Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1463/07.9TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: MÚTUO
CONCEITO JURÍDICO
EFEITOS
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
FIANÇA
SUB-ROGAÇÃO
VONTADE
Data do Acordão: 09/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 220º, 289º, Nº 1, 591º, Nº 1, 627º, Nº 1, 1142º E 1143º DO C.CIVIL.
Sumário: I – O contrato de mútuo é aquele pelo qual uma das partes – o mutuante – empresta à outra – o mutuário – dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a última a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artº 1142 do Código Civil).

II - O mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato.

III - Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.

IV - O mútuo é um negócio consensual ou formal, conforme o seu valor, sendo exigível escritura pública ou documento particular autenticado se exceder € 25.000,00, e documento assinado pelo mutuário se exceder 2.500,00€ (artº 1143º do Código Civil, na redacção do DL nº 116/2008, de 24 de Julho).

V - Trata-se de uma formalidade ad substantiam cuja inobservância determina a nulidade do contrato (artº 220º do Código Civil).

VI - Caso se não tenha observado a forma exigida por lei, o contrato de mútuo – a provar-se a sua conclusão – é irremissivelmente nulo e, por força do carácter retroactivo da declaração de nulidade e da relação de liquidação que institui entre as partes, o mutuário fica constituído na obrigação de restituição da quantia mutuada (artº 289º, nº 1 do Código Civil).

VII - Como contrato, a fiança pode definir-se como o acordo pelo qual uma pessoa - o fiador – garante, face a outra – o credor – a satisfação do seu crédito sobre uma terceira pessoa – o devedor principal (artº 627º, nº 1 do Código Civil). Partes no contrato são, portanto, apenas o fiador e o credor: pode, por isso, haver fiança sem o conhecimento ou mesmo contra a vontade do devedor (artº 628º, nº 2 do Código Civil).

VIII - Na sub-rogação voluntária objecto de regulação, quem cumpre não é o terceiro, mas o próprio devedor, embora com dinheiro ou outra fungível que lhe foi emprestada por aquele terceiro (artº 591º, nº 1 do Código Civil). Exige-se, porém, que tanto a declaração expressa de sub-rogação como a declaração de que, designadamente, o dinheiro se destina ao cumprimento da obrigação, conste de documento (artº 591 nº 2 do Código Civil).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.

1. Relatório.

C… pediu, em acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário pelo valor, ao Sr. Juiz de Direito do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, a condenação de M…, sua mãe, a pagar-lhe a quantia de € 43.458,90.

Fundamentou esta pretensão no facto de a ré ter contraído, junto do Banco …, um mútuo – no qual interveio como fiador – para adquirir a casa onde reside, pagando ao ex-cônjuge as respetivas tornas, de se ter proposto, com os irmãos, por a ré ter dificuldades económicas, emprestar-lhe o dinheiro necessário para o empréstimo, tendo pago, através de transferência da sua conta ou de depósito feito pela ré, com dinheiro que lhe entregava, de Outubro de 1999 a Maio de 2005, a quantia de € 31.557,35, dívida que a ré sempre assumiu, assegurando-lhe que lhe pagava, em dinheiro ou pondo a casa em seu nome, e de ter ainda pago, a pedido da ré, a contribuição autárquica, no valor de € 754,29, o seguro anual do carro, de 1998 a 2004, no valor de € 1.475,81, reparações de electrodomésticos, no valor de € 246,50, electrodomésticos, no valor de € 1.924,95, o arranjo do telhado, no valor de € 2.500,00, reparações do carro da ré, móveis, sofás, portões de entrada, honorários da advogada do processo de divórcio, água, luz, telefone e dinheiro para aquisição de bens de 1ª necessidade, no valor de € 5.000,00.

A ré defendeu-se por impugnação alegando, designadamente que acordou com os filhos contribuírem todos para o pagamento do mútuo contraído junto do Banco …, como forma de participarem todos nas despesas da casa, nunca se tendo comprometido a devolver quaisquer quantias aos filhos, que declarava no verso da folha informativa da liquidação da prestação os montantes com que cada filho havia contribuído para o objectivo comum de manter a casa de morada da família, procurando somente assegurar que, na partilha da sua herança, fossem tidos em conta os montantes com que cada filho contribuíra para o pagamento da casa; que a partir de 5 de Abril de 2001 apenas o autor continuou a contribuir tendo passado a declarar, para que não fosse prejudicado, montantes superiores ao que este lhe dava; que apesar de nunca se ter reconhecido como devedora, quando muito estaria em causa o montante de € 28.858,00, que, embora fictício, seria correspondente às declarações que fez de boa fé a pensar na partilha da casa entre os filhos, e que é falso que o autor tenha pago outras despesas.

A sentença final da causa – proferida pelo Sr. Juiz de Círculo da Figueira da Foz - depois de observar que não ficou provada, em sede de factualidade adquirida, a obrigação de restituição das diversas datio rei do A. para a Ré para proceder ao pagamento do empréstimo bancário por si contraído, que o Tribunal não estava adstrito à qualificação jurídica que as partes façam dos factos e que ao A. por efeito da sua posição de fiador da ré naquele empréstimo assistia o direito a ficar sub-rogado nos direitos desta entidade, relativamente ao quantum pelo A. satisfeito, por homologia entre a situação em que o terceiro cumpre directamente perante o credor a obrigação do devedor e aquela em que, como nos autos, o terceiro (leia-se o A.) entrega ao devedor (leia-se a Ré) os meios de cumprimento de cumprimento da obrigação deste devedor perante o credor (leia-se o “Banco …), a justificar uma aplicação analógica do artº 644 do CC – condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 28.877,39, no mais absolvendo a ré do contra si peticionado.

É esta sentença que a ré impugna no recurso ordinário de apelação no qual pede a sua revogação e a sua substituição por outra que a absolva do pedido.

A recorrente, que apresentou o requerimento de interposição do recurso por via electrónica no dia 18 de Janeiro de 2013, rematou a sua alegação – apresentada pela mesma via no dia 16 de Abril do mesmo ano - com estas conclusões:

Não foi oferecida resposta.

2. Factos provados.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada, expressa ou tacitamente, no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da sentença impugnada e da alegação da recorrente, a questão controversa que esta Relação e chamada a resolver é a de saber se aquela sentença deve ser revogada e a apelante absolvida, in totum, do pedido.

                A resolução deste problema vincula ao exame, ainda que leve, de um dos dos princípios em que se desdobra o princípio processual instrumental do dispositivo - o princípio da disponibilidade privada – dos elementos constitutivos do contrato típico e nominado de mútuo e dos pressupostos da sub-rogação, designadamente na fiança.

                3.2. Princípio da disponibilidade privada.

                O objecto do processo é a matéria ou assunto sobre o qual o tribunal é chamado a pronunciar-se. Este objecto é constituído pelo pedido e pela causa de pedir.

                O pedido é a forma de tutela jurisdicional requerida para um direito ou para um interesse legalmente protegido (artº 498 nº 3 do CPC); a causa de pedir é constituída pelos factos – essenciais - necessários para individualizar o direito ou o interesse invocado pela parte (artº 498 nº 4, 1ª parte, do CPC). Assim, por exemplo, é distinto o direito de crédito que é invocado com fundamento num contrato de mútuo e outro que é fundamento numa fiança.

                Todavia, dado que a qualificação jurídica dos factos pertence ao tribunal, a causa de pedir é o facto concreto e não a categoria jurídica ou legal em que se enquadra o facto alegado[1].

                O objecto do processo tem, desde logo, uma relevância intraprocessual, dado que condiciona decisivamente o objecto da decisão, ou seja – de harmonia com o princípio fundamental da adequação da sentença (de mérito) ao pedido - aquilo que é pedido pela parte é aquilo que pode ser apreciado e decidido pelo tribunal: o tribunal deve apreciar tudo o que é pedido pela parte – mas não pode apreciar mais do que aquilo que a parte pediu (artºs 660 nº 2 e 664 do CPC).

                O princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo – que é um dos princípios em que se desdobra o princípio do dispositivo – determina que incumbe às partes a definição deste objecto e a realização da prova dos respectivos factos. Ao autor cabe, por isso, definir o pedido e invocar a causa de pedir, não sendo licito ao tribunal, como consequência do funcionamento deste princípio, conhecer de pedido diverso do formulado ou de causa de pedir diferente da invocada (artºs 467 nº 1, als. c) e d), 661 nº 1 e 664, 2ª parte, do CPC). Como complemento desta delimitação privada do objecto processual, incumbe às partes a realização da prova dos factos incluídos nesse objecto (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                Quanto à disponibilidade dos factos necessários para a decisão do tribunal, a regra é esta: o tribunal deve conhecer de todos os factos alegados pelas partes no momento processual adequado, sejam eles factos principais ou acessórios; o tribunal pode ainda conhecer oficiosamente de certos factos acessórios. Portanto, em regra, o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes – iudex, secundum allehata e probata judicare debet, non secundum conscientiam suam (artº 664, in fine, do CPC).

                Todavia, a sentença não é constituída, em regra, apenas por fundamentos de facto, antes se baseia igualmente em fundamentos de direito, ou seja, numa solução da questão ou questões de direito, obtida pelo juiz livremente, por indagação, interpretação e aplicação das regras aos factos (artºs 664, 1ª parte, e 659 nº 2 do CPC).

                Portanto, o juiz, no plano estritamente jurídico, move-se com inteira liberdade, de harmonia com as máximas, iura novit curia e da mihi factum, dabo tibi ius. O juiz é, pois, livre na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.

                Note-se, porém, que não deve confundir-se a causa de pedir com a qualificação ou o enquadramento jurídico que as partes dão aos factos que alegam: a causa de pedir não é o nome que a parte eventualmente dê ao facto invocado – é o próprio facto jurídico, i.e., o facto necessário para fundamentar a procedência de um determinado pedido.

                Assim, se, por exemplo, a parte qualifica os factos que alega como contrato de empreitada, ao tribunal é perfeitamente lícito concluir que, afinal, tais factos são subsumíveis a um contrato de compra e venda. Nesta conjuntura, a única coisa que se lhe exige, no exercício da liberdade assinalada, é que dê satisfação a um dos valores relevantes da decisão judicial - o da previsibilidade – dado que ao tribunal não é lícito decidir uma questão, mesmo que só de direito, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre ela, de modo a evitar as chamadas decisões surpresa, i.e., decisões proferidas sobre matéria de conhecimento oficioso sem a sua prévia discussão pelas partes, como sucederá, decerto, nos casos em que o tribunal opta por um enquadramento jurídico do objecto da causa com que as partes não podiam, razoavelmente, contar (artº 3 nºs 1 e 3 do CPC).

                A relação entre a actividade das partes e a do juiz pode, pois, resumir-se nestas proposições: pelo que respeita aos factos, a acção do juiz está vinculada; pelo respeita ao direito, a acção do juiz é livre. O juiz é, pois, latitudinariamente livre na escolha, interpretação e aplicação das regras de direito – mas deve sempre mover-se no interior do perímetro da causa petendi invocada – e demonstrada – pela parte.

                No caso do recurso, a sentença impugnada depois de notar que dos factos apurados não resultava a obrigação de restituição característica do contrato de mútuo – e que, portanto, aqueles factos não eram subsumíveis a este contrato típico nominado de troca, designadamente de dinheiro por dinheiro, concluiu, porém – por se ter apurado que o autor tinha entregado à recorrente o dinheiro para o pagamento, ao banco mutuante, das prestações relativas ao empréstimo – por aplicação analógica do artº 644 do Código Civil – que aquele ficou sub-rogado nos direitos daquele mutuante, relativamente ao quantum que satisfez.

                Seja qual for a exactidão deste enquadramento jurídico e, portanto, desta solução de direito, a verdade é que a sentença não alterou a causa de pedir invocada pelo apelado, antes se limitou, no exercício da liberdade que a lei lhe reconhece, a proceder à qualificação dos factos integrantes dessa causa petendi alegada pelo autor, cuja realidade, pelo exercício da prova, se demonstrou.

                Não deixa de ser verdade que a causa de pedir invocada pelo recorrido – do qual este fazia derivar o direito de crédito alegado – se orientava, nitidamente, para a subsunção dos respectivos factos no tipo contratual do mútuo, pelo que a sentença final ao assentar a procedência da acção na sub-rogação, para mais por aplicação analógica da previsão específica relativa à fiança, constitui um enquadramento jurídico do objecto da causa relativamente inesperado. Estava, por isso, indicado, que antes de se decidir por esse enquadramento jurídico, o Sr. Juiz de Círculo ouvisse, previamente, sobre a questão correspondente, ambas as partes.

                Realmente, entre os princípios instrumentais do processo civil, i.e., aqueles que procuram optimizar os resultados do processo, conta-se, seguramente, o princípio da cooperação intersubjectiva, de harmonia com o qual, as partes e o tribunal devem colaborar entre si na resolução do conflito de interesses subjacente ao processo (artº 266 nº 1 do CPC).

O tribunal está, portanto, vinculado a um dever de colaboração com as partes, dever que se desdobra, entre outros, no dever de consulta: o tribunal tem o dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (artº 3 nº 3 do CPC). É o que sucede, por exemplo, quando o tribunal enquadra juridicamente a situação de forma diferente daquela que é perspectivada pelas partes. Este dever – que se mantém durante toda a tramitação da causa - tem uma finalidade evidente: evitar as chamadas decisões-surpresa, i.e., as decisões sobre matéria de conhecimento oficioso sem a sua prévia discussão pelas partes.

Uma decisão dessa natureza afecta um valor particularmente relevante da decisão judicial - o da previsibilidade: a decisão do tribunal deve corresponder aquilo que é alegado e discutido durante o processo, não devendo as partes ser – desagradavelmente – surpreendidas com uma decisão que, embora baseada numa matéria de conhecimento oficioso, aprecia uma questão que nenhuma das partes alegou ou discutiu.

A violação do dever de consulta, na vertente considerada, integra, porém, uma simples nulidade processual, dado que se resolve na omissão de um acto imposto (artº 201 nº 1 do CPC).

Trata-se, portanto, de uma nulidade inominada – e não de uma nulidade da sentença, sujeita a um numerus clausus - que só é apreciada mediante reclamação da parte interessada na repetição ou eliminação do acto e que deve ser alegada no prazo de 10 dias a contar de qualquer intervenção da parte na acção ou da sua notificação para qualquer termo do processo, sempre que a parte não esteja presente no momento em que ela foi cometida (artºs 153 nº 1, 202, 2ª parte, 203 nº 1 e 205 nº 1 do CPC)[2]. Esta nulidade deve ser imediatamente julgada pelo tribunal após a resposta da contraparte (artºs 206 nº 3 e 207 nº 1 do CPC).

Ora, o que pode ser impugnado no recurso, é uma decisão do tribunal a quo anterior, pelo que é claro que a parte não pode aproveitar esse recurso para suscitar ex-novo uma qualquer questão que deveria ter colocado em momento anterior. Assim, no caso de nulidades cometidas na 1ª instância, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – v.g., por caducidade – importa a extinção do direito à impugnação por via do recurso ordinário.

Isto só não é assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades que sejam de conhecimento oficioso e de que seja lícito conhecer em qualquer estado do processo, enquanto não devam considerar-se sanadas, dado que estas últimas constituem objecto implícito do recurso, pelo podem ser sempre alegadas no recurso ainda que anteriormente o não tenham sido (artº 205 nº 3 do CPC).

Mas não é isso, decerto, o que sucede com a nulidade resultante da omissão de audição das partes. Uma tal nulidade não é de conhecimento oficioso e o prazo de arguição esgotou-se antes mesmo da expedição do recurso para esta Relação.

Efectivamente, na espécie sujeita é claro que a recorrente tomou conhecimento da nulidade alegada no momento em que foi notificada da sentença final, dado que nesse momento tomou necessariamente consciência que aquela sentença escolhera para enquadrar juridicamente o objecto da causa, por aplicação analógica, o regime da fiança sem que, previamente, se tivesse o cuidado ou a prudência de ouvir, sobre essa questão, ambas as partes.

Dado que o requerimento de interposição do recurso foi apresentado no dia 16 de Janeiro de 2013, segue-se, naturalmente, que a recorrente tomou conhecimento da nulidade acusada ao menos nessa data. Como, porém, a recorrente só a arguiu na alegação do seu recurso – oferecida no dia 16 de Abril do mesmo ano – é irrecusável a extinção, por caducidade, do direito de reclamar contra ela (artºs 144 nºs 1 a 3, 145 nºs 1 e 3 e 153 nº 1 do CPC).

A nulidade apontada – além de não constituir fundamento e objecto admissível do recurso – deve, por isso, considerar-se sanada ou suprida.

A recorrente salienta, porém, na sua alegação, de um aspecto, que o autor nunca alegou que pagou aquelas quantias ao credor (Banco …) na qualidade de fiador, e de outro, que não há lugar à aplicação analógica, dado que o caso dos presentes autos não configura qualquer caso omisso, pois está bem regulado na nossa lei: é um caso de mútuo, nulo por falta de forma, em que o A. invoca ter emprestado à mãe (ora Ré) determinados valores com a obrigação desta os restituir.

3.3. Elementos do contrato de mútuo.

                Embora o legislador não se deva ter por perito em matéria de dogmática jurídica, a verdade é que o Código Civil teve o cuidado de definir o contrato de mútuo.

                De harmonia com essa definição, contrato de mútuo é aquele pelo qual uma das partes – o mutuante – empresta à outra – o mutuário – dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a última a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artº 1142 do Código Civil).

                Não deve existir qualquer dúvida, por mais leve que seja, para a conclusão de que parte dos factos invocados pelo recorrido, a título de causa petendi, é subsumível ao tipo contratual do mútuo (artº 1142 do Código Civil)[3]. Desde que, de harmonia com a alegação do recorrido, este entregou ou tornou disponíveis à recorrente por várias vezes, coisas fungíveis – uma dada quantidade de espécies monetárias, rectior, dinheiro – ficando a última adstrita ao dever de as restituir, é indiscutível que concluíram entre si vários contratos de mútuo – embora de um mútuo gratuito dado aquele não alegou que se convencionaram juros como retribuição do mútuo (artº 1145 do Código Civil).

                O mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto, como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato[4]. Trata-se de uma concepção em clara regressão: de todo o modo, não haverá dificuldades em admitir, ao lado do mútuo típico real – que é aquele que surge regulado no Código Civil - mútuos meramente consensuais[5].

                No caso, porém, deve assentar-se na natureza real quoad constitutionem do contrato de mútuo, devendo, por isso, exigir-se para a sua verificação a traditio – e a acceptio – da coisa mutuada.

                Relativamente à sua formação, o contrato de mútuo está sujeito às regras gerais (artº 224 e ss do Código Civil). Como, porém, o contrato é real quoad constitutionem, é necessária a tradição da quantia mutuada para o mutuário para que se considere efectivamente constituído: ainda que as partes tenham acordado sobre todas as condições do contrato, antes da traditio não há mútuo. Mas também não há mútuo – apesar da tradição de uma coisa fungível – na ausência da prova da emissão das declarações de vontade integrantes deste tipo contratual: a tradição é um acto jurídico bilateral, dado que exige a intervenção de ambas as partes na relação contratual - o autor e o receptor das coisas mutuadas - e, por isso, participa da estrutura negocial da facti species que integra, devendo ser cumprida não apenas com a consciência e a vontade de praticar o acto, mas ainda com a intenção específica de dar e receber a título de mútuo as coisas que constituem o seu objecto.

                Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando, a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.

                O mútuo é um negócio consensual ou formal, conforme o seu valor, sendo exigível escritura pública ou documento particular autenticado se exceder € 25.000,00, e documento assinado pelo mutuário se exceder 2.500,00€ (artº 1143º do Código Civil, na redacção do DL nº 116/2008, de 24 de Julho). Todavia, à data em que se verificaram os factos invocados pelo recorrido a título de causa petendi era exigível escritura pública se o seu valor excedesse € 20.000,00 e documento assinado pelo mutuário se esse valor fosse superior a € 2.000.00 (artº 1143 do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pelo DL nº 343/98, de 6 de Novembro).

                Trata-se de uma formalidade ad substantiam cuja inobservância determina a nulidade do contrato (artº 220 do Código Civil).

                As razões justificativas do carácter formal do contrato – radicadas justamente na extrema falibilidade da prova testemunhal – levariam, em bom rigor, a impedir a prova da entrega ou da disponibilização do dinheiro através de testemunhas e a sua restituição ao abrigo da nulidade do contrato. Todavia, concebe-se sem dificuldade que a lei considere bastante a sanção da nulidade do contrato – sem prejuízo da prova testemunhal daquela entrega – para garantir a observância da forma que para ele prescreve.

                Caso se não tenha observado a forma exigida por lei, o contrato de mútuo – a provar-se a sua conclusão – é irremissivelmente nulo e, por força do carácter retroactivo da declaração de nulidade e da relação de liquidação que institui entre as partes, o mutuário fica constituído na obrigação de restituição da quantia mutuada (artº 289 nº 1 do Código Civil).

                Discute-se se essa restituição deve operar com fundamento na nulidade do contrato ou antes com base no enriquecimento sine causa. Mas esta questão – que não é meramente académica ou dogmática visto que da sua resolução, à luz de um ou de outro daqueles institutos, derivam, designadamente para o âmbito da obrigação de restituição, consequências jurídicas diferenciadas – também só se coloca caso se demonstre a celebração do contrato.

O Código Civil ao fixar o princípio geral da matéria do ónus da prova apelou, nitidamente, à natureza funcional dos factos perante o direito do autor.

Assim, ao autor cabe a prova, não de todos os factos que interessem à existência actual do direito alegado – mas somente dos factos constitutivos dele; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, incumbe à parte contrária, aquele contra quem a invocação do direito é feita (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Numa questão de facto de que dependa o julgamento, a lei dá sempre a uma das afirmações alternativas que a compõem o carácter privilegiado de ser tomada como base da decisão em dois casos: se for provada em si ou então em caso de dúvida insanável ou irredutível; a afirmação contrária só será tomada em conta se for provada. Assim, numa acção de condenação – como é justamente o caso do recurso – na questão de facto emprestei – não emprestou, a primeira afirmação só é tomada em conta se for provada; a segunda é tomada em conta se for provada e ainda no caso de dúvida irredutível.

                De maneira que se o autor se propõe valer declarar e valer um direito à restituição de uma quantia pecuniária resultante de um contrato de mútuo, e se o demandado lhe opõe que recebeu essa quantia como preço de um contrato de empreitada, ou como remuneração de um outro contrato de prestação de serviço ou a qualquer outro título, a aplicação daquele princípio resolve-se nestas regras: ao primeiro impõe-se o ónus de provar os elementos estruturais – constitutivos – do seu direito à prestação – a celebração do contrato entre as partes e a inclusão da prestação exigida entre os efeitos do contrato a cargo do devedor; o segundo está apenas adstrito a um simples ónus da contraprova, de tornar incerto o facto alegado pelo autor.

                Em tal caso, o demandado não tem de criar no espírito do juiz uma convicção positiva, de persuadir o juiz de que o facto em causa – o contrato de mútuo – não é verdadeiro: é suficiente deixar no ânimo do juiz um estado de dúvida ou incerteza, uma convicção negativa sobre a realidade daquele facto (artº 346 do Código Civil). E isto é assim, dado que a dúvida sobre a existência do mútuo – facto constitutivo favorável ao autor - resolve-se contra ele visto que é a parte onerada com a prova.

Ora, no caso do recurso, ficou demonstrado que o autor entregou à recorrente a quantia global de € 28.877,39 – mas não que a apelante se tenha vinculado – como o autor alegava – a restituir-lhas. Ergo, não pode, realmente, assentar-se em que entre o autor e a recorrente foi concluído um contrato de mútuo e, portanto, a eventual vinculação da apelante à obrigação de restituir as quantias que recebeu do autor não pode fundamentar-se na celebração daquele contrato de troca.

3.4. Pressupostos da sub-rogação.

Mas ficou demonstrado que o dinheiro foi entregue, pelo autor à recorrente, para pagamento das prestações relativas ao mútuo bancário em que o Banco …, a apelante e o recorrido, figuram nas posições jurídicas de mutuante, mutuária e fiador/ principal pagador, respectivamente.

É seguro que o recorrido assumiu uma obrigação de garantia acessória – e uma obrigação de garantia acessória pessoal, dado que adicionou a sua responsabilidade patrimonial à responsabilidade patrimonial de outra pessoa – a recorrente.

E essa garantia pessoal acessória outra coisa não é que uma fiança (artº 627 do Código Civil).

O termo fiança é, porém, polissémico, dado que tanto se refere a uma obrigação de garantia pessoal e acessória – como ao acto jurídico que é fonte dessa obrigação: com este sentido, a fiança é, assim, o acto pelo qual uma pessoa – o fiador – garante ao credor, a título acessório, o pagamento de uma obrigação de terceiro. O acto pelo qual se presta uma fiança pode ser um contrato – mas no direito português não é incontroverso que tenha de ser um contrato[6].

                Como contrato, a fiança pode definir-se como o acordo pelo qual uma pessoa - o fiador – garante, face a outra – o credor – a satisfação do seu crédito sobre uma terceira pessoa – o devedor principal (artº 627 nº 1 do Código Civil). Partes no contrato são, portanto, apenas o fiador e o credor: pode, por isso, haver fiança sem o conhecimento ou mesmo contra a vontade do devedor (artº 628 nº 2 do Código Civil).

                A fiança segue a forma requerida para a obrigação garantida[7], devendo resultar das respectivas declarações de vontade a exacta identificação daquela, o seu valor[8], os sujeitos, etc. (artº 628 nº 1 do Código Civil).

                Entre as características distintivas da obrigação do fiador avulta, seguramente, a da sua acessoriedade (artºs 627 nº 2, 628 nº 1, 628 nº 1, 631 nº 1 e 651 do Código Civil).

                O conteúdo da obrigação do fiador tem o conteúdo da obrigação principal (artº 634 do Código Civil).

                O fiador pode opor ao credor os meios de defesa do devedor e ainda os meios de que defesa que lhe são próprios (artºs 637 e 642 do Código Civil). No perímetro dos meios de defesa específicos do fiador sobressai o benefício da excussão.

                Pelo benefício da excussão, o fiador pode recusar o cumprimento da obrigação garantida enquanto o credor não tiver excutido os bens do devedor, sem obter a satisfação do seu crédito (artº 638 nº 1 do Código Civil e 828 do CPC).

                O fiador pode, porém, renunciar a esse benefício, seja directamente, seja assumindo a obrigação de principal pagador (artº 640 do Código Civil).

A fiança é sempre acessória da obrigação afiançada, mas pode, pois, ser ou não subsidiária desta. No primeiro caso, diz-se que o fiador goza do benefício da excussão, que consiste na faculdade de o fiador se opor à execução dos seus bens enquanto não estiverem executados todos os bens do devedor, susceptíveis de penhora.

Entre nós valem duas presunções de sentido inverso: se a obrigação afiançada for civil, presume-se o benefício da excussão e, portanto, a natureza subsidiária da obrigação do fiador (artº 638 do Código Civil); se, porém, a obrigação afiançada for comercial, presume-se a solidariedade do fiador com o devedor afiançado, ainda que o fiador não seja comerciante (artº 101 do Código Comercial)[9].

                O fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na exacta medida da sua satisfação (artº 644 do Código Civil).    

                Esta previsão mostra que, apesar da existência de uma obrigação do fiador perante o credor, o cumprimento da obrigação pelo fiador não é equiparado ao cumprimento pelo devedor solidário, dado que não se lhe reconhece um simples direito de regresso, mas antes implica, por via da sub-rogação legal, uma verdadeira transmissão do crédito para o fiador, com todos os seus acessórios e garantias (artº 582, ex-vi, artºs 594 e 593 do Código Civil).

                Tal como surge regulada no nosso direito, a sub-rogação é uma forma de transmissão de créditos que opera a favor de terceiro que cumpre a obrigação do devedor ou com cujos meios a obrigação é cumprida pelo próprio devedor. A pessoa que é colocada na posição do primeiro credor – ou seja o segundo credor, a favor de quem opera a transmissão, diz-se sub-rogada.

Os exactos efeitos da sub-rogação recortam-se com nitidez se a contrastarmos, por exemplo, com o direito de regresso.

Na sub-rogação legal verifica-se, uma sucessão, uma transmissão do crédito – que mantém a sua identidade e os seus acessórios, apesar da modificação subjectiva operada: o credor sub-rogado continua o direito de crédito anterior, no todo ou em parte, consoante a sub-rogação seja total ou parcial. Já o direito de regresso, por exemplo, no caso paradigmático nas obrigações solidárias, é um direito novo, que nasce ou se constitui na esfera do solvens, em consequência do cumprimento de uma obrigação: é um novo direito de crédito a que corresponde também um novo dever de prestar.

É claro que esta diferença entre uma e outra figura se projecta inevitavelmente no seu regime. Se o caso for de transmissão da obrigação, o novo credor não poderá exigir do devedor a realização da prestação devida em termos diferentes dos que podia fazer o credor anterior; tratando-se, porém, de direito de regresso, o conteúdo da obrigação extinta ou as suas garantias e acessórios já não é tão determinante: o novo direito tem um regime novo, ainda que sejam patentes algumas semelhanças face ao conteúdo do direito extinto.

A nossa lei civil fundamental regula a sub-rogação em sede de transmissão das obrigações, ao lado da cessão de créditos e da assunção de dívida (artº 589 do Código Civil). A doutrina nota, una voce, que a sub-rogação se traduz na substituição do credor na titularidade do direito por outrem, que realizou a prestação devida pelo devedor ou que forneceu a este os meios necessários para o efeito.

Em qualquer das modalidades reguladas de sub-rogação – pelo credor, pelo devedor ou legal – a satisfação dada ao direito do credor não extingue o direito, que se transmite para um novo titular, na medida exacta dessa satisfação (artº 593 nº 1, 594 e 582 do Código Civil).

No tocante à sub-rogação voluntária, credor sub-rogado é nitidamente um terceiro que realiza a prestação devida (artºs 589 e 590 do Código Civil). Já no tocante à sub-rogação legal, a conclusão, no tocante à solidariedade passiva, não é isenta de dúvidas, face à dificuldade em definir o directo interesse na satisfação do crédito, de que a lei faz depender a admissibilidade da sub-rogação (artº 592 nº 1, in fine, do Código Civil)[10]. Seja como for, a par deste caso, a lei admite a sub-rogação legal a favor do terceiro que tenha garantido o cumprimento (artº 592 nº 1, 1ª parte, do Código Civil).

O modo como o Código Civil constrói a sub-rogação legal, permite distingui-la do direito de regresso. Ao contrário do credor sub-rogado, que antes da satisfação do direito do credor era terceiro, alheio ao vínculo obrigacional, o titular do direito de regresso é um devedor com outros, o seu direito nasce, ex novo, com a extinção da obrigação a que também ele estava vinculado. No exemplo característico da solidariedade passiva, o direito de regresso configura-se como um direito à restituição ou reintegração face a outros co-obrigados, por parte do devedor que cumpriu mais do que lhe competia, no plano das relações internas (artº 524 do Código Civil). Mas esta conclusão só é exacta no tocante à solidariedade passiva própria, i.e., aos casos em que todos os devedores solidários assumem definitivamente um quota-parte do débito comum e em que, portanto, o co-devedor que satisfez a totalidade da prestação pode repercutir nos restantes uma parcela da prestação que satisfez ao credor. Já não assim nos casos de solidariedade imprópria ou imperfeita, em que os as relações internas dos vários co-devedores se baseiam numa disjunção ou no escalonamento ou na hierarquização sucessiva das diversas obrigações, em que incumbe a um dos devedores, em primeira linha, realizar ao credor a totalidade da prestação devida, podendo, porém, num segundo momento, exigir a totalidade daquilo que prestou de um outro devedor, que é considerado devedor principal ou definitivo. Nestas situações, a satisfação do interesse do credor pelo devedor de primeiro grau não lhe confere qualquer direito de regresso sobre os co-devedores de segundo grau; pelo contrário, nos casos em que o credor obtém a prestação do devedor de segundo grau, este – porque só responde transitoriamente, por uma espécie de prestação de adiantamento - fica investido num direito de reembolso de tudo aquilo que prestou sobre o devedor principal e definitivo da obrigação.

À parte a constelação de casos típicos de solidariedade passiva própria – em que o direito de reembolso do devedor que cumpriu é nitidamente um direito de regresso – e do cumprimento da obrigação por terceiro, não vinculado perante o credor, ou pelo devedor subsidiário e mero garante pessoal do cumprimento – em que o direito de reembolso é actuado por via da sub-rogação – é muita vezes particularmente espinhosa a exacta qualificação do instrumento jurídico adequado para o devedor que cumpriu se fazer reembolsar daquilo que satisfez ao credor.

De outro aspecto, a amplitude com que a lei define os pressupostos da sub-rogação legal – interesse directo no cumprimento; garantia do cumprimento – tem levado a jurisprudência, fora dos casos de solidariedade própria passiva e na ausência de uma previsão específica de um direito de regresso, e de modo a evitar um benefício injustificado do lesante, a indicar a sub-rogação como meio jurídico adequado para o devedor que cumpriu, mas que não deva suportar definitivamente o sacrifício patrimonial do cumprimento, seja reembolsado, do devedor que, em última extremidade deve suportar a realização da prestação, do que satisfez ao credor[11]. Não se encontra melhor exemplo do que o Acórdão do Plenário do STJ nº 5/97, de 14 de Janeiro de 1997 – DR, I Série, de 23 de Março de 1997 – de harmonia com o qual o Estado tem o direito de ser reembolsado, por via se sub-rogação legal, do que despendeu com vencimentos a um seu funcionário, ausente do serviço e impossibilitado da prestação da contrapartida laboral, por doença resultante de acidente de viação e simultaneamente de serviço, causado por culpa de terceiro.

A sub-rogação, sendo uma forma de transmissão da obrigação, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito, ainda que limitado nos termos do cumprimento, que pertencia ao credor primitivo, e envolve um benefício concedido, designadamente pela lei, a quem, sendo terceiro, cumpre, por ter interesse na satisfação do crédito.

Na espécie do recurso, não ficou demonstrado – nem foi sequer alegado pelo autor – que aquele tenha cumprido, ele mesmo, a obrigação que vincula a apelante, mas apenas que o recorrido entregou à apelante dinheiro para pagamento das prestações relativas ao empréstimo contraído pela última junto do Banco … Logo, tem-se por certo que o recorrido, apesar da obrigação que o vincula relativamente ao banco mutuante, não ficou sub-rogado – ainda que só parcialmente – nos direitos do último.

Prevenindo esta consequência, com fundamento na homologia – que lhe parece relativamente evidente - dos casos em que o terceiro cumpre directamente perante o credor a obrigação do devedor e aquela, como a dos autos, em que o terceiro – o autor – entrega ao devedor – a ré - os meios de cumprimento da obrigação deste devedor perante o credor – o Banco … – conclui pela aplicação analógica, ao caso, da norma reguladora da sub-rogação do fiador.

Mas não temos esta argumentação nem a conclusão que dela extrai a sentença impugnada por exactas.

De forma deliberadamente simplificadora pode dizer-se que a lacuna pressupõe uma incompletude do ordenamento jurídico decorre da inexistência de uma regra para regular um caso juridicamente relevante. Mais secamente: existe uma lacuna quando há caso mas não há regra. Só existe, portanto, lacuna quando de nenhuma fonte possa ser inferida uma regra jurídica para regular um caso (artº 10 do Código Civil). A lacuna é integrada, em primeiro lugar, pelo critério da analogia jurídica, assente na identidade de razões da regulamentação legal do caso previsto e do caso omisso (artº 10 nº 2 do Código Civil).

Ora, a lei disponibiliza uma regra para os casos em que o devedor cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro. Trata-se, aliás, da terceira e última modalidade de sub-rogação voluntária objecto de regulação, em que quem cumpre não é o terceiro, mas o próprio devedor, embora com dinheiro ou outra fungível que lhe foi emprestada por aquele terceiro (artº 591 nº 1 do Código Civil). Exige-se, porém, que tanto a declaração expressa de sub-rogação como a declaração de que, designadamente, o dinheiro se destina ao cumprimento da obrigação, conste de documento (artº 591 nº 2 do Código Civil).

Como quer que seja desde que a lei regula o caso de o devedor cumprir, ele mesmo, a obrigação, mas com dinheiro ou coisa fungível, que lhe foi facultada por terceiro, tem-se por certo que não há qualquer lacuna nem, logicamente, lugar a qualquer actividade integrativa.

Em qualquer caso – razão que se tem por absolutamente decisiva – o caso do recurso nunca seria de sub-rogação, ainda que por via da integração analógica da regra disposta na lei para a sub-rogação do fiador ao credor do afiançado.

A sub-rogação exige, sempre, como conditio sine qua non, o cumprimento, quer este proceda de terceiro ou do devedor com meios disponibilizados por terceiro. Para que se verifique a transmissão do crédito do credor é sempre necessário que os direitos deste sejam, no todo ou em parte, objecto de satisfação. Precisamente porque a sub-rogação pressupõe o cumprimento, ela não tem lugar em relação a prestações futuras[12].

No caso, porém, a factualidade apurada se evidencia que o recorrido entregou à recorrente dinheiro para pagamento das prestações do mútuo bancário, não mostra – nem um tal facto foi sequer objecto de alegação pelo apelado – que a recorrente tenha cumprido, com aquele dinheiro ou com outro, a obrigação de restituição do capital mutuado a que, por força do contrato de mútuo concluído pelo Banco …, se vinculou relativamente a esta. E desde que não está demonstrado – por não ter sido sequer objecto de oportuna alegação - a satisfação do direito do credor, é claro que não há lugar a sub-rogação.

Estas considerações são bastantes para que se conclua que a sentença apelada não é juridicamente conforme, dado que os factos apurados são insuficientes para conduzir à aplicação de uma qualquer norma jurídica, directamente ou por via de integração analógica, cuja previsão garanta ao apelado a procedência – ainda que meramente parcial – da acção.

Importa, pois, dar provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e absolver a recorrente também da parte do pedido em que foi condenada.

As custas do recurso serão satisfeitas pelo sucumbente: o apelado (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC). Dada a simplicidade do tratamento processual do objecto do recurso, justifica-se que a respectiva taxa de justiça seja fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2 do RCP e 8 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença impugnada e absolve-se a recorrente, M…, do pedido.

Custas do recurso, pelo recorrido, com a taxa de justiça fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP.

                                                                                                              13.09.24

                                                                                                              Henrique Antunes - Relator

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa

***


[1] Acs. do STJ de 17.01.95, BMJ nº 433, pág. 353 e da RL de 24.06.97, BMJ nº 468, pág. 464.
[2] Acs. do STJ de 14.02.04 e de 14.05.09, www.dgsi.pt.
[3] João Redinha, Contrato de Mútuo, Direito das Obrigações, 3º volume, sob a coordenação de Menezes Cordeiro, AAFDL, 1991, págs. 187 a 190.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 762.
[5] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 527 e Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca, Almeida Coimbra, pág. 156, Vaz Serra, RLJ, Ano 93, pág. 65 e José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 497 e 498. A figura dos contratos reais é um efeito da inércia, um resquício da tradição romanista que parece não desempenhar hoje, designadamente quanto ao mútuo, qualquer função útil, i.e., não corresponde a qualquer interesse relevante, específico daquele tipo negocial. Neste sentido, Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, 1970, pág. 11 a 13. Note-se, por último, que nada impede que o mútuo seja efectuado em moeda escritural, e não de moeda legal – notas, moedas. É o que, em regra, ocorre, por exemplo, com o mútuo (mercantil) bancário em que, como é da experiência comum, o banco só raramente entrega dinheiro ao cliente – entrega material – limitando-se a creditar-lhe a soma mutuada na respectiva conta bancária – entrega electrónica ou simbólica.
[6] Cfr., sobre o problema de saber se a fiança pode ser prestada por negócio unilateral ou se o deve ser por contrato, cfr., Manuel Januário da Costa Gomes, A Estrutura Negocial da Fiança e Jurisprudência Recente, Estudos de Direito das Garantias, vol I., Almedina, Coimbra, 2004 págs. 48 a 107, M. Henrique Mesquita, Parecer, CJ, XI, IV, pág. 25 e Vaz Serra, Fiança e Figuras Análogas, BMJ nº 71 (Separata), Lisboa, 1957, págs. 11 e ss.
[7] A exigência de forma vale, no entanto, apenas para a declaração de vontade do fiador; a do credor não reclama qualquer forma especial. Cfr. Acs. da RC de 28.02.89 e de 05.07.89 e da RL de 01.10.92, CJ, XIV, II, pág. 45 e IV, pág. 50 e XVII, II, pág. 163, respectivamente.
[8] Sobre a determinabilidade do objecto na fiança omnibus, cfr. o Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 4/01, DR, I Série, A, nº 57 de 08.03.01 e Manual Januário da Costa Gomes, O Mandamento da Determinabilidade na Fiança Omnibus e O AUJ nº 4/2001, in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol. II, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 49 e ss. Evaristo Mendes, Fiança Geral, RDES XXXVII (1995), pág. 137 e António Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana - Fiança de Conteúdo Indeterminável, CJ, XVII, III, pág. 61.
[9] Esta solidariedade é, porém, imperfeita, porque a acessoriedade impede a aplicação do regime da solidariedade em toda a sua extensão, particularmente nas relações entre fiador e devedor afiançado.
[10] Cfr. Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 895 a 903.
[11] Ac. do STJ de 05.11.09, www.dgsi.pt.
[12] Assento do STJ de 9 de Novembro de 1977, BMJ nº 271, pág. 100.