Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
444/06.4TBCNT-Q.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 11/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º, 47º, 48º, 77º, 128º, 149º, 173º, 177º, 197º, 212º E 217º DO CIRE.
Sumário: I – O processo de insolvência é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março).

II - Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

III – No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.

IV - O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

V - Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente;

os créditos subordinados;

e os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE).

VI - Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de, independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE).

VII - Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados e diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE).

VIII - A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE).

IX - Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva, i.e., segundo a ordem da sua graduação, regra de decorre esta consequência: um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artº 173 do CIRE e 604 nº 1, 1ª parte, do Código Civil).

X - A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se na assembleia, convocada com essa finalidade, estiverem presentes credores cujos créditos constituam, ao menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, e obtiver mais de dois terços dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1 do CIRE).

XI - Este regime inculca que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transacção e, portanto, um verdadeiro contrato, nada impedindo, portanto, que inclua um ou mais terceiros – como no caso em que um terceiro assume uma obrigação perante uma das partes - ou que os credores concluam através dele um contrato a favor de terceiro (artº 443 nº 1 do Código Civil).

XII - Todavia, para que produza os efeitos jurídicos para que se mostra ordenado, o plano deve ser objecto de homologação judicial: embora a sentença homologatória limite o seu controlo à legalidade do plano - e não, note-se, ao seu mérito - aquele acto decisório do tribunal constitui uma verdadeira condição de eficácia do plano (artº 217 nº 1 do CIRE).

XIII - A assembleia de credores reúne e delibera sobre a aprovação do plano de insolvência antes do proferimento e do trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação dos créditos, portanto, antes de decididas as impugnações deduzidas contra a relação dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, com fundamento na inclusão ou exclusão indevida de créditos, na incorrecção dos respectivos valores os créditos reconhecidos ou da sua qualificação: tanto basta para que se tomem certas precauções.

XIV - O encerramento do processo de insolvência implica, entre outras coisas, a extinção do processo de verificação de créditos pendentes em que não tenha sido proferida a sentença de verificação e graduação correspondente (artº 233 nº 2 b) do CIRE).

XV - Decorre deste regime que, enquanto não transitar a decisão homologatória do plano de insolvência, não há lugar, por esse fundamento, à declaração de encerramento do processo de insolvência, nem qualquer razão que obste à decisão do processo de verificação e graduação de créditos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

F…, SA foi, por apresentação, declarada insolvente por sentença de 30 de Março de 2006.

                Na sequência de deliberação da assembleia de credores, o Administrador da Insolvência elaborou proposta de plano de insolvência, no qual concluiu pela viabilidade económica e financeira da insolvente e propôs, como meio de recuperação, a medida de reestruturação financeira, designadamente, no tocante às dívidas ao pessoal, a liquidação dos valores aprovados em 60 meses, com exclusão dos meses de Agosto e Dezembro de cada ano e inexigibilidade dos juros vencidos e vincendos, iniciando-se o pagamento um ano após a homologação.

                Os credores da insolvente deliberaram, na assembleia realizada no dia 15 de Dezembro de 2008, com os votos favoráveis dos credores presentes, totalizando 92,18% dos respectivos créditos, aprovar a proposta do plano de insolvência do Administrador da Insolvência, proposta que, por despacho de 16 de Janeiro de 2007, foi considerada aprovada, tendo o plano sido homologado por decisão de 15 de Março de 2007.

                É esta decisão que as credoras, A… e M… impugnam por via do recurso ordinário de apelação, no qual pedem - na alegação oferecida no dia 30 de Julho de 2008 – a sua revogação.

                As recorrentes extraíram da sua alegação as conclusões seguintes:

...

                Não foi oferecida resposta.

                O Relator providenciou pelo suprimento da deficiência da instrução do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

...

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente.

Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações das recorrentes, a questão concreta controversa, que constitui o objecto do recurso, resume-se à de saber se a decisão que homologou o plano de insolvência de F…, SA, deve ou não ser revogada – mais de cinco anos depois do seu proferimento.

De harmonia com a alegação das recorrentes, o fundamento da sua discordância relativamente à decisão recorrida, radica no seguinte: o facto de o plano de insolvência aprovado ter sido homologado antes da apreciação da impugnação que deduziram contra a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador e não acautelar os efeitos da eventual procedência dessa impugnação.

Como, no seu ver, a homologação do plano implica o encerramento do processo de insolvência e a extinção da instância dos processos de verificação de créditos pendentes, a sentença homologatória do plano ignorou os credores cujos créditos foram objecto de impugnação, dado que não acautelou o seu direito a verem reconhecidos e pagos, no âmbito do plano de insolvência, em igualdade com os demais credores, os seus créditos controvertidos.

A resolução do problema enunciado passa, portanto, pela verificação se, no caso, houve, realmente, violação, não negligenciável, de regras procedimentais ou de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, determinantes da recusa da sua homologação.

Aferição que, por sua vez vincula à enunciação dos princípios da igualdade dos credores e do fundamento de recusa oficiosa de homologação do plano de insolvência representada pela violação não negligenciável de norma da sua tramitação ou do seu conteúdo.

               

3.2. Princípio da igualdade dos credores.      

O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal.

Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC).

Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março).

Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

Na execução singular um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC).

No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.

O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns.

Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora ou acto equivalente de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora em relação aos demais credores comuns do executado[1].

Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores.

Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente è a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas.

No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito.

Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor[2].

Seja como for, à igualdade dos credores na admissão ao concurso não corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e, designadamente, dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.

Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; e os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE).

A esta tipologia de créditos sobre a insolvência corresponde, naturalmente, uma homótropa tríade de credores sobre a insolvência.

Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de, independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE).

Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados e diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE).

A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE).

É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que, por exemplo, o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que o proclama, de resto, logo admite que seja objecto de restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE).

Os credores da insolvência são tratados de forma igual – mas segundo a qualidade dos seus créditos.

Nestas condições, em vez de par conditio creditorium talvez se devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio creditorum.

Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva, i.e., segundo a ordem da sua graduação, regra de decorre esta consequência: um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artº 173 do CIRE e 604 nº 1, 1ª parte, do Código Civil).

Assim, mesmo que o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa seja insuficiente para satisfazer todos os créditos graduados, isso não obsta à satisfação daqueles que, segundo a sua graduação, puderem ser integralmente pagos (artº 174 nº 1 e 175 nº 1 do CIRE).

Apesar dessa insuficiência, não há qualquer pagamento proporcional de todos os créditos graduados, ou seja, não se realiza qualquer rateio entre eles.

O problema do rateio apenas se coloca no tocante ao pagamento dos créditos que gozem da mesma garantia e tenham sido graduados a par e, naturalmente, quanto aos créditos comuns, quando a massa insolvente se mostrar insuficiente para a respectiva satisfação integral (artº 176 do CIRE e 604 nº 1, 2ª parte, do Código Civil).

Quando isso suceda, o pagamento da pluralidade de créditos faz-se por rateio, segundo princípio da proporcionalidade, assegurando-se o princípio da igualdade entre os créditos da mesma espécie, ou melhor, distribuindo por todos os credores da mesma categoria, proporcionalmente, as respectivas perdas.

               

3.3. Recusa oficiosa da homologação do plano de insolvência com fundamento na violação não negligenciável de norma relativa ao respectivo procedimento ou conteúdo.

A finalidade única e última do processo de insolvência é a satisfação dos interesses dos credores.

Este objectivo pode, todavia, ser prosseguido por dois modos diferenciados: através da liquidação universal do património do devedor e a partilha ou a repartição do respectivo produto pelos credores, de acordo com o esquema supletivo disposto na lei; através da satisfação dos credores pela forma regulada num plano de insolvência aprovado pelos credores, que se baseie, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artºs 1 e 192 nº 1 do CIRE).

O plano de insolvência constitui, por isso, na lógica do CIRE um meio alternativo à liquidação universal dos bens do devedor, que decorre segundo o modelo supletivo traçado na lei.

Com o plano de insolvência procura-se dar ao problema da insolvência do devedor uma resposta diferente da pura e simples liquidação, universal e colectiva, do seu património, segundo o modelo supletivo desenhado no CIRE.

A letra da lei permite, sem esforço, identificar quatro modalidades de plano de insolvência: o plano de liquidação da massa insolvente; o plano de recuperação; o plano de transmissão da empresa; o plano misto (artº 195 nº 2 b) do CIRE)[3].

Todavia, seja qual for a modalidade de plano considerada, na fixação do seu conteúdo rege o princípio da liberdade e da autonomia dos credores, por força do qual estes gozam de liberdade latitudinária, mas não ilimitada, na conformação jurídica dos seus interesses (artº 195 nº 2, in fine, e 196 nº 1 do CIRE)[4].

Limite relevante dessa liberdade e autonomia é, porém, como já se fez notar, o representado pelo princípio da igualdade dos credores (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE)

                A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se na assembleia, convocada com essa finalidade, estiverem presentes credores cujos créditos constituam, ao menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, e obtiver mais de dois terços dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1 do CIRE).

                Este regime inculca que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transacção[5] e, portanto, um verdadeiro contrato, nada impedindo, portanto, que inclua um ou mais terceiros – como no caso em que um terceiro assume uma obrigação perante uma das partes - ou que os credores concluam através dele um contrato a favor de terceiro (artº 443 nº 1 do Código Civil).

A única especialidade, deveras notável, deste negócio processual conformador da decisão da causa consiste em não exigir, para que se tenha por validamente concluído, o consentimento de todos os intervenientes, sendo suficiente, o consentimento de uma simples maioria deles: não é, realmente, necessário para que o plano seja aprovado, a unanimidade de votos dos credores, incluindo, por exemplo, os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias no caso dos credores privilegiados[6] – basta, por um lado, que obtenha o voto favorável de mais de dois terços de todos os votos emitidos, trate-se de credores comuns, garantidos ou privilegiados e, por outro, que mais de metade dos votos correspondam a créditos não subordinados.

                Todavia, para que produza os efeitos jurídicos para que se mostra ordenado, o plano deve ser objecto de homologação judicial: embora a sentença homologatória limite o seu controlo à legalidade do plano - e não, note-se, ao seu mérito - aquele acto decisório do tribunal constitui uma verdadeira condição de eficácia do plano[7] (artº 217 nº 1 do CIRE).

                O juiz da insolvência está, portanto, vinculado ao dever de controlar a legalidade do plano de insolvência, devendo recusar, ex-offício, a sua homologação, designadamente, caso o seu exame o leve a concluir que se verificou uma violação, não negligenciável, de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo (artº 215 do CIRE).

Note-se que, quer se trate de normas de procedimento quer de normas de conteúdo, em causa estão sempre normas processuais, i.e., normas que definem uma consequência processual, ou, mais concretamente, aquelas cuja previsão desencadeia um efeito processual.

                À vista do plano aprovado, com a finalidade última de o homologar ou de recusar a sua homologação, o juiz deve, portanto, proceder a um duplo exame: exame do acto sob o ponto de vista do procedimento; exame sob o ponto de vista do seu conteúdo.

No primeiro caso, o exame terá por objecto as normas de tramitação, i.e., de normas que regulam a sequência de actos que constituem o processo relativo à apresentação e aprovação do plano; no segundo, esse objecto é constituído pela normas de conteúdo, i.e., pelas normas processuais que permitem determinar o conteúdo desse mesmo plano.

No exame do ponto de vista do procedimento, o magistrado procurará averiguar se o plano acatou as normais processuais integrantes do iter, marcado na lei, conducente à sua aprovação; no exame do conteúdo, o juiz indagará se o plano observou as normas que conformam a respectiva substância, designadamente, as que definem um conteúdo vinculado desse mesmo plano.

                Numa palavra: o juiz deve examinar se se verifica, quer no plano do procedimento relativo à aprovação do plano de insolvência, quer no plano atinente ao seu conteúdo, uma qualquer nulidade processual, i.e. se se praticou um acto que não é permitido ou foi omitido um acto imposto ou uma formalidade essencial (artº 201 do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Todavia, para recusar, oficiosamente, a homologação do plano não é suficiente a constatação de que houve violação tanto de normas de tramitação como de normas relativas ao conteúdo do plano.

A ofensa de normas de qualquer destas espécies só autoriza a recusa da homologação se for não negligenciável, exigência que vincula, evidentemente, à distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes e que traz, naturalmente, implicada a concessão ao juiz de um largo poder de apreciação.

Essa apreciação deve nortear-se pelos princípios orientadores, em geral, da nulidade processual, entre os quais se conta o da essencialidade, de harmonia com o qual a nulidade não se verifica se a prática ou a omissão do acto ou da formalidade não influir no exame e na decisão da causa (artº 201 nº 1, in fine, do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Numa palavra: só releva a violação que seja susceptível de influir no exame e na decisão da causa[8], que comprometa, irremediavelmente, o fim que a lei se propunha atingir; quando a ofensa da lei não tenha este efeito patológico, a violação é negligenciável ou desprezável, e o juiz fica autorizado a declarar irrelevante a nulidade correspondente.

Na sua versão originária, o CIRE exigia, como conditio sine qua non da realização da assembleia de credores convocada para deliberar sobre a proposta de plano de insolvência, o prévio proferimento da sentença de verificação e graduação dos créditos reclamados e a extinção do prazo da sua impugnação por meio de recurso ordinário (artº 209 nº 2, na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo artº 1 do Decreto-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto).  

                Em face das desrazoabilidade da solução[9], o legislador deixou de exigir, como condição de realização da assembleia de credores, convocada para aquela finalidade, o prévio proferimento da sentença de verificação e graduação dos créditos reclamados (artº 209 nº 2 do CIRE, na redacção que lhe foi impressa pelo artº do Decreto-Lei nº 200/2004).

                É, portanto, perfeitamente admissível realizar a assembleia de credores para se deliberar sobre a aprovação do plano de insolvência – e, evidentemente, aprovar o plano, antes do proferimento da sentença de verificação dos créditos.

                Simplesmente, nesta conjuntura o plano deve acautelar os efeitos da eventual procedência das impugnações deduzidas contra a lista de credores reconhecidos de forma a assegurar que, nessa hipótese, seja concedido aos créditos controvertidos o tratamento devido (artº 209 nº 3 do CIRE).

                A assembleia de credores reúne e delibera sobre a aprovação do plano de insolvência antes do proferimento e do trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação dos créditos, portanto, antes de decididas as impugnações deduzidas contra a relação dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, com fundamento na inclusão ou exclusão indevida de créditos, na incorrecção dos respectivos valores os créditos reconhecidos ou da sua qualificação: tanto basta para que se tomem certas precauções.

Com que fim?

Com o fim de assegurar a satisfação dos créditos controvertidos, para a hipótese de a sentença de verificação e de graduação os julgar verificados, seja quanto à sua existência, seja quanto ao seu valor.

E a adopção, pelo plano, das mencionadas cautelas, é exigível – note-se – independentemente de qualquer prova de que a situação jurídica alegada – a titularidade do crédito ou o seu montante - é provável ou verosímil, ou de qualquer juízo sobre a probabilidade de procedência da impugnação: é suficiente, na lógica da lei, a pendência da impugnação.

Estando a impugnação pendente de decisão, o plano tem um conteúdo vinculado: deve conter dispositivos que assegurem o tratamento devido aos créditos objecto de controversão, tal como eventualmente venham a ser verificados.

A exigência tem fácil justificação: ela é imposta pelo princípio da igualdade dos credores, dado que a finalidade conspícua das cautelas é, justamente, a de assegurar a igualdade de tratamento dos créditos de espécie e condições homótropas.

Realmente, caso essas cautelas não sejam adoptadas pelo plano, pode dar-se o caso de, apesar da procedência da impugnação, o crédito controvertido acabar por receber um tratamento distinto, em seu detrimento, relativamente a créditos da mesma categoria.

                Quando o plano, apesar da pendência da impugnação, não contenha as cautelas apontadas, verifica-se seguramente uma violação não negligenciável de uma norma relativa ao seu conteúdo – i.e., uma nulidade processual relevante – que constitui, de per se, fundamento idóneo ou bastante de recusa oficiosa da sua homologação pelo juiz da insolvência (artº 215 do CIRE)[10].

                Estas considerações habilitam-nos, com suficiência, a aferir da correcção da decisão impugnada.

               

3.4. Concretização.

Como o Relator logo observou no despacho liminar, o recurso tem por fundamento a violação, não negligenciável, de normas aplicáveis ao conteúdo do plano determinantes da recusa da sua homologação.

Essa violação radica, segundo os recorrentes, no facto de o plano de insolvência ter sido homologado antes da decisão das impugnações que deduziram contra a lista de créditos apresentada pelo administrador da insolvência, sem que nele tenham sido acautelados os efeitos da eventual procedência dessa impugnação.

As recorrentes sustentam, na sua alegação, que o trânsito em julgado da decisão homologatória do plano determina o encerramento do processo de insolvência.

Mas esta conclusão não é forçosa: aquele encerramento só se verifica, por razões que se explicam por si, se o conteúdo do plano for compatível com esse encerramento (artºs 230 nº 1 b), in fine, do CIRE).

Em qualquer caso, o encerramento deve ser declarado por decisão judicial expressa (artº 230 nºs 1 e 2 do CIRE).

O encerramento do processo de insolvência implica, entre outras coisas, a extinção do processo de verificação de créditos pendentes em que não tenha sido proferida a sentença de verificação e graduação correspondente (artº 233 nº 2 b) do CIRE).

Decorre deste regime que, enquanto não transitar a decisão homologatória do plano de insolvência, não há lugar, por esse fundamento, à declaração de encerramento do processo de insolvência, nem qualquer razão que obste à decisão do processo de verificação e graduação de créditos

                Seja como for, a verdade é que o fundamento do recurso é inteiramente exacto.

                Realmente, a assembleia de credores deliberou aprovar o plano de insolvência sem que as impugnações deduzidas pelas recorrentes contra a lista dos credores - que têm por objecto o valor dos seus créditos - se mostrassem decididas.

                Nesta conjuntura, o plano deveria conter as cautelas indispensáveis a assegurar a eventual procedência daquelas impugnações.

Mas não contém.

                Esta ofensa de norma relativa ao conteúdo do plano integra, seguramente, uma nulidade processual, ou – para usar a expressão da lei da insolvência – uma violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo daquele mesmo plano.

                Nestas condições, a decisão impugnada deveria, de ofício, por tal fundamento, ter recusado a homologação do plano de insolvência.

Como, inversamente, o homologou, importa revogá-la e logo a substituir por outra que recuse aquela homologação.

                O recurso deve, pois, proceder.

                As custas do recurso devem ser suportadas pela massa insolvente (artº 304 do CIRE). Porém, para efeitos de custas, o processo de insolvência compreende o processo principal, incluindo, portanto, as deste recurso (artº 303 do CIRE).

                Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2 deste diploma legal, e 8 nº 1 e 9 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, consequentemente: 

a) Revoga-se a decisão impugnada, proferida no dia 15 de Março de 2007, que homologou o plano de insolvência aprovado na assembleia de credores realizada no dia 15 de Dezembro de 2006;

                b) Recusa-se a homologação desse plano de insolvência.

Custas pela massa insolvente, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.

                                                                                                                            

                                                                                                                             Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                                             José Avelino Gonçalves

                                                                                                                             Regina Rosa

               


[1] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41.
[3] António Menezes Cordeiro, “Introdução ao Direito da Insolvência”, O Direito, 137/III, (2005), pág. 503, e Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 99.
[4] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas Notas”, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 587.
[5] Gisela Teixeira Jorge Fonseca, “a natureza jurídica do plano de insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 122.
[6] Ac. da RL de 06.07.09, www.dgsi.pt.
[7] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas notas”, cit. pág. 590.
[8] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, Quid Iuris, 2006 pág. 119.
[9] João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, alguns aspectos mais controversos” e Fátima Reis Silva, “Algumas questões processuais no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, in Conhecer o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, 2004, págs. 23 a 25 e 54 e 55, respectivamente.
[10] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, cit., pág. 102.