Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1056/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA INDICIÁRIA
VALOR
Data do Acordão: 05/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 127º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – Na ausência de prova directa nada impede que o tribunal deduza racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária (prova artificial ou por concurso de circunstâncias).
II – No entanto, a prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos:

- Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis;

- Racionalidade da inferência obtida, de maneia que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência (recto critério humano e correcto raciocínio).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No processo comum singular n.º 145/00, do Tribunal Judicial da comarca de Vouzela, após a realização de contraditório foi proferida sentença que absolveu o arguido A... com os sinais dos autos, da autoria material de um crime de furto qualificado previsto e punível pelos artigos 203º, n.º1 e 204º, n.º 2, alínea e), do Código Penal.
Interpôs recurso da sentença o Digno Magistrado do Ministério Público, em cuja motivação formulou conclusões, nas quais impugna a matéria de facto, pretendendo seja modificada a decisão de facto proferida, considerando-se provados todos os facto que nela se deram por não provados e, por via dessa alteração, se condene o arguido como autor material do crime de furto qualificado por que se encontra acusado, em pena de prisão não inferior a dois anos cuja execução entende dever ser suspensa ( - Não se reproduzem as conclusões formuladas atenta a sua extensão.).
O recurso foi admitido.
Na contra-motivação apresentada o arguido concluiu:
1. O recorrente não cumpriu o artigo 412º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, pelo que o recurso deve ser liminarmente rejeitado – artigo 420º, com referência ao artigo 414º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
2. Não serve de prova à autoria de um furto a venda de um dos objectos furtados.
3. Do facto de o arguido prestar declarações sem qualquer credibilidade, não pode o mesmo ser prejudicado.
4. Não foi produzida qualquer prova capaz de convencer o Mm.º Juiz a quo da autoria dos factos – tal jamais pode levar a uma condenação do arguido, atento o princípio in dubio pro reo.
5. Dos depoimentos das testemunhas, correlacionados entre si e com o teor dos documentos juntos aos autos, não se deve alterar a matéria de facto dada por provada e não provada, confirmando-se, destarte, a sentença em apreço.
Nesta instância o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido do provimento do recurso, com o fundamento de que, de acordo com as regras da experiência, a quem é imputado o furto de determinado objecto, que comprovadamente vendeu, quando confrontado judicialmente com essa imputação, caso não seja o autor do crime, não se remeterá ao silêncio sobre a obtenção e posse do objecto.
Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.
***
Questão prévia a decidir ( - De acordo com o disposto no artigo 368º, n.º1, do Código de Processo Penal, obviamente aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores, o tribunal deve começar por decidir as questões prévias ou incidentais, tal qual aliás estabelece o artigo 660º, do Código de Processo Civil, normativo que impõe o conhecimento das questões submetidas à apreciação do tribunal segundo a sua precedência lógica.) é a suscitada pelo arguido/recorrido na contra-motivação, segundo a qual o recurso deve ser rejeitado por falta de concisão das conclusões extraídas da motivação apresentada, deficiência que, a seu ver, deve ser equiparada à falta de conclusões.
Decidindo, dir-se-á.
A lei adjectiva penal estabelece os casos e as situações em que há lugar à rejeição do recurso, razão pela qual não é legalmente admissível o recurso à lei processual civil em matéria de rejeição das impugnações ( - Com efeito, o artigo 4º, do Código de Processo Penal, apenas permite o recurso às normas de processo civil nos casos omissos, isto é, quando as disposições do próprio Código não puderem aplicar-se directamente ou por analogia.).
Ora, do exame dos preceitos da lei adjectiva penal que estabelecem e regulam os casos e as situações de rejeição do recurso – artigos 412º, n.º 2 e 420º, n.º1 – verifica-se não se encontrar prevista a rejeição da impugnação no caso de complexidade ou falta de concisão das conclusões, ao contrário do que sucede na lei processual civil – artigo 690º, n.º 4 – que prevê o não conhecimento do recurso quando, após convite à correcção, as conclusões faltem, sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas não se tenha procedido às especificações legalmente impostas.
Nesta conformidade e tanto mais que as conclusões formuladas pelo Digno Magistrado recorrente, ao contrário do alegado, não padecem de qualquer deficiência, certo é não se verificar caso ou situação conducente à rejeição do recurso.
***
Passando à delimitação do âmbito e do objecto do recurso, verifica-se que o mesmo visa o reexame da matéria de facto, sob a alegação de que a prova foi incorrectamente valorada e apreciada.
É do seguinte teor a decisão de facto proferida (factos provados e não provados):
Factos provados
Em dia e hora não apurados do mês de Novembro de 2000, alguém que não foi possível identificar, dirigiu-se à casa de habitação pertencente a B... sita em Quinta de Cima, Vouzela.
Partiu o vidro da porta de entrada, logrando abri-la e, de seguida, entrou na casa e daí retirou um televisor de marca “Toshiba”, modelo 145 ORD n.º 67162249 e uma máquina roçadora, marca “Óleo – Mac 740 T”, n.º ISSO/CD 14892;
O arguido vendeu a roçadora a C... pelo preço de Esc. 25.000$00, o qual não desconfiou da sua proveniência, e que mal soube do furto a entregou na G.N.R. de Vouzela, que a restituiu ao seu legítimo proprietário.
O arguido é pintor da construção civil.
O arguido é casado.
É de mediana condição social.
Nos anos de 1998 a 2000 o arguido foi condenado pela prática por três ocasiões do crime de condução sem habilitação legal.
Factos não provados
Em dia e hora não apurados, mas que se situará entre 24 e 26 de Novembro de 2000 o arguido dirigiu-se à casa de habitação pertencente a B... sita em Quinta de Cima, Vouzela, com o objectivo de se apoderar de bens e valores que lá se encontrassem, pois sabia que o seu dono se encontrava em Leiria.
Aí chegado partiu o vidro da porta de entrada, logrando abri-la e, de seguida, entrou na casa daí retirando e levando consigo um televisor de marca “Toshiba”, modelo 145 ORD n.º 67162249, no valor de 45.000$00 e uma máquina roçadora, marca “Óleo – Mac 740 T, n.º ISSO/CD 14892, no valor de 65.000$00.
O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que os objectos acima referidos não lhe pertenciam e que ao apoderar-se deles o fazia contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário, B..., que também não consentia que entrasse na sua casa daquela forma.
Sabia igualmente que a sua conduta era criminalmente punível.
***
Entende o Digno Magistrado recorrente que, face à prova directamente produzida no contraditório, segundo a qual o arguido vendeu à testemunha C... a máquina roçadora que fora ilegitimamente subtraída a seu dono B..., atentas as regras da experiência e da lógica, não pode deixar de se considerar ter sido o arguido o autor do furto objecto do processo.
Ao invés, em sentença considerou-se que: «Da prova que o arguido vendeu a máquina a C... não poderá resultar que tenha sido aquele a entrar na residência de B... ou que soubesse que o mesmo se encontrava fora, e dali retirado o televisor ou a máquina roçadora, sendo desconhecidas as circunstâncias em que esta veio parar às mãos do arguido».
Apreciando, dir-se-á.
Em matéria de julgamento da prova a nossa lei consagrou o princípio da livre apreciação, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente – artigo 127º, do Código de Processo Penal ( - Na expressão regras da experiência incluem-se, obviamente, as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, as quais se devem basear na correcção de raciocínio, bem como as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado – F. Gomez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 112.).
Por outro lado, atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso ( - O facto delituoso, atenta a sua censurabilidade e punibilidade, por via de regra, quando materialmente possível, é perpetrado de forma oculta.), vem-se entendendo que a apelidada prova artificial ou por concurso de circunstâncias – prova indiciária ou indirecta – é absolutamente indispensável em matéria criminal ( - Cf. Mittermaier, “Tratado de la prueba en material criminal”, Imprenta de la Revista de Legislación, 3ª edição, 352.) ( - Segundo a sentença do Supremo Tribunal espanhol de 6 de Junho de 2001, referenciada por Francisco Pastor Alcoy, Prueba de Indícios, Credibilidad del Acusado y Presunción de Inocência (2003), criar-se-iam amplos espaços de impunidade se a prova indiciária não tivesse a virtualidade de ilidir o princípio da presunção de inocência.).
Por isso, na ausência de prova directa, todos reconhecem a possibilidade de o tribunal deduzir racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária ( - Cf. as decisões do Tribunal Constitucional espanhol de 17 de Dezembro de 1985 e de 2 de Julho de 1990, proferidas nos processos n.ºs 175/85 e 124/90, bem como o acórdão desta Relação de 9 de Fevereiro de 2000, publicado na CJ, XXV, I, 51.).
No entanto, a prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos:
a) Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis ( - Excepcionalmente casos há em que basta um só indício pelo seu especial valor, como sucede, por exemplo, com a posse de estupefacientes para o tráfico – cf. a decisão do Supremo Tribunal espanhol de 21 de Novembro de 2000, referenciada por Francisco Pastor Alcoy, ibidem.);
b) Racionalidade da inferência obtida, de maneira que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência (recto critério humano e correcto raciocínio) ( - Neste sentido a decisão do Tribunal Supremo espanhol de 6 de Junho de 2001, referenciada por Francisco Pastor Alcoy, ibidem.).
No caso vertente, estamos perante uma situação em que ocorre um só dado indiciário ( - Só ocorre um elemento indiciário no que concerne à autoria do crime, no entanto, no que tange à verificação do facto outros dados indiciários existem, designadamente a queixa ou denúncia apresentada pelo ofendido contra desconhecidos em 1 de Dezembro de 2000 no Posto da G.N.R. de Vouzela, bem como o auto de apreensão da máquina roçadora subtraída datado de 12 de Dezembro de 2000.), porém, trata-se de um dado indiciário de inquestionável credibilidade e de especial relevo, qual seja o de que o arguido deteve em seu poder a máquina roçadora subtraída ao ofendido B..., tendo-a vendido à testemunha C..., testemunha que, assim que se apercebeu da proveniência ilícita do objecto adquirido, procedeu à sua imediata entrega à autoridade policial.
Ora a partir de tal dado indiciário, face à posição assumida pelo arguido no contraditório ( - O único facto que o arguido assumiu no contraditório relacionado com os objectos furtados é o de alguém que apenas diz conhecer pelo nome de Mário haver pretendido vender-lhe a máquina roçadora subtraída ao ofendido, negócio que não se realizou.), mandam as regras da experiência e a lógica, se conclua ter sido aquele o autor do furto da máquina em apreço.
Com efeito, como bem refere o Exm.º Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, de acordo com as regras da experiência, a quem é imputado o furto de determinado objecto, que comprovadamente vendeu, quando confrontado judicialmente com essa imputação, caso não seja o autor do crime, não se remeterá ao silêncio sobre a obtenção desse objecto.
Nesta conformidade, há que alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando-se provado que em dia e hora não apurados do mês de Novembro de 2000, o arguido dirigiu-se à casa de habitação pertencente a B..., sita em Quinta de Cima, Vouzela, aí partiu o vidro da porta de entrada, logrando abri-la e, de seguida, entrou na casa daí retirando e levando consigo uma máquina roçadora marca “Óleo – Mac 740 T, n.º ISSO/CD 14892, o que fez voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a máquina não lhe pertencia e ao apoderar-se dela o fazia contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário, B..., que também não consentiu que entrasse na sua casa daquela forma.
Mais se deverá considerar provado que o arguido sabia que a sua conduta era criminalmente punível e que vendeu a referida máquina a C... pelo preço de esc. 25.000$00, o qual não desconfiou da sua proveniência, e que mal soube da forma como havia sido obtida a entregou na G.N.R. de Vouzela, que a apreendeu e restituiu ao seu legítimo proprietário.
Dever-se-á ainda considerar provado que:
O arguido é casado e de mediana condição social, exercendo a actividade de pintor da construção civil.
Nos anos de 1998 a 2000 foi condenado pela prática por três vezes do crime de condução sem habilitação legal.
***
Perante este quadro factual há que alterar a decisão de direito proferida, posto que o arguido, com o atrás descrito comportamento, preencheu todos os elementos constitutivos do crime de furto qualificado por que foi acusado, qual seja o previsto e punível pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, alínea e), do Código Penal.
Passando à determinação da medida da pena, dir-se-á que a determinação da medida concreta da mesma faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no artigo 71º, do Código Penal, tendo em vista as finalidades das respostas punitivas em sede de Direito Penal, quais sejam a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40º, n.º1, do Código Penal –, sem esquecer, obviamente, que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – artigo 40º, n.º 2.
Efectivamente, a partir da revisão operada em 1995 ao Código Penal, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena, no sentido de que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – artigo 18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995 ( - Vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111.).
Como refere Anabela Rodrigues ( - Problemas fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin (2002), “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, 177/208, estudo também publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2 Abril – Junho de 2002, 147/182.), o artigo 40º, do Código Penal, após a revisão de 1995, condensa em três proposições fundamentais um programa político-criminal – a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos, de que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena, de onde resulta que:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade da tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas» ( - Em sentido concordante, mas não totalmente coincidente, de jure constituto, veja-se Taipa de Carvalho, “Prevenção, Culpa e Pena”, Liber Discipulorum Para Jorge Figueiredo Dias (2003), 317/329, que considera a prevenção, geral e especial, o fundamento legitimador da aplicação da pena, desempenhando a culpa do infractor, apenas, o (importante) papel de pressuposto e de limite máximo da pena a aplicar, por maiores que sejam, as exigências sociais de prevenção, e entende ser correcta a afirmação de que está subjacente ao artigo 40º, do Código Penal, uma concepção preventivo-ética da pena: preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência de culpa, no entanto, acaba por defender, de forma aparentemente contraditória ou, no mínimo, dificilmente compatível, que o actual Código Penal, apesar do artigo 40º, não se opõe a uma concepção ético-preventiva da pena semelhante à que é defendida pela “teoria da margem da liberdade”, isto é, a uma concepção em que a prevenção é a finalidade legitimadora da pena, mas em que a culpa também desempenharia uma função na determinação da medida da pena, não sendo exclusivamente seu pressuposto e seu limite máximo.
Também o nosso mais alto Tribunal se orienta em sentido concordante ao assumir que a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Em sentido discordante veja-se Sousa Brito, “Os fins das penas no Código Penal”, Problemas fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin, 155/175, o qual entende que a retribuição da culpa continua a ser uma das finalidades da pena, constituindo a determinação da medida da culpa dentro da medida legal da pena o primeiro passo obrigatório da medida judicial da pena, defendendo, ainda, que a prevenção especial tem primazia sobre a prevenção geral, designadamente em matéria de determinação da medida judicial da pena.
).
Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa ( - O mínimo da pena, como já ficou dito, segundo Figueiredo Dias, é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. Em sentido coincidente pronuncia-se Anabela Rodrigues, ibidem, 178/179, bem como Taipa de Carvalho, ibidem, 328, ao defender que o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) nunca pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima, limite este que coincide com o limite mínimo da moldura penal estabelecida pelo legislador para o respectivo crime em geral.), elegendo em cada caso aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, tendo em vista os fins das penas, com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto, tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; neste sentido sendo uma razoável forma de expressão afirmar-se como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena a que o artigo 18º, n.º 2, da CRP, consagra ( - Cf. Figueiredo Dias, ibidem, 105/106.).
Quanto à pena adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada – máximo inultrapassável –, certo é dever corresponder à sanção que o agente do crime merece, ou seja, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade.
Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é “merecido” não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral ( - Vide Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.).
*
No caso sub judicio estamos perante crime de furto qualificado, ilícito típico através do qual se protege a propriedade sobre bens móveis, mais concretamente o poder de facto sobre aqueles bens, ao qual é aplicável a pena de prisão de 2 a 8 anos.
O arguido agiu com dolo directo, movido pelo lucro que obteve com a venda do objecto de que se apoderou.
Já foi julgado e condenado por três vezes pela autoria material do crime de condução sem habilitação legal.
É casado, de condição social mediana e exerce a actividade de pintor da construção civil.
Tudo ponderado, entende-se fixar a pena em 3 anos de prisão, pena que situando-se dentro da medida da culpa é exigida pelas necessidades de tutela do bem jurídico violado, constituindo o mínimo indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico penais violados.
Resta averiguar se aquela pena deve ser suspensa na sua execução, atenta a imposição constante do art.50º, n.º1, do Código Penal, segundo a qual o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A questão agora a conhecer, como resulta do texto legal, terá de ser enquadrada e solucionada com exclusão de qualquer apelo à culpa, tendo de ser decidida, exclusivamente, a partir de considerações de natureza preventiva.
Com efeito, não está aqui em causa o quantum de pena, mas sim a sua forma de execução, tendo em conta a realização das finalidades que a pena visa prosseguir – protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade.
Trata-se de saber se a simples censura e a ameaça da pena são suficientes para afastar o arguido da criminalidade e, simultaneamente, defendem o ordenamento jurídico.
Conquanto o arguido já tenha sido objecto de censura jurídico-penal por três vezes, a verdade é que os factos cometidos e pelos quais foi condenado (condução de veículo sem habilitação legal) não assumem gravidade que permita a formulação, por ora, de um juízo apreciativo indicador de uma personalidade com tendência criminosa.
Nesta conformidade e por estarmos certos que a aplicação da pena de substituição se mostra adequada à defesa do ordenamento jurídico, sendo compreendida pela comunidade, na convicção de que, perante a ameaça da pena de prisão, o arguido irá pautar o seu comportamento futuro pela contenção e auto-responsabilização, afastando-se da criminalidade, entendemos suspender a execução da pena pelo período de 5 anos ( - Ao estabelecermos o período de suspensão tivemos em consideração que aquele deve ser fixado tendo em vista as circunstâncias pessoais do condenado, as características do crime e a duração da pena.
Com efeito, conquanto a nossa lei – artigo 50º e ss., do Código Penal – nada estabeleça a propósito da fixação do prazo de suspensão, a verdade é que aqueles factores são os relevantes para a determinação da duração do período de suspensão, tal qual se encontra estabelecido noutros ordenamentos jurídicos, como é o caso do espanhol – artigo 80º, n.º 2, do Código Penal – Lei Orgânica 10/95, de 23 de Novembro.).
***
Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso, modificando-se a decisão proferida sobre a matéria de facto nos precisos termos referidos e, consequentemente, condenando o arguido como autor material de um crime de furto qualificado previsto e punível pelos artigos 203º, n.º1 e 204º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão com execução suspensa pelo período de 5 (cinco) anos.
Sem tributação.
Ter-se-á em atenção que é devida taxa de justiça pelo arguido atenta a sua condenação no crime por que foi acusado – 8 UC.
***