses de Julho ou Agosto – E) – (8).

Por vezes, deslocam-se ao locado pelo Natal – 9º - (9).

Durante estes períodos, pernoitam, confeccionam e tomam refeições e convivem com familiares e amigos, no referido andar – F) – (10).

Os réus mantêm, no andar mencionado, a água e luz ligadas – 5º - (11).

A filha dos réus vai, por vezes, arejar o andar – 12º – (12).

Alguma correspondência é-lhes dirigida para esse local – 6º - (13).

A ré Joaquina Fernandes está recenseada pela freguesia de S. Pedro, Torres Novas – 7º - (14).

Os réus não têm, há cerca de 30 anos, qualquer outro local de residência em Portugal, quando aqui se encontram, que não seja naquele andar – 8º - (15).

Há mais de 5 anos que os autores têm conhecimento que os réus estão emigrados – 14º - (16).

Por testamento público, lavrado em 12 de Junho de 1991, E... declarou legar a B..., todos os seus prédios, sitos nos concelhos de Loures, Alcanena, Torres Novas, e os rústicos do concelho da Batalha (certidão da escritura constante de fls. 42) – (17).

Por escritura pública, outorgada em 14.05.1977, F... e mulher declararam vender a G... e mulher, E..., que declarou comprar, o prédio urbano composto por dois pisos, para quatro fogos, no qual se inclui o 1o andar esquerdo, com quatro assoalhadas, cozinha e casa de banho, situado na Av. de São José, Rua A, em Torres Novas (certidão da escritura constante de fls. 45 dos autos) - (18).

No Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena, corre termos inventário com o n°6/93, em que é inventariada, entre outros, E... – G) - (19).

Em tal inventário, foi relacionado como verba n°81, o prédio urbano inscrito na matriz, sob o art. 1458, sito na Avª São José ou Rua A, de dois pisos, para quatro fogos, com a superfície de 36 m2, com r/c esquerdo de 4 assoalhadas, cozinha, casa de banho, 1° andar direito com 4 assoalhadas, cozinha, casa de banho e logradouro de 160 m2 – H) – (20).

Na conferência de interessados do mencionado inventário, ocorrida a 24 de Maio de 1999, foi, por acordo, adjudicado ao interessado H... e mulher o prédio relacionado sob a verba n°81, com a rectificação no sentido de conter a fracção 1° esquerdo, situando-se na freguesia de São Pedro – I) – (21).

No referido processo, à data de 13.01.2003, encontrava-se designada, para o dia 07.02.2003, a realização de uma conferência de interessados (certidão judicial constante de fls. 220) – (22).

A presente acção deu entrada em juízo, no dia 23 de Janeiro de 1997, tendo os réus sido citados para os seus termos, em 17 de Julho de 1997 – Documento de folhas 1 e de folhas 25 e verso, respectivamente – (23).

E... faleceu, no dia 16 de Junho de 1991 – Documento de folhas 98 – (24).

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, no agravo e na apelação, em função das quais se fixa o objecto dos recursos, considerando que o «thema decidendum» dos mesmos é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão da prova pelos autores da qualidade de proprietários do locado.

II – A questão da residência permanente.

III - A questão da admissibilidade do aditamento à matéria assente dos factos constantes do articulado superveniente.

I

DA QUALIDADE DE PROPRIETÁRIOS DOS AUTORES

Entendem os réus que os autores não fizeram prova da qualidade de proprietários do andar locado, devendo, consequentemente, a acção improceder.

Efectuando uma síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, neste particular, importa reter que, por escritura pública, outorgada em 14 de Maio de 1977, F... e mulher declararam vender a G... e mulher, E..., que, por sua vez, declararam comprar, o prédio urbano, onde se inclui o locado, que esta última, através de testamento público, lavrado em 12 de Junho de 1991, declarou legar à autora mulher.

Efectivamente, com data de 1 de Março de 1969, os réus tomaram de arrendamento, para habitação, a F..., então seu dono, o aludido 1o andar esquerdo do prédio em causa.

Entretanto, corre termos um processo de inventário, em que é inventariada, entre outros, E..., falecida no dia 16 de Junho de 1991, no qual foi relacionado o prédio urbano, onde se situa o locado, tendo o mesmo sido adjudicado, por acordo, ao interessado H... e mulher, numa conferência de interessados, ocorrida a 24 de Maio de 1999, cuja repetição ficou designada para o dia 7 de Fevereiro de 2003.

À data da propositura da presente acção, que aconteceu a 23 de Janeiro de 1997, e, na posterior citação dos réus, a fracção arrendada, que integrava o prédio urbano em apreço, encontrava-se na esfera jurídica da titularidade da autora mulher, por o ter recebido, em legado testamentário, não se demonstrando nos autos que, nessa altura, e, nem sequer no presente, o mesmo tenha deixado de fazer de parte do património dos autores.

Dispõe o artigo 1057º, do Código Civil (CC), que “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”.

Transmitida a propriedade da fracção predial em causa, por F..., que celebrou o contrato de arrendamento com os réus, para E..., e desta para a autora mulher, operou-se a correspondente translação da posição jurídica do locador, por efeito imperativo da lei, sem necessidade de alienante e adquirente a clausularem, nem possibilidade de a excluírem, impondo-se, «volens nolens», a subentrada do adquirente na posição do locador, sem a vontade ou mesmo contra a vontade deste, por força do direito de sequela, em consequência do princípio do «emptio non tollit locatum»1.

Trata-se de uma situação de sub-rogação legal no contrato, em que os autores sucederam, «ex lege», na posição do inicial senhorio, continuando a relação contratual locatícia entre o adquirente e o subsistente locatário2.

Por outro lado, independentemente de todas as vicissitudes que possam vir a acontecer na titularidade da fracção predial locada, considerando que a mesma era propriedade dos autores, à data da citação dos réus para os termos da presente acção, fixaram-se com este acto os elementos essenciais da causa, designadamente, no que se refere aos sujeitos, por força do princípio da estabilidade da instância, consagrado pelos artigos 268º e 481º, b), do CPC, que se mantém inalterável, com as ressalvas previstas na lei, que constituem as denominadas modificações da instância, mas que nenhuma das partes entendeu desencadear.

Como assim, são os sujeitos, o pedido e a causa de pedir, constantes do articulado inicial, que constituem o objecto da acção e, consequentemente, da presente apelação.

Porém, mesmo que assim não fosse, o que apenas se admite como argumento de raciocínio académico, tratando-se de uma acção de resolução do contrato de arrendamento, com fundamento na falta de residência permanente dos réus, a que aludem os artigos 1093º, nº 1, i), do CC, na sua versão inicial, e 1083º, nº 2, d), do CC, na versão resultante da Lei nº 6/06, de 27 de Fevereiro, atento o preceituado pelos artigos 26º, nºs 1 e 2, e 59º, nº 1, desta mesma lei, e 6º, do DL nº 321-B/90, de 15 de Outubro, a mesma podia ser proposta pelo “senhorio”, que não, necessariamente, o proprietário do prédio, até pela diferente redacção do corpo do nº 1, do artigo 1093º, e do corpo do nº 2, do artigo 1083º, referidos, que dispõem que “o senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:” ou “é fundamento de resolução…pelo senhorio”, em contraponto com o preceituado pelos artigos 1098º, nº 1, a), da versão inicial do CC, e 1102º, nº 1, a), do CC, na versão resultante da Lei nº 6/06, de 27 de Fevereiro, considerada, a propósito do direito de denúncia para habitação do senhorio, ao estipularem que este depende, entre outros, do requisito de “ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio…”.

Com efeito, a acção de despejo não é uma acção real, porquanto através dela o autor não se propõe fazer valer o direito de propriedade sobre o prédio em cuja entrega está empenhado, mas antes uma acção de natureza pessoal, emergente de um contrato de arrendamento.

Por isso, quer o proprietário, quer o usufrutuário, desde que intervenientes no contrato de locação, podem propor a correspondente acção de despejo, na qualidade de senhorios3.

Assim sendo, o senhorio não carece de juntar documento que comprove a propriedade do prédio despejando4, nem do respectivo registo predial, mesmo nas comarcas onde este é obrigatório5, sendo certo que, hoje, na sequência da nova redacção introduzida ao artigo 280º, do CPC, nem sequer a falta de exibição da caderneta predial donde conste a inscrição do prédio na matriz é condição impeditiva do recebimento ou do prosseguimento das respectivas acções.

A isto acresce que, por força do legado do prédio, onde se situa o locado, de que a autora B... beneficiou, em sede de testamento outorgado por E..., falecida no dia 16 de Junho de 1991, aquela veio a entrar no domínio e na posse do bem, quatro dias depois do momento da abertura da sucessão, em consequência da retroacção da aceitação que, de forma tácita, se pode concluir, sem esforço, através da propositura desta acção, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1317º, b), 2050º, nºs 1 e 2, 2056º, 2057º e 2249º, todos do CC.

Finalmente, quaisquer que venham a ser as vicissitudes do processo de inventário ou que já tenham sido os seus desenvolvimentos, ainda que o legado testamentário se viesse a revelar inoficioso, como parecem querer insinuar os réus, os mecanismos processuais tendentes à redução das liberalidades inoficiosas, que decorrem do estipulado pelos artigos 1366º a 1368º, 1374º, a) e 1376º, do CPC, permitiriam um correcto preenchimento da legítima, mesmo que, por força da sua redução, a autora mulher viesse a ter de abrir mão da fracção predial em apreço.

II

DA RESIDÊNCIA PERMANENTE

Sustentam ainda os réus que os factos provados devem fazer concluir que sempre tiveram residência permanente no locado.

A este propósito, demonstrou-se que, tendo os réus tomado de arrendamento a fracção predial, para sua habitação, em 1 de Março de 1969, emigraram para a Alemanha, para conseguir melhores proventos do trabalho, onde ainda vivem, residindo o réu marido, em Hamburgo, não tendo, há cerca de 30 anos, qualquer outro local de residência em Portugal, quando aqui se encontram, que não seja a aludida fracção.

Com efeito, os réus deslocam-se a Portugal, durante as férias, em regra, nos meses de Julho ou Agosto, e, por vezes, pelo Natal, períodos durante os quais pernoitam, confeccionam, tomam refeições e convivem com familiares e amigos, no referido andar, onde mantêm a água e a luz ligadas.

A filha dos réus vai, por vezes, arejar o andar, nele recebendo alguma correspondência, encontrando-se a ré mulher recenseada, na freguesia de S. Pedro, em Torres Novas, onde se localiza o arrendado.

Nos termos do disposto pelo artigo 1093º, nº 1, i), do CC, na sua versão originária, ”o senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário…sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia”, e do artigo 1083º, nº 2, d), do CC, na versão resultante da Lei nº 6/06, de 27 de Fevereiro, “é fundamento de resolução...pelo senhorio…o não uso do locado por mais de um ano,…”.

Adquirindo o arrendatário de prédio urbano destinado a habitação, com a celebração do contrato, um direito pessoal de gozo sobre o mesmo, a falta de residência permanente não afecta, propriamente, a validade ou a eficácia inicial do contrato, mas antes destrói, substancialmente, o pressuposto objectivo da renovação legal do mesmo6.

Efectivamente, a residência permanente é a casa onde a pessoa mora, onde, habitualmente, reside, onde o arrendatário se fixou e tem instalada e organizada a sua economia doméstica, a sede-local de todas as relações de conveniência familiar e social, de natureza normal e constante, ou seja, onde se localizam as actividades correspondentes às necessidades primárias da existência, como sejam a manutenção física e psíquica, a tomada de refeições e o descanso.

Ao contrário da residência acidental, aquela apresenta como características fundamentais a estabilidade, a continuidade, a fixidez, a habitualidade e o carácter duradouro7.

Os réus emigraram para a Alemanha, para conseguir melhores proventos do trabalho, onde residem, há cerca de 30 anos, deslocando-se a Portugal, para passar as férias de Verão, e, por vezes, pelo Natal.

Assim sendo, os réus deixaram de ter residência no locado, há cerca de trinta anos, transferindo a sua residência permanente para Hamburgo, apesar dos períodos de férias que passam em Portugal, não beneficiando, portanto, da excepção contemplada pelo 1093º, nº 2, b), do CC, na sua versão originária, e pelo artigo 1072º, nº 2, b), do CC, na versão resultante da Lei nº 6/06, de 27 de Fevereiro, que consagram a inaplicabilidade da causa de resolução da acção, “se o arrendatário se ausentar por tempo não superior a dois anos, em cumprimento…de serviço particular por conta de outrem,…”, ou “se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres…profissionais do próprio, do cônjuge…”8.

Pelo exposto, os factos que ficaram provados consubstanciam, inteiramente, o fundamento da falta de residência permanente ou do não uso do locado, por mais de um ano, que determina a resolução do contrato de arrendamento celebrado.

Como assim, não colhem, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações dos réus, razão pela qual e, correspondentemente, se não conhece do objecto do agravo, que, a partir daqui, independentemente da solução final do mesmo, deixou de ter interesse para as pretensões dos autores, com base no disposto pelo artigo 710º, nº 2, do CPC.

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CONCLUSÕES:

I - Transmitida a propriedade do locado, operou-se a correspondente translação da posição jurídica do locador, por efeito imperativo da lei, impondo-se a subentrada do adquirente na posição do locador, por força do direito de sequela, em consequência do princípio do «emptio non tollit locatum».

II – Com a citação do réu, independentemente das vicissitudes que possam vi a acontecer na titularidade do locado, sendo este propriedade dos autores, fixaram-se os elementos essenciais da causa, designadamente, no que se refere aos sujeitos, com as ressalvas previstas na lei, por força do princípio da estabilidade da instância, com a inerente limitação do objecto da acção e, consequentemente, do recurso.

III – Não sendo a acção de despejo uma acção real, porquanto através dela o autor não se propõe fazer valer o direito de propriedade sobre o prédio em cuja entrega está empenhado, mas antes uma acção de natureza pessoal, emergente de um contrato de arrendamento, não carece o senhorio de juntar documento que comprove a propriedade do prédio despejando.

IV - Se os réus emigraram para a Alemanha, para conseguir melhores proventos do trabalho, onde vivem, há cerca de 30 anos, deslocando-se a Portugal, para passar as férias de Verão, e, por vezes, pelo Natal, deixaram de ter residência permanente no locado, de fazer uso do mesmo, não beneficiando da excepção que consagra a inaplicabilidade dessa causa de resolução, em virtude de o arrendatário se haver ausentado, por tempo superior a dois anos, em cumprimento de deveres profissionais por conta de outrem.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta sentença recorrida.

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Custas, a cargo dos réus.

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Notifique.