Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
469/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: INTERDIÇÃO
INCAPACIDADE ACIDENTAL
Data do Acordão: 03/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA – 2ºJUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 138º, 148º, 150º, 153º E 257º DO C.CIV.
Sumário: I – Um dos casos de incapacidade negocial do exercício é a interdição, instituto que tem por escopo a protecção do próprio interdito, enquanto maior que, por anomalia psíquica (o que abrange deficiências do intelecto, da afectividade ou da vontade), surdez-mudez ou cegueira, levam, pela sua gravidade, à inaptidão para reger a sua pessoa e bens (art. 138º do Código Civil).

II - No que às primeiras concerne, cabem não apenas um descalabro demencial propriamente dito, isto é, uma psicose adquirida, como igualmente a psicose congénita, ou seja, os chamados estados oligofrénicos (cretinismo, idiotia, imbecilidade), em que a pessoa nunca chegou a atingir o desenvolvimento normal.

III - Caso a anomalia psíquica se traduza numa simples fraqueza de espírito do incapaz, então estaremos perante uma eventual situação de inabilitação do incapaz.

IV - Como tal, e na medida em que seja decretada, apenas abrange os actos de disposição entre vivos e aqueles que forem especificados na sentença, consideradas as circunstâncias concretas do caso (art. 153º do Código Civil), podendo mesmo ser retirada a administração dos próprios bens e entregue a um curador (art. 154º do mesmo diploma legal).

V - No que concerne o valor dos actos praticados pelo interdito, importa distinguir três momentos essenciais: se posteriores ao registo da sentença de interdição definitiva (art. 1920º-B do Código Civil, aplicável ex vi do art. 147º do mesmo diploma legal, al. g) do n.º 1 do art. 69º e art. 78º do Código de Registo Civil), estamos perante actos anuláveis, vício invocável nos termos do art. 125º, aplicável ex vi art. 138º do Código Civil (art. 148º do Código Civil); se praticados na pendência do processo de interdição, isto é, entre a publicação dos anúncios previstos no art. 945º do Código de Processo Civil e o registo da sentença de interdição definitiva, serão anuláveis se considerados prejudiciais numa apreciação reportada ao momento da prática do acto (art. 149º do Código Civil e nº 2 do art. 956º do Código de Processo Civil); já os actos praticados antes da publicidade da acção, há que atender ao disposto relativamente à incapacidade acidental (art. 150º do Código Civil).

VI - A incapacidade acidental, prevista e regulada no artigo 257º do Código Civil, exige, para a anulabilidade do acto, que, no momento da prática do actos, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário), assim se tutelando a boa-fé deste último e a segurança jurídica.

VII - Estando assente que o A… foi declarado interdito por sentença datada de 31.01.2000, e que o negócio de compra e venda em causa nos autos foi celebrado em 25.09.1996, portanto muito antes da publicitação da acção (que remonta a 1998), ao caso é aplicável o regime da incapacidade acidental (arts. 257º e 150º do Código Civil).

VIII - Sendo assim, o que importa saber é se o referido A…, à data da outorga da escritura de compra e venda em discussão, se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da declaração negocial que por si foi proferida (a venda de um imóvel próprio, pelo preço dito acordado e como por ele já recebido) e se tal incapacidade era notória ou conhecida do declaratário (o comprador), devendo entender-se como incapacidade notória aquela que uma pessoa de normal diligência poderia logo notar.

IX - A anulabilidade (dos negócios jurídicos levados a cabo pelos interditos anteriormente à publicidade da acção) tem, como condições necessárias e suficientes, os seguintes requisitos: 1) que, no momento do acto, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; 2) que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (contraparte nos contratos, destinatário da declaração nos negócios unilaterais receptícios, destinatário dos efeitos da declaração nos negócios unilaterais não receptícios)…

X - O nº 2 do artº 257º esclarece que notório é um facto que uma pessoa de normal diligência teria podido notar… Para a anulabilidade destes actos não basta a prova da incapacidade natural, exige-se igualmente, para tutela da boa fé do declaratário e da segurança jurídica, a prova da cognoscibilidade da incapacidade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, A.... e mulher B.... ; C... e mulher D...., todos residentes em ....., concelho de Águeda, na qualidade de herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de E.... , residente que foi em Aguieira, freguesia de alongo do Vouga, concelho de Águeda, instauraram contra F..., G... ,H... e I..., todos estes residentes em ......, concelho de Águeda, a presente acção declarativa, com processo sumário, pedindo que seja julgada nula e desprovida de quaisquer efeitos a escritura de justificação notarial e de compra e venda a que se alude nos autos, ordenando-se o cancelamento de todos os registos que entretanto possam ter sido ou venham a ser feitos pelo R. F....; e que os RR sejam condenados como litigantes de má fé, no caso de contestarem a presente acção, com o pagamento de multa e de indemnização a favor dos AA, no montante de Esc. 200.000$00 a cada um dos Autores.
Para tanto e muito em resumo, alegaram que em 12/03/2000 faleceu E...., no estado de solteiro, sem deixar ascendentes nem descendentes e sem ter feito testamento.
Que os seus herdeiros legítimos são os irmãos – os AA maridos, J... , L.... (este já falecido em 20/03/2000, tendo deixado filhos, que se indicam), e M.... (também já falecido em 28/03/99, tendo deixado mulher e filhos, que se indicam).
Que, no dia 25/09/1996, o dito E... outorgou uma escritura pública, no Cartório Notarial de Águeda (da qual foi junta certidão de fls. 21 a 25), na qual justificava e vendia ao R. F.... um seu prédio rústico, sito na Lomba, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Valongo do Vouga, concelho de Águeda, sob o artigo 7341 (antigo artigo 73), pelo preço de Esc. 200.000$00.
Que os RR G..., H.... e I.... confirmaram as declarações atribuídas ao referido E.... nessa escritura.
Que, nessa ocasião, o dito E.... padecia de anomalia psíquica, não sabia contar dinheiro, passava fome e miséria de toda a ordem, não sabia sequer as horas nem os dias da semana, o que já se verificava desde a sua nascença, sendo conhecido de todas as pessoas que o rodeavam e com ele privavam, doença essa que o incapacitava totalmente de reger a sua pessoa e os seus bens.
Que por sentença de 31/01/2000 foi o dito E.... declarado judicialmente interdito, com carácter definitivo, sentença da qual consta que “o mesmo sofre de debilidade mental que o torna incapaz de reger a sua pessoa e os seus bens, e não obstante tal estado se poder ter dado desde a nascença ou infância os dados objectivos permitiram reportar tal incapacidade pelo menos desde o ano de 1986”, portanto anteriormente à data da outorga da referida escritura pública.
Que o E... esteve presente na referida escritura mas sem que tivesse capacidade de entender o sentido da mesma, por não ter o livre exercício da sua vontade.
Que os RR tinham pleno conhecimento de tal situação e aproveitando-se da dita debilidade mental levaram o E.... a outorgar na referida escritura, cujo teor este não entendeu nem o poderia entender.
Que, por isso, os RR agiram de má fé e dolosamente.
Que o E.... nunca recebeu o preço dito da venda.
Que, por isso, a dita escritura é anulável, como se requer nesta acção.
II
Pelos AA foi também deduzido o incidente do chamamento, como intervenientes principais, dos herdeiros do referido E.... que não são autores imediatos na acção, o que foi deferido, conforme despacho de fls. 106, na sequência do que se procedeu à citação dos chamados, assim se acautelando a legitimidade activa na acção.
III
Pelo R. F.... foi contestada a acção, alegando, muito em resumo, que os AA não provam serem herdeiros do falecido E...., pelo que não têm eles legitimidade para instaurarem a acção, devendo o R. ser absolvido da instância.
Que o dito E.... estava no uso das suas capacidades mentais ao outorgar a referida escritura, como foi então verificado pela notária que procedeu à celebração da dita escritura.
Que enquanto o dito E.... esteve vivo nunca ninguém pôs em causa as suas capacidades mentais, sendo certo que a sua interdição apenas foi declarada pouco tempo antes da data do seu óbito.
Que foi paga ao falecido E.... a quantia referida na escritura como preço da compra e venda.
Terminou pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição dos pedidos.
IV
Os AA ainda responderam, mantendo tudo quanto antes haviam alegado, bem como os pedidos formulados.
V
No decurso do processo faleceu o A. A.... (em 19/05/2003), em consequência do que se procedeu à habilitação dos seus sucessores legais – a viúva e dois filhos -, para com eles prosseguir a acção, conforme apenso com a letra A.

Tendo também falecido no decurso do processo o R. F... (em 30/12/2006), foram habilitados os seus herdeiros legítimos – todos filhos -, para com eles prosseguir a acção em representação do pai, conforme apenso com a letra B, onde por todos eles foram apresentadas procurações a constituírem mandatário.
VI
Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi apreciada a regularidade adjectiva da presente acção, tendo sido considerado que nada obstava ao seu regular prosseguimento, com selecção da matéria de facto alegada pelas partes e tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da causa.

Seguiu-se a instrução da causa, com a realização de uma peritagem ao prédio em causa, para apurar o seu valor – auto de fls. 218 -, posto que teve lugar a realização da audiência de julgamento (embora com a realização de uma prévia audiência que foi dada sem efeito, conforme resulta de fls. 306 a 361), com gravação dos depoimentos de parte prestados e da prova testemunhal nela produzida, conforme actas de fls. 397 a 401, 407 a 409 e 413 a 415.

Finda essa audiência foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação.

Foi então proferida sentença sobre o mérito da causa, decidindo-se julgar a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição dos RR dos pedidos contra eles formulados.
VII
Desta sentença interpuseram recurso os AA, recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.

Nas alegações que apresentaram os Apelantes concluíram do seguinte modo:
1ª – E.... foi declarado interdito, com carácter definitivo, por sentença datada de 31/01/2000…
2ª – Segundo essa sentença, não obstante tal estado se poder ter dado desde a nascença ou infância, os dados objectivos apenas permitem reportar tal incapacidade desde o ano de 1986.
3ª – Por sua, o negócio de compra e venda que os Apelantes procuram ver declarado anulado foi celebrado em 25/09/1996, pelo que está em causa um acto praticado antes da publicitação da acção de interdição e, como tal, aplica-se o regime da incapacidade acidental (artºs 257º e 150º do C. Civ.).
4ª – Ficou igualmente provado que o E.... sofria de incapacidade natural consubstanciada numa debilidade mental notória.
5ª – Ficou também provado que o E.... fazia as suas necessidades fisiológicas em compartimento onde dormia e comia.
6ª – Sem que tivesse discernimento para efectuar qualquer limpeza ao mesmo.
7ª – Que comprava de forma arbitrária, sem qualquer noção de bom e do mau, do caro e do barato, do necessário e do não necessário, do prejudicial e do não prejudicial à saúde.
8ª – Que eram os comerciantes quem lhe diziam se as compras feitas ultrapassavam ou não o valor da sua pensão.
9ª – Que o seu estado era conhecido da família e de todas as pessoas que o rodeavam, assim como dos RR.
10ª – Estão, assim, preenchidos e provados os requisitos necessários e suficientes para a anulabilidade dos actos praticados pelo dito E.... antes da publicidade da sentença de interdição.
11ª – Mais ficou provado que o dito E.... apenas conhecia o dinheiro até às notas de Esc. 100$00, pelo que não entendeu nem podia entender o negócio subjacente à escritura em causa.
12ª – Face ao que deveria ter sido proferida decisão diversa da proferida, tendo a sentença recorrida violado o disposto nos artºs 150º e 257º do C. Civ..
13ª – Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se procedente a acção.
VIII
Não foram apresentadas contra-alegações por parte dos Recorridos.

Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais, sem qualquer observação, pelo que nada obsta a que se conheça do seu objecto.
E esse objecto passa pela reapreciação da decisão de mérito, com a qual os Recorrentes não concordam, defendendo que “embora aceitem o enquadramento jurídico constante da sentença, já não aceitam é que o mesmo se exclua no presente caso, …isto é, dúvidas não restam de que se encontram preenchidos todos os requisitos necessários à declaração da anulabilidade do negócio jurídico, enquanto acto praticado antes da publicidade da sentença de interdição e por aplicação do regime da incapacidade acidental, a saber: - prova da incapacidade natural; - prova da cognoscibilidade dessa incapacidade por parte dos RR”.
Mais dizem que “não se compreende, face à provada incapacidade natural do E..., que este apenas e tão só no momento da outorga da escritura tivesse um breve momento de lucidez, que lhe permitisse querer e entender o declarado na mesma”.
E terminam os Recorrentes com a afirmação de que “os factos provados implicam necessariamente uma decisão diversa da proferida, tendo na decisão recorrida sido violados os artºs 150º e 257º do C. Civ.”.

Para procedermos à referida apreciação importa, antes de mais, que sejam (re)enunciados os factos tidos como assentes e que foram considerados na sentença recorrida, relativamente aos quais não foi apresentada qualquer impugnação nem se vêem razões para qualquer alteração oficiosa.
São eles os seguintes (tal como constam da sentença recorrida):
1 - Em 12.03.2000, com última residência habitual no lugar de Fermentões, Valongo do Vouga, faleceu, no estado de solteiro, E.....
2 - No dia 25.09.1996, no Cartório Notarial de Águeda, perante N... , notária do mesmo Cartório, foi celebrada a escritura pública constante a fls. 21, a qual se dá por reproduzida, onde foi declarado por E.... que “era dono e legítimo possuidor de um terreno de cultura com cem videiras sito na freguesia de Valongo do Vouga, Águeda, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 7341º, com o valor patrimonial de Esc. 3.030$00, a que atribuiu o valor de Esc. 200.000$00. Que possui o identificado prédio há mais de vinte anos, desde pelo menos o ano de 1970, data em que o adquiriu por compra não titulada a R....”.
Mais declarou que “vendia tal terreno pelo preço de Esc. 200.000$00, os quais já havia recebido, a F...”, o qual também declarou “aceitar tal venda nos termos exarados”.
3 - No processo de inventário facultativo que correu termos no Tribunal de Águeda sob o nº 48/74, da 1ª Secção, por óbito de O... e mulher, foi adjudicado, em 10.05.1975, a E...., o prédio composto por terreno lavradio com videiras e oliveiras, sito na Lomba, a confrontar do Norte com P... ; do Sul com caminho; do Nascente com herdeiros de Q.... e do Poente com Caminho.
4 - Por sentença prolatada em 31.01.2000, foi E.... declarado interdito com carácter definitivo e, segundo a mesma, não obstante tal estado se poder ter dado desde a nascença ou infância os dados objectivos apenas permitem reportar tal incapacidade desde o ano 1986.
5 - O falecido E... vivia em casa de habitação com péssimas condições de salubridade, alimentava-se mal, não cuidava da sua higiene pessoal, fazia as suas necessidades fisiológicas em compartimento onde dormia e comia.
6 - Sem que tivesse discernimento para efectuar qualquer limpeza ao mesmo.
7 - E dormia sob o fumo de candeias a petróleo, acesas dia e noite.
8 - Com a pensão de invalidez que recebia mensalmente ia ao supermercado mais próximo e fazia compras para se alimentar.
9 - Compras essas feitas de forma arbitrária, sem qualquer noção do bom e do mau, do caro e do barato, do necessário e do não necessário, do prejudicial e do não prejudicial à saúde.
10 - E comprava sem regra até ao valor que a sua pensão lhe permitia.
11 - Eram os comerciantes quem lhe diziam se as compras feitas ultrapassavam ou não o valor da sua pensão.
12 - O E... conhecia do dinheiro até às notas de Esc. 100$00.
13 - O E... conhecia os dias da semana.
14 - O seu estado era conhecido da família e de todas as pessoas que o rodeavam, incluindo os Réus.
15 - A debilidade mental era notória quando se falava com o E....
16 - Os Réus viviam perto da casa do E....
17 - F... levou E... ao Cartório Notarial de Águeda onde o fez estar presente nas escrituras a que se alude em 2 supra.
18 - O terreno valia, à data da escritura, € 1.755,77.
***
É, pois, com base nos sobreditos factos que importa reapreciar a sentença recorrida.
Já vimos que os Recorrentes aceitam o enquadramento jurídico constante da sentença recorrida, enquadramento esse com o qual também concordamos, razões pelas quais se passa a citar a parte dessa sentença que não está em discussão.
Aí se diz, em resumo, que “em certas situações pode existir uma incapacidade negocial do exercício de direitos, que assume uma natureza não absoluta de realizar certos negócios jurídicos, uma vez que estes podem ser realizados através de um representante legal (já não pelo incapaz ou representante voluntário), assim sendo suprida.
Um dos casos de incapacidade negocial do exercício é a interdição, instituto que tem por escopo a protecção do próprio interdito, enquanto maior que, por anomalia psíquica (o que abrange deficiências do intelecto, da afectividade ou da vontade), surdez-mudez ou cegueira, levam, pela sua gravidade, à inaptidão para reger a sua pessoa e bens (art. 138º do Código Civil).
No que às primeiras concerne, cabem não apenas um descalabro demencial propriamente dito, isto é, uma psicose adquirida, como igualmente a psicose congénita, ou seja, os chamados estados oligofrénicos (cretinismo, idiotia, imbecilidade), em que a pessoa nunca chegou a atingir o desenvolvimento normal.
Temos, contudo, de estar em face de deficiências habituais ou duradouras – se passageiras, embora graves, não relevam, ainda que a habitualidade não pressuponha uma continuidade absoluta – e actuais – têm de existir, não bastando uma anterior enfermidade ou exame médico, ou ainda que se torne de recear.
Caso a anomalia psíquica se traduza numa simples fraqueza de espírito do incapaz, então estaremos perante uma eventual situação de inabilitação do incapaz.
Como tal, e na medida em que seja decretada, apenas abrange os actos de disposição entre vivos e aqueles que forem especificados na sentença, consideradas as circunstâncias concretas do caso (art. 153º do Código Civil), podendo mesmo ser retirada a administração dos próprios bens e entregue a um curador (art. 154º do mesmo diploma legal).
No que concerne o valor dos actos praticados pelo interdito, importa distinguir três momentos essenciais: se posteriores ao registo da sentença de interdição definitiva (art. 1920º-B do Código Civil, aplicável ex vi do art. 147º do mesmo diploma legal, al. g) do n.º 1 do art. 69º e art. 78º do Código de Registo Civil), estamos perante actos anuláveis, vício invocável nos termos do art. 125º, aplicável ex vi art. 138º do Código Civil (art. 148º do Código Civil); se praticados na pendência do processo de interdição, isto é, entre a publicação dos anúncios previstos no art. 945º do Código de Processo Civil e o registo da sentença de interdição definitiva, serão anuláveis se considerados prejudiciais numa apreciação reportada ao momento da prática do acto (art. 149º do Código Civil e nº 2 do art. 956º do Código de Processo Civil); já os actos praticados antes da publicidade da acção, há que atender ao disposto relativamente à incapacidade acidental (art. 150º do Código Civil).
A incapacidade acidental, prevista e regulada no artigo 257º do Código Civil, exige, para a anulabilidade do acto, que, no momento da prática do actos, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário), assim se tutelando a boa-fé deste último e a segurança jurídica.
Por outro lado, não bastará demonstrar um estado habitual de insanidade de espírito na época do negócio, tornando-se antes necessário provar a existência de uma perturbação psíquica no momento em que a declaração de vontade foi emitida.
Por último, e no que tange ao regime da anulabilidade, há que lançar mão do disposto no art. 287º e ss. do Código Civil, ou seja, terá legitimidade para requerer a anulação do acto a pessoa que se encontrava em situação de incapacidade ou, caso o haja, o seu representante legal, o que poderá ser feito no prazo de um ano a contar da cessação da incapacidade, se o negócio já tiver sido cumprido, ou, na hipótese contrária, invocada a todo o tempo, por via de acção ou de excepção”.
Concordando, pois, com tal exposição, cumpre referir que está assente que o E.... foi declarado interdito por sentença datada de 31.01.2000, e que o negócio de compra e venda em causa nos autos foi celebrado em 25.09.1996, portanto muito antes da publicitação da acção (que remonta, como se infere do seu número processual, a 1998), pelo que, ao caso, é aplicável o regime da incapacidade acidental (arts. 257º e 150º do Código Civil), conforme foi decidido em 1ª instância e com o que também os Recorrentes concordam.
Sendo assim, o que importa saber é se o referido E...., à data da outorga da escritura de compra e venda em discussão, se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da declaração negocial que por si foi proferida (a venda de um imóvel próprio, pelo preço dito acordado e como por ele já recebido) e se tal incapacidade era notória ou conhecida do declaratário (o comprador), devendo entender-se como incapacidade notória aquela que uma pessoa de normal diligência poderia logo notar.
Sobre esta questão, e a propósito do valor dos actos praticados pelo demente antes de ter sido requerida a sua interdição e publicado o facto pelos meios legais, havendo posterior decretação da sua interdição, expunha o Prof. Manuel A. Domingues de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol II, 4ª reimpressão, a pgs. 89/90 (a propósito do C. Civ. de 1867 e do artº 954º, nº 1, do CPC de 1939): “…a demência pode ser evidente porque o demente dá mostras bem claras dela e contudo não ser geralmente conhecida. É o caso de o demente viver dentro de um limitado círculo de pessoas que não divulguem o facto. A demência será evidente, por hipótese, mas só essas pessoas a conhecem. Por outro lado, a demência pode ser geralmente conhecida e não ser evidente. É o caso de o demente raras vezes dar sinais da sua anomalia e, no entanto, as pessoas que com ele convivem espalharem o facto, que por isso mesmo se torna geralmente conhecido.
Isto posto, qual será o verdadeiro sentido da lei?

Segundo a interpretação (dita actual) seguida, será notória a demência quando geralmente conhecida. A parte que argui a nulidade só terá a provar que ao tempo, isto é, na época do negócio, já existia a demência, sendo também notória ou conhecida do outro estipulante. Não carece de provar que o demente não estava num intervalo lúcido.
Mas não se segue daí que só dados aqueles factos possa ser anulado o negócio, nem que, dados eles, a nulidade seja inevitável. Se a demência não era notória ou conhecida da outra parte, pode todavia o negócio ser anulado provando-se que no momento da sua conclusão subsistia e vigorava o estado demencial. Se a demência era notória ou conhecida da outra parte, pode esta arredar a nulidade provando que naquele momento se verificava uma pausa no estado demencial – um intervalo lúcido.
Verifica-se, portanto, que a notoriedade da demência – ou o seu conhecimento pela contraparte – funciona de certo modo como a sentença de interdição ou como a instauração do respectivo processo, depois de devidamente publicada. Mas só de certo modo. Estabelece uma simples presunção iuris tantum (refutável) da existência do estado demencial no momento do negócio; mas não uma presunção iuris et de iure (irrefutável), isto é, uma certeza legal nesse sentido”.
E a pg. 91, escrevia: “Não tendo valor definitivo, até porque a data provável do começo da demência é marcada apenas como provável, parece, no entanto, que constituirá presunção que dispensará a prova de demência por parte do que a alega, comportando embora prova em contrário. A não ser este valor, não se vê que outro pudesse competir-lhe, e não deve supor-se que a lei tenha formulado uma exigência inútil”.
No mesmo sentido opinava o Prof. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1973, a pgs. 454/455, onde escreveu: “A anulabilidade (dos negócios jurídicos levados a cabo pelos interditos anteriormente à publicidade da acção) tem, como condições necessárias e suficientes, os seguintes requisitos: 1) que, no momento do acto, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; 2) que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (contraparte nos contratos, destinatário da declaração nos negócios unilaterais receptícios, destinatário dos efeitos da declaração nos negócios unilaterais não receptícios)…O nº 2 do artº 257º esclarece que notório é um facto que uma pessoa de normal diligência teria podido notar… Para a anulabilidade destes actos não basta a prova da incapacidade natural, exige-se igualmente, para tutela da boa fé do declaratário e da segurança jurídica, a prova da cognoscibilidade da incapacidade”.
Também o Prof. Galvão Telles opina no mesmo sentido – veja-se “Parecer” na RT, ano 72, pg. 268.
Portanto, reafirmamos que importa saber se o referido E...., à data da outorga da escritura de compra e venda em discussão, se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da declaração negocial que por si foi proferida (a venda de um imóvel próprio, pelo preço dito acordado e como por ele já recebido) e se tal incapacidade era notória ou conhecida do declaratário (o comprador), devendo entender-se como incapacidade notória aquela que uma pessoa de normal diligência poderia logo notar, conforme resulta do artº 257º, nºs 1 e 2, do C. Civ..
Ainda a este propósito, o Prof. Castro Mendes, in “Teoria Geral”, 1978, vol. I, pg.. 341/359, também defendia que “do artº 257º do C. Civ. resulta que o acto é anulável se a incapacidade era notória – no sentido de manifesta a uma pessoa de normal inteligência – ou conhecida da outra parte. Se a contraparte não conhecia a incapacidade nem se devia ter apercebido dela, o acto é válido... Se um maior demente, não interditado nem inabilitado, vende um objecto a outra pessoa, há que ver se ele no momento do acto estava lúcido ou não. Se estava, o acto é válido; se não estava: a) ou o comprador sabia que o vendedor não estava lúcido, ou, então, dever-se-ía ter apercebido dessa circunstância e, nestes dois casos, o acto é anulável; b) ou o comprador não sabia nem tinha que saber que o vendedor não estava lúcido e, então, o acto é válido. A anulabilidade está sujeita às regras gerais do artº 287º”.
Na jurisprudência, a propósito da interpretação e da aplicação do artº 257º do C. Civ., entre outros, podem ver-se os Ac.s STJ de 21/03/1995 e de 5/07/2001, respectivamente in C. J. STJ 1995, tomo I, pg. 130, e C.J. STJ 2001, tomo II, pg. 151, onde se escrevem as seguintes passagens: “A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade, desde que o facto seja notório ou do conhecimento de declaratário é anulável.
Considerando que, nos termos do artº 954º, nº 1, do CPC, a sentença que decretar a interdição fixará, sempre que seja possível, a data do começo da incapacidade, ela terá a maior importância prática para a aplicação do artº 257º. Na verdade, se o negócio tiver sido realizado posteriormente a essa data, há uma forte presunção de que ele foi celebrado por pessoa incapacitada de entender o sentido da declaração ou privada do livre exercício da sua vontade.
A fixação da data do início da incapacidade em acção de interdição, constitui uma presunção de facto da existência dessa incapacidade, para efeito de anulação de acto jurídico praticado em data posterior. A permanência da situação de incapacidade não é incompatível com a existência de intervalos lúcidos por parte da pessoa demente, cabendo aos interessados na manutenção do acto jurídico em causa, a prova dessa lucidez aquando da realização desse acto. A incapacidade é notória desde que seja cognoscível de declaratário ou por qualquer pessoa medianamente arguta, tendo aquele, por via de regra, pleno conhecimento dessa situação, quando mantém um relacionamento frequente com a incapacitada, chegando a exercer ascendência sobre a mesma, influenciando-a nos seus actos e tirando proveito pessoal dessa circunstância”.
Também no Ac. do STJ de 14/01/1975, in BMJ 243, pg. 199, foi entendido que “a fixação da data do início da incapacidade em acção de interdição constitui presunção de facto da existência da incapacidade para efeito de anulação de acto jurídico praticado em data posterior”.
Ora, dos factos dados como assentes outra constatação não resulta, afigura-se-nos, senão a de que o E... sofria de demência mental ou psíquica duradoura, que o tornava absolutamente incapaz de governar a sua pessoa e os seus bens, a qual originou que o dito tenha sido declarado interdito, com carácter definitivo, estado esse que pode considerar como vigente desde a sua nascença ou infância mas objectivamente pelo menos desde o ano de 1986.
Com efeito, escreveu-se na sentença que declarou a sua interdição: “Procedeu-se ao interrogatório e exame do interditando por dois médicos da comarca, no qual o mesmo, apesar de responder às perguntas feitas, mostrou não saber localizar-se temporalmente, desconhecer o preço das coisas, não conhecer o dinheiro nem conseguir efectuar cálculos elementares”.
Após o exame, …concluíram os peritos médicos que o requerido E.... sofre de debilidade mental (entre o grau leve e médio), que pelo menos ocorrerá desde 1986, que o impede de reger o seu património… debilidade mental essa que o incapacita total e definitivamente de reger a sua pessoa e bens e de que não existem meios de tratamento curativo para a sua situação, mas apenas meios de suporte que podem ser prestados pela família ou por instituição de solidariedade social.
Portanto, dúvidas não pode haver quanto ao estado de demência do E... desde pelo menos 1986.
Mas ficou também provado que “o E... vivia em casa de habitação com péssimas condições de salubridade, alimentava-se mal, não cuidava da sua higiene pessoal, fazia as suas necessidades fisiológicas em compartimento onde dormia e comia, sem que tivesse discernimento para efectuar qualquer limpeza ao mesmo; dormia sob o fumo de candeias a petróleo, acesas dia e noite; com a pensão de invalidez que recebia mensalmente ia ao supermercado mais próximo e fazia compras para se alimentar, compras essas feitas de forma arbitrária, sem qualquer noção do bom e do mau, do caro e do barato, do necessário e do não necessário, do prejudicial e do não prejudicial à saúde, além de que comprava sem regra até ao valor que a sua pensão lhe permitia, sendo os comerciantes quem lhe diziam se as compras feitas ultrapassavam ou não o valor da sua pensão. O E... conhecia do dinheiro até às notas de Esc. 100$00”, o que é muito elucidativo do referido estado de incapacidade psíquica permanente, continuada e desde há anos atrás do referido E...., estado esse que perdurou ao longo da sua vida e de forma constante, pelo que não restam dúvidas de que esse estado verificava-se à data da outorga do contrato de compra e venda.
E conhecendo o E.... apenas as notas até 100$00, muito menos se compreende que tenha podido sequer entender o valor pelo qual se diz na escritura que vendeu o prédio – duzentos mil escudos – valor esse que aí também se refere como por ele já recebido.
Assim sendo, temos como efectivamente demonstrada a incapacidade psíquica permanente e relevante do E... à data da outorga da escritura em causa.
E também se nos afigura que ficou provado que tal incapacidade era perfeitamente conhecida do declaratário (o comprador, Réu na acção), como bem resulta dos pontos 14º a 17º supra, pois que o seu estado mental era conhecido não só da família, mas também de todas as pessoas que o rodeavam e também dos RR, que sempre viveram perto da casa do dito, tanto mais que ficou provado que essa debilidade era notória quando se falava com o mesmo.
Consequentemente, não podemos deixar de considerar que tal escritura de compra e venda foi celebrada pelo E... em estado de absoluta demência, portanto em estado de total incapacidade de entender o que estava a ocorrer quando foi chamado a intervir na celebração da mesma, e muito menos podia entender a relevância desse negócio para si próprio, o que não podia deixar de ser conhecido do declaratário interessado nesse contrato que até “levou E... ao Cartório Notarial de Águeda onde o fez estar presente nas escrituras a que se alude em 2 supra” – ponto 17 supra.
E como os RR não lograram provar que na ocasião da outorga dessa escritura o E... tenha, por qualquer razão, como que sido contemplado por uma momentânea capacidade de entender – uma lucidez providencial -, o que nem sequer alegaram, manifesto se torna que temos de presumir a incapacidade psíquica do dito E.... desde pelo menos 1986 e muito em especial na data e ocasião da outorga da escritura a que se alude nos autos, sendo tal incapacidade do conhecimento do R. F..., o qual declarou “aceitar tal venda nos termos exarados”.
Face ao que tem de se concluir pela anulabilidade dessa escritura, nos termos do artº 257º do C. Civ., como foi requerido pelos AA., o que importa decidir, com o que procede o presente recurso.
IX
Decisão:
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso, com o que se revoga a sentença recorrida, decidindo, em consequência, declarar a nulidade da escritura pública referida no ponto 2 supra, celebrada no dia 25.09.1996, no Cartório Notarial de Águeda, na qual foi declarado por E.... que “era dono e legítimo possuidor de um terreno de cultura com cem videiras sito na freguesia de Valongo do Vouga, Águeda, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 7341º, com o valor patrimonial de Esc. 3.030$00, a que atribuiu o valor de Esc. 200.000$00. Que possui o identificado prédio há mais de vinte anos, desde pelo menos o ano de 1970, data em que o adquiriu por compra não titulada a R.... ”., e que ”vendia tal terreno pelo preço de Esc. 200.000$00, os quais já havia recebido, a F...”, o qual também declarou “aceitar tal venda nos termos exarados”.
Mais se acorda em ordenar o cancelamento de todos os registos prediais que possam ter sido celebrados com base nessa mesma escritura.

Custas da acção e do presente recurso pelos RR.