Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
473/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
POSSE
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 04/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEVER DO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1353º, 1316º, 298º, N.º 3 E 1287º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL E ART. 7º DO CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL
Sumário: 1. A acção de demarcação visa fazer funcionar o direito previsto no art. 1353º do CC, mas não tendo por objecto o reconhecimento do direito de propriedade, embora o pressuponha.
2. A presunção juris tantum prevista no art. 7º do Código de Registo Predial não abrange os elementos de descrição do prédio.

3. A usucapião pode ser invocada quer por acção, quer por excepção, devendo, em qualquer caso, ser levados à base instrutória os factos controvertidos.

4. O direito de propriedade é, em princípio, imprescritível, gozando o proprietário do poder de inactividade sobre a coisa, mas a posse boa para a usucapião exercida por outrem sobre coisa alheia pode conduzir à aquisição originária do direito de propriedade, com a consequente perda do direito do anterior proprietário.

5. A usucapião terá sempre de ser invocada, uma vez que não opera automaticamente.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I)– RELATÓRIO

A... intentou, no Tribunal de Sever do Vouga, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B... e esposa C... pedindo que os RR. sejam condenados a reconhecer que a Autora é dona e legítima proprietária do prédio identificado no art. 1º da petição, com os limites e estremas referidas nos arts. 1º e 20º, ou subsidiariamente, caso não se provem esses limites e extremas, sejam os RR. condenados a concorrer com a Autora para a delimitação entre o prédio da Autora e o prédio dos RR. identificados no art. 13º da petição.

Como causa de pedir, a Autora alegou o seguinte:
-É dona e legítima proprietária de um prédio rústico que confina pelo lado poente com um prédio rústico pertencente aos RR.;
-Quer um quer outro prédio estão inscritos no registo predial, respectivamente, a favor da Autora e RR.;
-Desde há mais de 30 anos que a Autora anda na posse pública, pacífica e exclusiva do prédio que lhe pertence, extraindo utilidades agrícolas;
-Desde há algum tempo os RR. passaram a ocupar abusivamente parte significativa do prédio pertencente à Autora, nomeadamente a parte que está a mato e pinhal, estando os prédios perfeitamente demarcados e separados por muro feito pelos RR. no limite nascente do prédio que lhes pertence;
-Deverá a demarcação ser feita por esse local.

Regularmente citados os Réus contestaram aceitando que a Autora é dona do prédio que identifica, com excepção da área indicada (1.830 m2)) e da apontada confinância a poente com o prédio dos RR ou mesmo de qualquer outro lado, pelo que não há lugar a qualquer demarcação. E tal acontece porque os RR., no ano de 1973, adquiriram uma parte do identificado prédio da Autora, a mato e pinhal, com a área de 930 m2, o denominado “Cabeço do Codorno”, e desde há mais de 30 anos que andam na posse pacífica, pública e continuada desse terreno, retirando as respectivas utilidades, estando o mesmo demarcado do prédio da Autora. A inexistir outro título, sempre adquiriram tal terreno por usucapião que expressamente invocam. Concluíram pela total improcedência da acção.

A Autora respondeu, mantendo a posição assumida na petição e impugnando a invocada usucapião.

Prosseguindo os autos os seus regulares termos, foi, por fim, proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, sendo os RR. condenados a reconhecer a Autora como dona e proprietário do prédio que alegou apenas no que respeita à parte culta com a área de 1,020 m2, com os limites e estremas que resultam da sua implantação e posicionamento, como emerge do levantamento topográfico junto a fls. 335. Foram os RR. absolvidos do mais peticionado.

Inconformada com tal decisão, apelou a Autora pugnando pela revogação da sentença e total procedência da acção.

Os AA. não contra -alegaram.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II)- OS FACTOS

Na sentença impugnada foi dada por assente a seguinte factualidade:
1-A Autora é legítima proprietária do prédio rústico, a cultura e pinhal, sito na Lavoura, a confrontar (segundo a matriz) do norte com Tádio Duarte Silva, do sul com Flávio Augusto, do nascente com Manuel Tavares da Silva Júnior e do poente com caminho, inscrito na matriz da freguesia de Talhadas sob o art. 4.551, onde consta a área de 0,1830Ha e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga sob o n.º 00445/901109 e aí inscrito a favor da Autora pela cota G-3, Ap. N.º 990503;
2-Tal prédio adveio à titularidade da Autora por doação dos anteriores proprietários, Flávio Augusto e mulher Perfeição da Silva Tavares, através de escritura lavrada no Cartório Notarial de Sever do Vouga, no dia 22.04.1999;
3-Os RR. são possuidores de um prédio de cultura, sito na Lavoura, com a área de 400 m2, a confrontar (segundo a matriz) do norte com Manuel Tavares da Silva Júnior, do sul com Manuel Araújo, do nascente com Lino Rodrigues Ferreira e do poente com caminho, inscrito na matriz predial da freguesia de Talhadas sob o art. 4.554 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga sob o n.º 01340/9606122 e aí inscrito a seu favor pela cota G-1, Ap. N.º 01/960122;
4-O prédio referido em 1 tem, pelo menos, a área de 1.830 m2;
5- E confronta a nascente com Manuel Tavares da Silva Júnior;
6-A Autora, por si e antecessores, vem semeando, plantando, tratando e colhendo milho, ervas e pastos, videiras, oliveiras, produtos hortícolas quanto à parte culta no prédio aludido em 1;
7-Foram feitas moreias de palha na parte a terreno inculto;
8- À vista de toda a agente e sem oposição de quem quer que seja;
9-De forma exclusiva, por si ou através de pessoas a quem pede para o efeito;
10-Há mais de 20, 30 e mais anos;
11-Na convicção de que é dona do prédio aludido em 6 e que não ofende o direito ou legítimo interesse alheio;
12-O prédio referido em 3 faz estrema, a nascente, com o prédio identificado no n.º1;
13-Em tempos os RR. manifestaram interesse na aquisição do prédio da Autora;
14-Nessa altura os RR. passaram a ocupar a parte desse prédio que está a mato e pinhal, arroteando a parte desse prédio que está a mato e pinhal, arroteando ali as duas pequenas leiras de terra, edificando um canastro e cortando árvores;
15-Os prédios descritos em 1 e 3 estão demarcados e separados por um muro;
16- Feito pelos RR. no limite nascente do seu prédio.




III)- O DIREITO

Delimitando as conclusões da alegação o objecto do recurso, embora sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 684º, n.º3 e 660º, n.º2, todos do CPC), verifica-se que a Autora/Apelante, nas extensas conclusões da sua alegação de recurso, coloca a julgamento deste Tribunal as seguintes questões:
1ª-Alteração da decisão de facto;
2ª-Subsunção ao direito da factualidade assente.

Vejamos a 1ª questão.
Antes de entrar propriamente no exame da decisão sobre a matéria de facto na parte impugnada, ou seja, as respostas aos quesitos 1º, 2º B, 2º C, 2º D, 2º E, 2º F, 2º G, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º da B.I., justifica-se uma análise a todo o conjunto factual dado por assente.
Assim, na parte decisória, como se viu, foram os RR. condenados a reconhecer a Autora como dona e legítima do prédio inscrito na matriz da freguesia das Talhadas sob o art. nº 4.551 no que respeita à parte culta, com a área de 1.020 m2, com os limites e estremas que resultam da sua implantação e posicionamento topográfico.
O levantamento topográfico consta de fls. 335 a 336.

Ora, foi dado por assente que o prédio da Autora, identificado no n.º1 da factualidade acima transcrita, tem, pelo menos, a área de 1830 m2, confronta a nascente com Manuel Tavares da Silva Júnior, faz estrema, a nascente, com o prédio do Réu e, ainda, que os prédios da Autora e dos RR. estão demarcados e separados por um muro feito pelos RR. no limite nascente do seu prédio.

Mas, também, provado que a Autora, por si e antecessores, vem semeando, plantando, tratando e colhendo milho, ervas e pastos, videiras, oliveiras, produtos hortícolas quanto à parte culta no seu prédio identificado em 1, à vista de toda a agente, sem oposição de quem quer que seja, de forma exclusiva, por si ou através de pessoas a quem pede para o efeito, há já 20, 30 e mais anos, na convicção de que é dona do prédio aludido em 6 e que não ofende o direito ou legítimo interesse alheio.

Verifica-se que a Autora, arrogando-se a titularidade do prédio em apreço, alegou, para além do registo predial a seu favor, factualidade visando demonstrar a aquisição originária, como flui dos arts. 6º a 11º da petição inicial.
O Réu, para além de impugnar as indicadas área e confrontações do prédio da Autora, bem como a confinância com o seu prédio, refutou, também, os factos alegados pela Autora sobre a aquisição originária, porque, na sua tese, adquiriu por usucapião uma parcela a mato desse prédio, parcela essa com a área aproximada de 1.000 m2, denominada “Cabeça do Codorno”.

Podendo servir de base a pedido de aquisição de direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, nada obsta, também, a que a usucapião seja expressamente invocada por excepção, como foi (cfr. art. 29º da contestação)- Cfr., a este respeito, “A Posse”, p. 285, de Manuel Rodrigues.

Sendo assim, tratando-se, na hipótese sub judice, de uma acção de demarcação, e não de reivindicação (art. 1311º do CC), visando fazer funcionar o direito previsto no art. 1353º do CC, não tendo por objecto o reconhecimento do domínio, embora o pressuponha, compete à Autora alegar a confinância entre prédios e a divergência quanto à exacta linha divisória (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ, publicados no BMJ n.º 499, p. 294 e BMJ n.º 356, p. 285).

Ora, a demonstração da área, confrontações e confinância do prédio da Autora com o prédio da Ré, objecto da impugnação dos RR., depende da prova dos factos alegados como causa geradora da aquisição originária sobre a totalidade da área do prédio, tal como está inscrito na matriz e descrito no registo predial. E tal prova terá de ser feita pela Autora, de nada valendo a inscrição matricial e o registo predial a esse respeito, porque, como é reiteradamente afirmado pela jurisprudência, a presunção juris tantum prevista no art. 7º do Código de Registo Predial não abrange a descrição predial, actuando apenas relativamente ao facto inscrito, ao seu objecto e aos sujeitos da relação jurídica emergente do registo (elementos causais dos direitos reais), mas já não no que toca aos elementos da descrição do prédio (elementos materiais), que têm por finalidade apenas a identificação física, económica e fiscal deste, aí englobados a área, confrontações e limites (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ, publicados na CJ 1997, 2º, p. 126, CJ 1995, 2º, p. 75; BMJ 420º, p. 590 e desta Relação publicado na CJ 1999, 2º, p.15).

A Autora, na petição inicial, caracteriza e distingue no seu prédio duas partes, uma parte culta (art. 7º) e uma outra parte de terreno inculto (arts. 8º e 9º). Tal matéria foi levada à base instrutória, por ampliação a que se procedeu na audiência de julgamento (cfr. fls. 317 v.), tendo sido apenas provado que a Autora, por si e antecessores, vem semeando, plantando, tratando e colhendo milho, ervas e pastos, videiras, oliveiras, produtos hortícolas quanto à parte culta no prédio invocado pela Autora.

Não se provou, porém, que a Autora na parte a terreno inculto, a mato e pinhal, por si e antecessores, roçasse matos, estrumes, cortasse árvores, apanhasse lenha e aí fizesse moreias, à vista de toda a agente e sem oposição de quem quer que seja, de forma exclusiva, por si ou através de outrem, há já 20, 30 e mais anos, na convicção de ser dona de tal prédio e não ofender direito ou legítimo interesse alheio. A posse boa ou conducente para a usucapião apenas provada, por conseguinte, em relação à parte culta do prédio, tal como está inscrito na matriz e descrito no registo predial.

Porém os RR., na sua contestação, afirmam não estar a Autora e seus antecessores na posse da parte inculta do prédio, a mato e pinhal, desde 1973, porque, relativamente a essa parte do prédio, parte essa que denominam “Cabeço do Codorno”, invocaram expressamente a usucapião, aduzindo a pertinente factualidade.
Daí não se segue que os antecessores da Autora não tenham adquirido o prédio, incluída essa parte, também, por usucapião, depois transmitido à Autora por doação, no ano de 1999 (n.º 2 da factualidade supra transcrita). E uma vez adquirido o direito de propriedade sobre um imóvel, pode o direito ser transmitido por contrato (“inter vivos”) ou sucessão por morte (“mortis causa”), como pode o titular perder o direito porque outrem o adquiriu por usucapião ou acessão (art. 1316º do CC).

Mas a usucapião carece de ser invocada para produzir os seus efeitos, como acima se referiu, podendo ser invocada por excepção (arts. 1292º e 303º, ambos do CC). Constituindo uma causa de aquisição originária, tal como a acessão e ocupação, o beneficiário recebe um novo direito de propriedade, totalmente independente das vicissitudes que possa ter o sofrido o anterior direito, que se extingue.
Não sendo invocada a usucapião, não se extingue o direito de propriedade de outrem pelo não uso ou pelo não exercício da posse, atenta a característica de imprescritibilidade ou perpetuidade inerente ao direito de propriedade. É que o proprietário goza, também, do poder de inactividade sobre a coisa, podendo dizer-se que, não usar a propriedade, é também uma forma de a usar. Na verdade, como determina o n.º 3º do art. 298º do CC, os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse e superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesse casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade. Por seu turno, nos termos do art. 1313º do CC, “sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, a acção de reivindicação não prescreve pelo decurso do tempo”, harmonizando-se tal norma com imprescritibilidade ou carácter perpétuo do direito de propriedade, que apenas se extingue no caso especial previsto no art. 1397º do CC.

Verifica-se que a matéria de facto relativa à invocada usucapião não foi levada à base instrutória. E assim são de qualificar os factos alegados pelos RR. sob os arts. 8º a 28º da contestação, factos esses impugnados pela Autora, na resposta junta a fls. 40.
Aliás, os RR. reclamaram da base instrutória com o objectivo de aí ver incluída tal matéria, mas tal reclamação foi indeferida, como se vê de fls. 314 a 315. Porém, aos RR., porque vencedores na lide, vedado estava impugnar tal despacho (art. 511º, n.º3 do CPC).
Torna-se, pois, imprescindível que os factos alegados pelos RR., com a finalidade de ver provada a usucapião, sejam vertidos na base instrutória, porque só por efeito da usucapião a área do prédio da Autora será inferior, bem como serão diferentes as confrontações, relativamente ao que consta da matriz e registo predial. Não se provando a usucapião, à Autora terá que ser reconhecido o domínio sobre a totalidade do prédio, com as indicadas confrontações e confinância com o prédio do Réu, ou seja, o prédio com a área de 400 m2 e inscrito na matriz sob o art. 4.554 e confrontando do seu lado nascente com o prédio da Autora.
E sobre os RR. recai o ónus de provar os requisitos da usucapião que invocam (n.º2 do art. 342º do CC). E uma vez provada a usucapião, terá que ser reconhecido apenas o domínio da Autora sobre a parte culta do prédio, tal como foi decidido, mas improcedendo a pretendida demarcação.
Muito embora constem do processo todos os elementos probatórios, tendo sido gravada a prova testemunhal, importa que os depoimentos incidam sobre os concretos pontos de facto omitidos na base instrutória, sendo certo que a prova gravada sugere como correcta a convicção a que chegou o Tribunal a quo, explanada a fls. 386 a 388. Com efeito, é convincente a prova testemunhal oferecida pelos RR.

Sendo assim, fica prejudicado o reexame da decisão da matéria de facto impugnada, bem como a análise das demais questões suscitadas no tocante à aplicação do direito.
Impõe-se, destarte, a anulação do julgamento, para ampliação da base instrutória, nessa peça se incluindo os factos alegados pelos RR. nos arts. 8º a 28º, inclusive, da contestação, matéria de excepção, podendo o julgamento incidir sobre outros pontos de facto da mesma base instrutória com o fim exclusivo de evitar contradição nas respostas (n.º4 do art. 712º do CPC).



IV)- DECISÃO

Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em anular o julgamento a fim de ser ampliada a base instrutória com os factos alegados pelos RR. nos arts. 8º a 28º, inclusive, da contestação, podendo o julgamento incidir sobre outros pontos de facto da dita peça processual, com o fim exclusivo de evitar contradição na decisão.
Custas pela parte vencida a final.
COIMBRA,

(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj. –Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Vítor)