Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/06.1TAMIR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: PROVA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
CRIME DE OFENSA À MEMÓRIA DE PESSOA FALECIDA
Data do Acordão: 03/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 348º CC,10º,14º ,180º,185º CP, 124º,129º CPP
Sumário: 1. Constitui matéria de facto apurar se aconteceu determinada acção ou comportamento humano, ou ocorrência da vida dotada de significação nas relações em sociedade. É já questão de direito determinar o significado ou relevância dessa realidade para efeito da aplicação da lei – estabelecer se determinada realidade se enquadra num conceito definido pelo legislador.
2. Os meios de prova (entre eles a prova testemunhal e por declarações) recaem ou incidem sobre a ocorrência de factos, actos das pessoas, acontecimentos da natureza ou da vida em sociedade. Não sobre a relevância de tais factos para a lei, ou sobre se os factos praticados preenchem os pressupostos ou os requisitos legais do crime. A prova incide sobre factos e não sobre matéria de direito.
3. Em vez de opiniões os testemunhos devem incidir sobre factos / actos concretos.
4. A tutela estabelecida para o crime de ofensa à memória de pessoa falecida não coincide totalmente com a protecção da honra estabelecida pelo art. 180º. Se assim fosse carecia de sentido a criação de um novo tipo. Nem faria sentido proteger a honra da pessoa, após a sua morte, da mesma forma que em vida.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
A assistente, E..., recorre da sentença em que o tribunal recorrido decidiu:
- Julgar improcedente a acusação (particular, deduzida pela assistente) e, em consequência, absolver o arguido M..., identificado nos autos, da prática, em autoria material, de um crime de ofensa à memória de pessoa falecida, previsto e punido pelos artigo 185º do Código Penal; e

- Julgar o pedido cível totalmente procedente e, em consequência, absolver o arguido da demanda cível.

- Condenar a assistente no pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 10 UC, acrescida de 1%, a que alude o artigo 13º, n.º 3, do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro.

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A motivação do recurso termina com as seguintes CONCLUSÕES (2ª minuta, apresentada após convite de aperfeiçoamento, no tribunal recorrido):
1. A matéria de facto dada como não provada, concretamente os pontos 7 e 8 da douta sentença, foi incorrectamente julgada
2. Efectivamente, o próprio depoimento do Arguido com as suas contradições e mentiras e o depoimento das testemunhas supra referenciadas que coerente e convictamente desmentiram a essência das declarações do Arguido eviden­ciando a gravidade da sua conduta, inexoravelmente deveriam ter conduzido à consideração como provada da matéria dada como não provada pelo douto Tri­bunal a quo.
3. Consequentemente, deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que,
4. Ao dar como provada a referida factualidade, considere preenchidos integral­mente os elementos do tipo legal do crime de «ofensa à memória de pessoa falecida» e
5. Consequentemente, condene o arguido pela prática do referido crime de ofensa à memória de pessoa falecida, p. e p. no artigo 185º do Código Penal,
6. E, ademais, conheça e defira integralmente o pedido de indemnização cível deduzido pela assistente nos exactos termos em que o mesmo foi peticionado.
7. Ainda que assim não se entenda, sempre deverá ser revogada a sentença recor­rida na parte referente à condenação da Assistente ora recorrente em custas judiciais,
8. Reconhecendo o manifesto lapso na fixação das mesmas — por apenas haver decaimento no pedido que foi formulado e não ausência de pedido conforme, certamente por lapso, foi referido na douta sentença recorrida,
9. Por aplicação combinada dos artigos 523 do Código de Processo Penal, 446 nº 2 in fine do Código de Processo Civil e 5 n.º 3 e 13 n.º 2, ambos do Código das Cus­tas Judiciais,
10. Aplicação combinada essa que, necessariamente, levará à revogação do ponto 4 da Decisão contida na douta sentença recorrida que, ao fixar em 8 UC’s a taxa de justiça do pedido cível não valorou o valor do decaimento do respectivo pedido de indemnização cível,
11. Valor esse que era o que deveria ter sido levado em consideração para efeitos de fixação daquela taxa de justiça.
Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se o arguido pela prática do crime de ofensa à memória de pessoa falecida previsto e punido pelo artigo 185º do código penal bem como no pagamento da indemnização cível peticionada; ou, caso assim não se entenda, sempre revogar a sentença recorrida na parte em que condena a assistente ora recorrente em custas judiciais pelo montante em que o fez.
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Respondeu o MºPº concluindo pela improcedência do recurso quanto à absolvição do crime e do pedido cível com fundamento na responsabilidade cível conexa com a criminal e pela procedência do recurso quanto à condenação em custas, devendo nessa parte ser substituída pela condenação da assistente em custas do pedido cível a serem fixadas nos termos do art. 13º do CCJ e Tabela Anexa, 306º n.º1 do CPC e 523º do CPP
Respondeu o arguido sustentando a improcedência
Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual manifesta a sua concordância com a resposta apresentada pelo MºPº em 1ª instância.
Após conferência, cumpre decidir.

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II. Fundamentação

1. Nos termos do art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constituindo entendimento uniforme que as conclusões definem o objecto do recurso cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173, fazendo eco da jurisprudência uniforme daquele alto tribunal.
As questões suscitadas no presente recurso são de facto - impugnação dos pontos 7 e 8 da descrição efectuada na sentença - e de direito – verificação dos elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime da acusação.
Para proceder à sua apreciação, vejamos a decisão da matéria de facto do tribunal recorrido.
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2. O tribunal recorrido procedeu à apreciação da matéria de facto nos seguintes termos:
A) Factos provados:
1. H... é unanimemente considerado e reconhecido como personalidade de grande intervenção pública e social, nomeadamente:
- na Associação de Idosos …;
- no Grupo Folclórico da Casa do Povo;
- na Filarmónica e
- na imprensa local (tendo sido fundador e director do quinzenário …; pessoa estimada em todo o concelho de X... e concelhos limítrofes, empreendedor conhecido em toda a região, que fez da sua vida um exemplo de dedicação e entrega à causa da sua terra e das suas gentes.
2. Na reunião ordinária da Câmara Municipal de X..., de 13 de Setembro de 2005, foi apresentada uma proposta na Câmara Municipal de X..., no sentido de ser alterado o nome da Rua Nova do Salão, em X..., passando a mesma a ser designada “Rua H…”, em homenagem a este.
3. O arguido concordou com a proposta aludida em 2. e votou positivamente a mesma, tendo sido já em 2003 o arguido quem na presidência municipal de X... havia deliberado perpetuar o nome de H... no rol da toponímia local.
4. Neste seguimento, foi comunicado à família de H... os procedimentos para a concretização da referida homenagem a 5 de Outubro de 2005 que passavam, entre outros, pelo assinalar do evento através do pronunciamento de algumas palavras e do descerramento das lápides toponímicas na referida rua, assim se assinalando a sua nova designação.
5. O arguido esteve presente na cerimónia referida em 4.
6. A 7 de Outubro, apenas dois dias após o descerramento das referidas lápides toponímicas, a família H... constata que, das duas placas colocadas na antiga Rua Nova do …, uma havia sido completamente vandalizada e a outra retirada por funcionários da Câmara Municipal de X..., substituída por outra de metal que repunha o anterior nome da rua – esta última situação ocorreu por determinação do arguido, que mandando retirar as uma das placas toponímicas, repôs a rua em questão com a sua anterior denominação.

B) Factos não provados
7. O arguido, apercebendo-se de eventuais repercussões que a alteração de nome da rua poderia ter no resultado das eleições autárquicas em que se recandidatava ao cargo de Presidente da Câmara Municipal de X..., não hesitou em desrespeitar a deliberação do próprio órgão que integrava e que presidia.
8. Com a conduta referida em 2., 3., 5., 6. e 7. o arguido ultrajou e desrespeitou o bom nome e a memória do cidadão referido em 1.

D) Motivação
O Tribunal formou a sua convicção, no que concerne aos factos constantes da acusação, com base nas declarações do arguido e das testemunhas ouvidas em audiência, assim como nos documentos juntos aos autos.
O arguido assumiu os factos que agora estão dados como provados. Quanto à sua motivação para agir como fez, justificou-se dizendo que pretendeu, com o retirar da placa, evitar que esta fosse vandalizada, assim como a outra, atento o desagrado popular.
Foram ouvidas as seguintes testemunhas: N..., B..., A..., C..., D..., F..., G..., O..., I..., J..., L.... Todas as testemunhas nos pareceram credíveis – isto no que toca aos factos. Ao longo do julgamento as testemunhas, a instâncias das partes, foram emitindo, além dos factos, um extenso rol de opiniões que, como é evidente, apenas elucidaram o Tribunal na parte em que a opinião deve ser valorada – no caso, a opinião com que ficaram de H... após o ocorrido, que, unanimemente, foi dito permanecer a mesma que existia antes da prática dos factos. A opinião das testemunhas ajudou a concluir da forma como fizemos em 8., isto é, dando como não provado que com a conduta referida em 2., 3., 5., 6. e 7. o arguido ultrajou e desrespeitou o bom nome e a memória de H... – sendo certo que tal falta de idoneidade para produzir este efeito já resultaria da conduta em si mesma considerada, tendo em conta apenas o que foi dado como provado.
Saliente-se ainda, quanto ao dado por não provado em 7., que não foi possível apurar com rigor a motivação do arguido para o retirar da placa. Sabendo-se, como foi possível retirar quer das declarações do arguido, quer das testemunhas, que houve uma vandalização de uma das placas, a versão de que a retirada da placa que restou se deu para evitar que também fosse vandalizada, ganha algum sentido. Assim, na dúvida, deu-se o constante da acusação como não provado.
Cumpre esclarecer que, das testemunhas ouvidas, todas as que conheceram ou ouviram falar de H... foram unânimes em salientar a grandeza do mesmo enquanto cidadão de X..., conforme se deu como provado em 1..
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2. Recurso da matéria de facto
Alega a recorrente que a matéria de facto dada como não provada - pontos 7 e 8 da descrição efectuada na sentença recorrida - foi incorrectamente julgada, devendo ser dada como provada.
Está em causa apurar se o arguido, com a conduta descrita na matéria provada (verificando que uma das duas placas toponímicas de uma rua com o nome de H... havia sido vandalizada, o arguido, na qualidade de Presidente da Câmara Municipal de X..., mandou substituir a placa restante por outra de metal que repunha o anterior nome da rua) ultrajou e desrespeitou o bom-nome e a memória de H... – facto descrito sob o n.º8.
Bem como se o arguido praticou os mesmos factos “apercebendo-se de eventuais repercussões que a alteração de nome da rua poderia ter no resultado das eleições autárquicas em que se recandidatava ao cargo de Presidente da Câmara Municipal de X..., não hesitou em desrespeitar a deliberação do próprio órgão que integrava e que presidia” – facto descrito sob o n.º7.
Sobre o facto descrito sob o n.º7 a recorrente não alega que algum dos meios de prova que invoca (depoimentos prestados em audiência) se lhe tenha referido ou que o tenha afirmado. Pelo contrário, as afirmações que extrai dos depoimentos prestados e que invoca na motivação do recurso são relativas, exclusivamente, ao facto n.º8 – saber se a retirada da placa toponímica da rua ofendeu o bom-nome ou a memória da pessoa cujo nome lhe fora dado. Ficando assim a matéria descrita sob o n.º7 desprovida de qualquer suporte probatório.
Relativamente à matéria descrita sob o nº 8, partindo da matéria provada (substituição da placa toponímica da rua com o nome da pessoa falecida) a recorrente conclui, com base nas declarações das testemunhas ouvidas em audiência, que o aludido acto constitui ultraje e desrespeitou ao bom-nome e memória da pessoa.
Nos termos do art. 185º do C.P., pratica o crime em questão “quem, por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida”.
Assim a matéria que se pretende ver dada como provada (ultrajou e desrespeitou o bom-nome e a memória de) reproduz o enunciado ou o texto da norma legal que define o tipo de crime, ou seja, reproduz a própria norma jurídica a aplicar.
Daí que dando tal matéria como “provada”, provado ficaria o crime, sem necessidade de maior indagação dos respectivos elementos objectivos, descritos no tipo.
De onde resulta que, com base na prova testemunhal, a recorrente pretende demonstrar uma questão de direito – apurar se o facto (provado) imputado ao arguido preenche os elementos ou pressupostos do tipo legal de crime.
Nessa perspectiva, a fundamentação da sentença recorrida refere, além do mais que: “a falta de idoneidade para produzir este efeito já resultaria da conduta em si mesma considerada, tendo em conta apenas o que foi dado como provado”.
Colocando assim a questão em termos de aptidão dos testemunhos para demonstrar, sem mais, o nexo de causalidade adequada entre a conduta (provada) do arguido e o resultado típico do crime.
E, na verdade, a verificação do nexo de causalidade adequada envolve aspectos com relevância ao nível da matéria de facto e também aspectos com relevo ao nível da matéria de direito. Como decidiu o AC. STJ de 11.11.2003 (acedido em htt://www.dgsi.pt/, documento n.º SJ200311110030211) São dois os momentos a considerar segundo a teoria da causalidade adequada – a existência (a sua fixação) de um facto concreto condicionante do dano e revelar-se ele, em abstracto e em geral apropriado para provocar o dano; ali, matéria de facto, mas aqui, questão de direito.
Numa definição clássica, factos são as ocorrências da vida real, fenómenos da natureza ou manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos do homem e factos jurídicos, os factos materiais vistos à luz das normas e critérios do direito — Cfr. Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, III vol., p. 209; Antunes Varela Manual de Processo Civil, p. 391 e segs.
Há matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução há necessidade de recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate de uma simples palavra da lei; há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, por averiguação de factos cuja existência ou não existência não depende de nenhuma ordem jurídica. Por outras palavras: deve afirmar-se que é direito tudo aquilo – todos os pontos – cuja averiguação dependa do entendimento a dar a normas legais seja qual for a espécie destas. Sempre que se discuta ou possa discutir-se a observância ou violação de uma disposição legal, estaremos perante matéria de direito; no caso contrário diante de matéria de facto — Cfr. Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, 2ª ed., vol. II, p. 38-39.
Constitui assim matéria de facto apurar se aconteceu determinada acção ou comportamento humano, ou ocorrência da vida dotada de significação nas relações em sociedade. É já questão de direito determinar o significado ou relevância dessa realidade para efeito da aplicação da lei – estabelecer se determinada realidade se enquadra num conceito definido pelo legislador.
Ora a prova apenas pode incidir sobre a verificação dos factos/actos humanos ou ocorrências da vida natural ou social. Já não sobre a perspectiva (de direito) de apurar se aquele facto apurado é, em abstracto e em termos de juízo de causalidade adequada, apropriado para provocar o dano – no caso dos autos a ofensa grave á memória da pessoa falecida.
Nos termos do art. 124º, n.º1 do CPP, constituem objecto de prova os factos juridicamente relevantes.
Ou seja, os meios de prova (entre eles a prova testemunhal e por declarações) recaem ou incidem sobre a ocorrência de factos, actos das pessoas, acontecimentos da natureza ou da vida em sociedade. Não sobre a relevância de tais factos para a lei, ou sobre se os factos praticados preenchem os pressupostos ou os requisitos legais do crime. A prova incide sobre factos e não sobre matéria de direito (salvo o caso excepcional do direito estrangeiro - art. 348º do C. Civil) que o intérprete deve buscar na lei e sua interpretação de acordo com os cânones legais.

No caso dos autos, a recorrente, para fundamentar a sua pretensão invoca (síntese na conclusão n.º2) “o depoimento do Arguido com as suas contradições e mentiras e o depoimento das testemunhas supra referenciadas que coerente e convictamente desmentiram a essência das declarações do Arguido eviden­ciando a gravidade da sua conduta”.
Não especifica porém quais as alegadas “Contradições e mentiras do arguido”. Muito menos as justifica ou identifica meios de prova susceptíveis de as comprovar.
Ficando assim os depoimentos das testemunhas que refere terem desmentido o arguido, a saber: N..., P..., C..., Q..., F... R..., O... S... e T....
Tais afirmações são, em síntese, pela ordem referida, respectivamente:
“aquilo que se passou, se fosse com o nome do pai dele ficaria ofendido”;
“os factos ocorridos (tira-placa-põe-placa) afectam a imagem e honorabilidade do Sr. H...”;
“ficou com a clara sensação que a sua memória foi desrespeitada, a memória de H... foi usada pelo arguido”;
ofendeu gravemente a memória do Sr. H... até porque foi motivo de chacota e conversa nos cafés e outros locais;
“ao fazer o que fez (o arguido) brincou com a memória do Sr. H... (..) é o que eu acho e que muitas pessoas acham que se decidiu fazer a homenagem deveria levá-la até ao fim”;
“o que aconteceu belisca a memória do Sr. H.... Foi uma desconsideração”;
“tudo o que aconteceu ofendeu a memória do falecido”.

Ora a decisão recorrida ponderou tais depoimentos, dizendo que lhe mereceram crédito “no que toca aos factos” – ou seja, quanto à objectividade de o arguido ter mandado retirar a placa. Mas já não os teve como relevantes na parte em que “a instâncias das partes, foram emitindo, além dos factos, um extenso rol de opiniões que, como é evidente, apenas elucidaram o Tribunal na parte em que a opinião deve ser valorada – no caso, a opinião com que ficaram de H... após o ocorrido, que, unanimemente, foi dito permanecer a mesma que existia antes da prática dos factos”.
Juízo valorativo objectivo, cuja racionalidade a recorrente não tenta rebater ou demonstrar a respectiva incorrecção.
Pelo contrário, face ao juízo valorativo subjacente à decisão passa-lhe ao lado, sustentando que com base nos depoimentos, cujo iter valorativo não é questionado, o tribunal devia dar como provado a definição legal do tipo de crime.
Na verdade as afirmações reproduzidas constituem juízos de valor, opiniões, conclusões das testemunhas, estabelecidas a partir do facto relativo à retirada da placa toponímica da rua. Mas das expressões reproduzidas retira-se precisamente aquilo que foi ponderado pelo tribunal recorrido: as testemunhas não depõem sobre a verificação de factos ou actos do arguido. Opinam ou formulam juízos de valor sobre o relevo que elas próprias atribuem ao facto – inquestionado - de o arguido, depois de uma das placas ter sido vandalizada, ter mandado retirar a outra. Quando em vez de opiniões os testemunhos devem incidir sobre factos / actos concretos. De preferência de que a testemunha tenha conhecimento directo – o depoimento indirecto apenas é permitido em termos muito restritivos – cfr. art. 129º do CPP.
Não permitindo assim, em conclusão, os meios de prova convocados estabelecer como provada a matéria – conclusiva - em questão.


4. Apreciação de direito
A improcedência do recurso quanto a determinado facto constitutivo do crime arrasta, como efeito lógico necessário, a improcedência do recurso em matéria de direito que tenha como pressuposto a alteração, desatendida, da decisão fáctica.
No entanto no caso em apreciação, como a impugnação da recorrente, como já se viu, tem repercussões em matéria de direito, importa completar a apreciação do recurso nessa perspectiva.
O arguido vem acusado da prática de um crime de ofensa à memória de pessoa falecida, p. e p. pelo artigo 185º do Código Penal. Preceito legal que postula: “quem, por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
Por outro lado toda a responsabilidade criminal exige ainda, como já se antecipou – art. 10º, n.º1 do C.P. – o nexo de causalidade adequada ou nexo de imputação objectivo entre a acção (acto praticado pelo arguido) e o resultado típico do crime. Além do nexo de imputação subjectivo da acção à vontade do agente, numa das modalidades do dolo previstas no art. 14º do CP – directo, necessário e eventual.
O crime em apreço encontra-se previsto no capítulo dos crimes contra a honra.
No entanto a tutela estabelecida por este tipo de crime não coincide totalmente com a protecção da honra estabelecida pelo art. 180º. Aliás se assim fosse carecia de sentido a criação de um novo tipo. Nem faria sentido proteger a honra da pessoa, após a sua morte, da mesma forma que em vida.
O que está em causa no tipo de crime de ofensa à memória de pessoa falecida é o respeito comunitário devido aos mortos – cfr. Figueiredo Dias, Acta n.º 26 da Comissão Revisora do C.P., citado por Oliveira Mendes, O Direito à Honra e Sua Tutela Penal, p. 100
O crime de ofensa à memória de pessoa falecida constitui um novo substrato valorativo independente da honra do defunto ou daqueles que lhe sobrevivem, apesar de ligada àquela e nela ainda radicada. Está para além da honra e consideração devidas a toda e qualquer pessoa, criando “uma nova realidade axiologicamente relevante que se liga ao defunto mas que vale por si, muito embora necessariamente conexionda com a personalidade daquele que, ora, já só pode ser memória” – cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, em anotação ao art. 185º.
O bem jurídico honra é um direito que encarna na pessoa e só esta – enquanto pessoa viva – pode ser detentora desse particular valor de raiz imaterial.
Já a memória da pessoa falecida é aquele património moral ligado à existência da pessoa que permanece depois da sua morte. Nas palavras daquele Insigne Professor (cfr. ob. cit. p. 658) memória “é aquele pedaço de nós espiritualmente vinculante ligado á nossa existência e que é capaz de ser, depois da morte, ainda pertinente na definição do presente”. Ou “A memória que alguém construiu através de obras ou feitos, um património espiritual que os presentes consideram susceptível de os influenciar”.
Daqui resulta que a memória de pessoa falecida, tutelada pelo tipo de crime, radica na memória que permanece através da sua obra ou dos seus feitos, indissociavelmente ligados ao seu titular; e, embora formada no passado, tem que se repercutir com relevo no presente.
Por outro lado a tutela penal surge limitada logo ao nível do tipo objectivo de ilícito às ofensas “graves”.
Perante idêntica expressão o legislador espanhol acabou por excluí-la do texto legal, face ao reconhecimento, pela jurisprudência, da impossibilidade de encontrar na lei princípios de distinção úteis, vendo-se obrigada a recorrer ao “bom critério do legislador” – cfr. Oliveira Mendes, cit., p. 104.
Ofensa Grave é aquela que atinge o património espiritual passado da pessoa falecida na sua parte nuclear ou essencial da sua memória. Naquele pedaço que, em caso de ser atingido, estilhaçaria a própria ideia de memória que tem a potencialidade de se repercutir no presente – cfr. Faria Costa, ob. cit., p. 660.
Isto posto, revertendo ao caso em apreço, verifica-se que a atribuição do nome da pessoa falecida à rua constitui, naturalmente, o reconhecimento, pela entidade que lho atribuiu, de que se trata de pessoa digna de tal distinção.
No entanto a atribuição do nome à rua não constitui obra, legado, feito ou acção praticado ou deixado pela pessoa falecida. Nem algo que encarne na sua pessoa, no património moral por si construído e legado à sociedade – trata-se, de uma deliberação da Câmara Municipal. Pelo que o simples acto de mandar de retirar a placa não retira mérito ao legado ou à memória da pessoa porque em si não faz parte do seu legado.
Por outro lado, a actuação do arguido não constitui qualquer afirmação, tomada de posição, apreciação, juízo sobre o merecimento, relevo social, obra, reconhecimento, bom-nome, reputação. Não formulou sequer qualquer tipo de apreciação negativa sobre a pessoa falecida, sobre a sua personalidade o património moral legado aos vindouros, enfim sobre algo que tenha criado pela pessoa falecida e perpetue a sua memória.
Aliás a atribuição do nome á rua de um acto administrativo emanado de órgão competente, enquanto não for revogado permanece válido e vinculante, gozando dos meios de execução / impugnação das decisões administrativas. Se e enquanto não for alterada a atribuição do nome da rua permanece, independentemente da retirada de uma das placas que ali pode ser recolocada em qualquer altura, assim a entidade competente o entenda.
O arguido, no exercício das suas funções de Presidente da Câmara Municipal limitou-se a mandar tirar uma das placas toponímicas de uma rua, após vandalização de uma outra, num determinado contexto. Não afectando tal acto o núcleo da memória da pessoa falecida a que se fez referência.
Esta interpretação é ainda a única conforme à natureza e finalidade do direito penal de protecção, subsidiária, daquele núcleo restrito de bens jurídicos que constituem o mínimo ético essencial á vida comunitária. Onde vigora, como pressuposto da aplicação de uma pena, o «princípio» da dignidade penal ou da carência de tutela penal - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, 2004, p. 621 e Costa Andrade RPCC, 1992, p. 173 a 205.
Conclui-se assim pela ausência de nexo de causalidade da conduta do arguido para destruir o núcleo essencial do património do passado individual da pessoa falecida, pai da assistente, ou indissociavelmente a ele ligado, carente da tutela penal.
Do mesmo modo, no que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, verifica-se que existe um vazio total de matéria de facto passível de integrar o crime a este nível (aliás, já o havia em sede de acusação, o que foi salientado no despacho de recebimento da mesma e ainda em julgamento, como resulta da respectiva acta). Não revestindo as características necessárias ao preenchimento do crime de ofensa à memória de pessoa falecida, p. e p. pelo artigo 185º do Código Penal.
Impõe-se assim a improcedência do recurso em matéria penal.
Por identidade de razão se impõe a improcedência do recurso na parte relativa ao pedido de indemnização com base na responsabilidade civil conexa com a criminal, por assentar nos mesmos pressupostos, não verificados.
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5. Questiona ainda a recorrente a condenação em custas da decisão de 1ª instância.
A decisão recorrida condenou a assistente no pagamento das “custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) UC, acrescida de 1%, a que alude o artigo 13º, n.º 3, do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro”.
O crime imputado ao arguido é de natureza particular – art. 188º do CP. Daí que a assistente tenha deduzido acusação particular – não acompanhada, aliás, pelo MºPº.
Assim, tendo sido julgada improcedente a acusação por si deduzida, a assistente paga taxa de justiça, nos termos do art. 515º, n.º1, al. a) do CPP.
Pagando ainda paga encargos, nos termos do art. 518º do mesmo diploma.
Por sua vez a taxa de justiça aplicável varia entre 2 e 30 UC – art. 85º, n.º1, b) do CCJ.
Do mesmo modo – e para além da acção penal – tendo o pedido de indemnização civil enxertado na acção penal sido julgado improcedente, a assistente paga custas (em função do valor do pedido e decaimento), segundo as regras aplicáveis ao processo civil – art. 523º do CPP.
Assim tendo a decisão recorrida englobado tudo numa única condenação, com uma taxa de justiça elevada, deve ser corrigida.
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III. Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:
1. - Conceder parcial provimento ao recurso, alterando a decisão recorrida quanto a custas, nos seguintes termos:
- a assistente pagará custas da acção penal, fixando-se a taxa de justiça em 2,5 (duas e meia) UC a que acresce a taxa de 1% a que se refere o artigo 13º, n.º 3, do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro; ---
- pagará ainda custas do pedido de indemnização civil (decaimento na totalidade), segundo as regras aplicáveis ao processo civil, em função do valor do pedido.
2. - Negar provimento ao recurso em tudo o mais. ----
Custas (do recurso) pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.