Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
47/12.4TBALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ANULAÇÃO
NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
TRANSACÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTº 301º, NºS 1 E 2; 771º E 776º DO CPC; 247º E 342º DO CC; LOFTJ (LEI 3/99, DE 13/01).
Sumário: I – A anulação de negócios jurídicos processuais não se compreende no perímetro da competência do tribunal de trabalho.
II - Ergo, por força do carácter residual da competência dos tribunais de competência genérica, é a estes que pertence tal competência.
III - Desde que o objecto da causa não é representado por direitos emergentes de acidente de trabalho – mas pelo direito de anulação de um contrato processual -, a preparação e julgamento da causa é da competência do tribunal de competência genérica.
IV - A circunstância de aquele negócio processual ter por objecto direitos emergentes de acidente de trabalho é, de todo, indiferente, para o problema da determinação do tribunal competente, mas uma vez que o objecto da causa não são esses direitos - mas um direito diverso, assente numa causa petendi radicalmente diferente do acidente de trabalho -, a situação jurídica deve ser apreciada no tribunal de competência genérica e não no tribunal de competência especializada – o tribunal do trabalho.
V - A transacção – como qualquer outro negócio processual que conforme a decisão da causa – exige os requisitos gerais de qualquer negócio jurídico, nomeadamente quanto aos sujeitos, à vontade e sua exteriorização e ao objecto negocial.
VI - Expressão desse regime comum é justamente a possibilidade de a transacção – tal como a confissão e a desistência - poder ser declarada nula ou anulada como os actos de idêntica natureza negocial, apenas com a especialidade de que, quanto à confissão, o erro apesar de dever ser essencial, pode ser culposo (artº 301º, nº 1 do CPC).
VII - A redução do negócio jurídico parcialmente inválido opera automaticamente – não tem que ser requerida. Em qualquer caso, é à parte que não pretende a redução do negócio parcialmente inválido que terá de pedir a declaração de nulidade ou a anulação de todo ele, alegando e provando que este não teria sido concluído sem a parte viciada (artº 342º, nº 1 do Código Civil).
VIII - A acção de nulidade ou de anulação pode ser instaurada após o trânsito em julgado da sentença homologatória do negócio processual (artº 301º, nº 2 do CPC). Obtida essa declaração de nulidade ou anulação depois do trânsito em julgado daquela sentença, a parte pode impugná-la no recurso extraordinário de revisão (artº 771º, nº 1, d) do CPC).
IX - Se a fase rescindente da revisão terminar com o reconhecimento do fundamento invocado, segue-se a fase rescisória que consiste, nessa hipótese, numa nova instrução e julgamento da causa, aproveitando-se apenas a parte do processo que o fundamento de revisão não tenha prejudicado (artºs 776º, c) do CPC).
Decisão Texto Integral: Proc. nº 47/12.4TBALD.C1

I. Forma de Julgamento do recurso.

Dado o reduzido valor da causa e do recurso e a simplicidade do seu objecto, declaro que este será julgado liminar, singular e sumariamente (artºs 700 nº 1 c) e 705 do CPC).

II. Julgamento do recurso.

1. Relatório.

Companhia de Seguros A…, SA propôs, no Tribunal Judicial da Comarca de Almeida, contra M…, acção declarativa constitutiva com processo comum, sumaríssimo pelo valor, pedindo a anulação, por erro na declaração, da transacção celebrada na acção especial, emergente de acidente de trabalho, que corre sob o nº 246/10 no Tribunal do Trabalho da Guarda.

Fundamentou esta pretensão no facto de na tentativa de conciliação do processo para a efectivação dos direitos resultantes do acidente de trabalho que provocou a morte ao trabalhador da sociedade J. …, Lda., de nome O…, cônjuge da ré, relativamente ao qual assumiu a responsabilidade civil por acidentes de trabalho, ter declarado aceitar a proposta do Ministério Público, designadamente quanto às despesas reclamadas de funeral com trasladação no valor de € 3.689,14, valor que foi homologado tal como se encontrava no auto de conciliação, de ao proceder ao seu pagamento ter verificado que tais despesas somavam, de acordo com os documentos juntos pela ré, € 3.031, 83, de o requerimento de rectificação do erro de cálculo lhe ter sido indeferido, e de haver notória divergência entre aquilo que quer – conciliar-se com a ré, pagando-lhe as despesas de funeral e trasladação pelo valor do seu custo – e o que declarou – subsídio de funeral pelo valor máximo previsto na lei, acima do seu custo.

A ré, regularmente citada, não contestou.

Porém, a Sra. Juíza de Direito, depois de observar que o artº 118.º, alínea c) da Lei nº 52/2008, de 28.08, dispõe que compete aos tribunais do trabalho, em matéria cível conhecer das questões, emergentes de acidentes de trabalho, e que, em face do articulado da autora e dos documentos descritos que acompanham a petição inicial, mostra-se inequívoca que a relação de controvertida se baseia no acidente de trabalho que vitimou o marido da ré, e da obrigação que daí decorreu da aqui autora indemnizar a ré, sendo inequívoco que as questões emergem directamente de um acidente de trabalho e integram a competência dos tribunais de trabalho, sendo in casu competente o Tribunal do Trabalho da Guarda, declarou o Tribunal Judicial da Comarca de Almeida incompetente em razão da matéria e absolveu a ré da instância.

É, justamente, esta decisão absolutória que a recorrente impugna por via do recurso ordinário de apelação, no qual pede a sua revogação e substituição por outra que considere competente, em razão da matéria o tribunal recorrido.

Para inculcar o mal fundado da decisão impugnada, a recorrente condensou a sua alegação, nestas conclusões:

                Não foi oferecida resposta.

                2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

3. Fundamentos.
3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Maneira que, de harmonia com o conteúdo da decisão recorrida e das alegações da recorrente, pareceria que a questão concreta controversa que importa resolver seria só uma: a de saber se o Tribunal de que provém o recurso é ou não absolutamente competente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da causa. Mas não é assim.

A recorrente visa, com o recurso, obter este preciso efeito jurídico: a revogação da decisão impugnada e a sua substituição por outra que declare o tribunal recorrido competente para a acção.

A decisão do recurso de apelação segue o modelo de substituição que se concretiza, entre outras, na regra seguinte: se o tribunal de 1ª instância tiver deixado de conhecer de certas questões, por considerar a sua apreciação prejudicada pela solução dada a outras, a Relação, caso disponha para tal de todos os elementos necessários, pode conhecer dessas questões no mesmo acórdão em que revogue a decisão recorrida (artº 715º, nº 2 do CPC). Neste caso, o relator – caso seja necessário para prevenir o risco de decisões surpresa – deve, em princípio, ouvir as partes (artº 715º, nº 3 do CPC).

No caso, o tribunal recorrido, por julgar verificada a excepção dilatória da sua incompetência ratione materiae, não conheceu, evidentemente, do fundo da causa – do pedido constitutivo material da recorrente, de anulação do acordo concluído no Tribunal do Trabalho, que estatuiu sobre indemnização devida à recorrida, pelo facto lamentável da morte do trabalhador, seu cônjuge.

                Nesta conjuntura, caso se deva concluir que a decisão recorrida não é juridicamente conforme – por não se verificar a excepção dilatória apontada – além de a revogar, esta Relação deve decidir a questão jurídica material objecto da causa: a anulação daquele negócio jurídico processual.

E em face da revelia absoluta da recorrida – tanto na causa como no recurso – e da consequente fixação dos factos materiais da causa, e do conteúdo das alegações da recorrente, não se justifica mesmo proceder à audição prévia das partes, dado que a ambas tiveram já ampla possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria de facto e de direito relevante, não existindo, assim, risco de proferimento de qualquer decisão surpresa, i.e., de enquadramento jurídico da situação de forma diferente daquela que é perspectivada pelas partes ou com o qual estas não pudessem razoavelmente contar (artº 3º, nº 3, 1ª parte, 137º e 207º, 2ª parte do CPC).

De modo que não é uma mas duas as questões que devem constituir o universo das nossas preocupações: a de saber se o tribunal recorrido é ou não competente, em razão da matéria, para conhecer da causa; a de saber se se verificam no caso os pressuposto do erro na declaração na qual a recorrente funda o seu direito potestativo de anulação do negócio jurídico processual representado pelo acordo concluído, no Tribunal do Trabalho, na fase conciliatória do processo especial para a efectivação dos direitos resultantes de acidente de trabalho.

A resolução destes problemas vincula, naturalmente, à aferição da competência material do tribunal recorrido e dos pressupostos da anulação do negócio jurídico processual de transacção por erro na declaração.

Outro ponto que deve, desde já, deixar-se claro é o relativo à lei de organização judiciária aplicável ao problema da determinação da competência material do tribunal recorrido.

Uma das normas aplicadas pela decisão impugnada, para recortar o perímetro da competência do tribunal de trabalho, foi a contida na alínea c) do artº 118º da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto – Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e é a violação desse preceito que a recorrente imputa àquela decisão.

Simplesmente, a escolha dessa norma para enquadrar o caso concreto encontra-se ferida de um nítido erro.

Realmente, a LOFTJ aprovada pela Lei nº 52/2008, apenas é aplicável, a título experimental, às comarcas piloto do Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Lisboa Noroeste (artºs 171º e 187º, nº 1 da LOFTJ).

Como o Tribunal de que provém o recurso não se compreende no perímetro de qualquer daquelas comarcas, segue-se que à espécie objecto do processo é aplicável a LOFTJ aprovada pela Lei 3/99, de 13 de Janeiro, com as sucessivas reconformações a que foi sujeita, decorrentes, designadamente da Lei nº 101/99, de 26 de Julho, pelo DL nº 323/2003, de 17 de Dezembro, pelo DL nº 38/2003, de 8 de Março e pela Lei nº 105/2003, de 10 de Dezembro (artºs 3º e 4º, 14º, 15º, 26º e 27º do DL nº 25/2009, de 26 de Janeiro).

                O ponto não é relevante, dado que a norma contida no artº 118º, c) da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto é absolutamente homótropa àquela que é realmente aplicável: a contida no artº 85º, c) da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, de harmonia com a qual compete aos tribunais do trabalho, em matéria cível, conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

Em todo o caso, deve assentar-se nisto: a competência material do tribunal recorrido deve ser aferida à luz do sistema de organização judiciária tal como se mostra construído pela LOFTJ pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.

3.3. Competência material do Tribunal recorrido.

Diz-se competência a medida de jurisdição de um tribunal. O tribunal é competente para o julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuem a medida de jurisdição que é a suficiente e adequada para essa apreciação. A competência assim delimitada pode chamar-se competência jurisdicional.

A competência jurisdicional pode classificar-se, cumulativamente, quanto ao âmbito e quanto à origem. Quanto ao âmbito, a competência pode ser interna ou internacional (artºs 61º e 62º do CPC).

A competência interna é, em regra, aquela que respeita a questões que, na perspectiva do Estado do foro, não apresentam qualquer elemento de conexão com uma ordem jurídica estrangeira; a competência internacional, pelo contrário, é aquela que se refere a objectos processuais que comportam uma ou várias conexões com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

A delimitação da competência é realizada através de determinados critérios legais que demarcam, no âmbito global da função jurisdicional, o tribunal competente para apreciar certa causa.

A competência interna é aferida por diversos critérios legais e pode determinar-se, no tocante aos tribunais judiciais, em razão, designadamente, da matéria e da hierarquia (artº 17º, nº 1 da LOFTJ).

O critério material determina se a causa deve ser julgada num tribunal comum ou num tribunal especial ou por qualquer outra entidade a quem a lei reconheça competência jurisdicional, v.g., o conservador do registo predial ou do registo civil ou o Ministério Público (v.g. artºs 2º, nº 1 e 12º, nº 1 do DL nº 271/2001, de 13 de Outubro).

A competência material dos tribunais comuns é aferida pelo critério da atribuição positiva e de competência residual.

De harmonia com o critério residual, incluem-se nos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum, a nenhum tribunal especial ou a nenhuma entidade dotada de competência jurisdicional. Quer dizer: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual (artº 66º do CPC).

A determinação da competência do tribunal de 1ª instância exige a observância de subcritérios materiais, dado que podem ser tribunais de competência genérica, de competência especializada, de competência específica e de competência específica mista (artºs 77º, 78º e 96º, nºs 1 e 2 da LOFTJ).

Os tribunais judiciais são de competência genérica quando possuem competência indiferenciada para qualquer causa no âmbito da sua jurisdição comum ou não comum (conhecem, por isso, tanto de matéria cível como criminal, por exemplo). Os tribunais de competência genérica são tribunais de competência material residual, i.e., julgam qualquer causa para a qual não existe outro tribunal (artº 77º, nº 1, a) da LOFTJ).

Os tribunais de competência especializada são aqueles cuja competência está limitada em razão da matéria. Há tribunais comuns e não comuns (especiais) de competência especializada. Exemplo de tribunal comum de competência especializada é justamente os tribunais do trabalho, quando apreciam matéria civil (artºs 78º, d) e 85º da LOFTJ).

Aos tribunais de competência especializada do trabalho compete conhecer, em matéria cível, designadamente das questões emergentes de acidentes de trabalho (artº 85º, c), 1ª parte, da LOFTJ).

De harmonia com a velha regra ubi acceptum est semel judicum, ibi et finem accipere debet, a competência fixa-se no momento em que a acção é proposta. As modificações do estado de facto ou no estado de direito posteriores são, em princípio, irrelevantes (artº 22º, nºs 1 e 2 da LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Jan.). É o que se chama perpetuatio fori ou iurisdicionis.

A competência é, portanto, aferida segundo determinados elementos – como o objecto ou as partes – tal como se apresentam no momento da propositura da causa. 

A incompetência resolve-se numa excepção dilatória nominada de conhecimento oficioso, dado que respeita a matéria de interesse público, e pode dar lugar a uma das duas consequências, de pura forma, atribuídas às excepções dilatórias - a absolvição da instância, tratando-se de incompetência absoluta, ou à remessa do processo para o tribunal competente, se for meramente relativa (artºs 288º, nºs 1, a) e 2, 487º, nºs 1 e 2, 493º, nºs 1 e 2, 494º, a) e 495º do CPC).

Trata-se, porém, de uma excepção dilatória imprópria, dado que se limita a impugnar um pressuposto processual positivo – a competência do tribunal – que o autor considera preenchido.

Por essa razão, o regime da prova da excepção é aquele que se encontra estabelecido para os factos alegados pelo autor e impugnados pelo réu. Não é, portanto, o réu que tem de provar que o pressuposto não está preenchido – é antes o autor que tem que provar que o pressuposto se mostra satisfeito (artº 342º, nº 1 do Código Civil). Daí que o risco da falta de prova do pressuposto positivo recaia sobre o autor (artº 516º do CPC). Assim, por exemplo, se o réu contestar a competência do tribunal, incumbe ao autor a prova dos factos que a justifiquem; se não a fizer, o tribunal deve julgar contra essa parte onerada, considerando-se incompetente[1].

A competência jurisdicional é, pois, um pressuposto processual, i.e., uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, através de uma decisão de procedência ou improcedência[2]. Como qualquer outro pressuposto processual é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor, requerente ou exequente[3].

Nestas condições, importa recortar, com precisão, o efeito jurídico que a recorrente pretende obter com a acção e o acto ou facto – a causa petendi – de que, no seu entender, o direito potestativo de anulação alegado procede.

A recorrente visa com a acção a anulação do negócio – rectius, contrato – processual com o qual foi composta, no tribunal de competência especializada – o tribunal do trabalho - a acção especial para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho que vitimou o cônjuge da recorrida.

E o facto de que no ver da recorrente emerge esse direito potestativo extintivo é o vício da sua declaração, integrante daquele contrato processual.

De harmonia com a alegação da impugnante, na conclusão daquele contrato processual, houve erro na sua declaração ou erro-obstáculo: a recorrente queria aceitar proceder pagamento ao subsídio por despesas de funeral pelo valor do seu custo, mas, por lapso, declarou aceitar pagar o valor máximo dessa prestação admitido pela lei. Dito doutro modo: a vontade da recorrente formou-se correctamente – pagar as despesas de funeral pelo seu custo real; porém, aquando da exteriorização houve uma falha, de tal modo que a declaração não retrata aquela vontade.

Portanto, o facto que constitui a causa petendi da qual a recorrente faz derivar o apontado direito potestativo de anulação é o erro na declaração, referido um dos elementos do contrato processual de transacção: o valor de uma das prestações por morte do trabalhador – o subsídio por despesas de funeral.

O facto de que, no ver da recorrente, emerge o direito alegado, é, assim, inteiramente estranho ao facto do acidente de trabalho – entendido como aquele que se verifica no local e no tempo de trabalho e produza, directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou morte (artº 8º, nº da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro).

A fonte do direito alegado, o facto de que, segundo a recorrente, esse direito procede não é o acidente de trabalho, mas o erro na declaração. E o direito para o qual a recorrente reclama tutela jurisdicional é o direito potestativo de anular o contrato processual através do qual foi composta a acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho – e não qualquer destes últimos direitos. Numa palavra: a causa de pedir desenhada pela recorrente na petição inicial não é constituída pela responsabilidade acidentária; a pretensão que faz derivar dessa causa petendi não é constituída pelo direito à reparação dos danos causados pelo acidente de trabalho.

É, portanto, à luz deste objecto – pedido e causa de pedir – assim sumariamente caracterizado que a competência do tribunal recorrido deve ser aferida.

E face a esse objecto tem-se por certo que a competência para o apreciar não cabe ao tribunal do trabalho – mas ao tribunal recorrido.

Realmente, a anulação de negócios jurídicos processuais não se compreende no perímetro da competência do tribunal de trabalho. Ergo, por força do carácter residual da competência do tribunal recorrido – dado o seu carácter genérico - é a ele que pertence tal competência. Desde que o objecto da causa não é representado por direitos emergentes de acidente de trabalho – mas pelo direito de anulação de um contrato processual -, a preparação e julgamento da causa é da competência do tribunal a quo.

A circunstância de aquele negócio processual ter por objecto direitos emergentes de acidente de trabalho é, de todo, indiferente, para o problema da determinação do tribunal competente.

Uma vez que o objecto da causa não são esses direitos - mas um direito diverso, assente numa causa petendi radicalmente diferente do acidente de trabalho -, a situação jurídica deve ser apreciada no tribunal de competência genérica e não no tribunal de competência especializada – o tribunal do trabalho.

 A conclusão tirada pela decisão recorrida sobre a incompetência material do tribunal de que provém o recurso não é, pois, juridicamente conforme. A sua revogação é, por isso, meramente consequencial.

Esta conclusão – face ao sistema de substituição a que obedece o julgamento por esta Relação – vincula, porém, à apreciação da pretensão material da recorrente: o direito potestativo de anulação do negócio processual concluído na jurisdição laboral através da qual contratualizou com a beneficiária da indemnização por morte, resultante de acidente de trabalho, as prestações correspondentes.

3.3. Anulação do contrato processual de transacção.

Entre as formas de composição da acção conta-se o negócio processual.

Os negócios processuais são negócios que produzem directamente efeitos processuais, i.e., são os actos processuais de carácter negocial que constituem, modificam ou extinguem uma situação processual.

Dado o seu carácter negocial, os negócios processuais requerem não só a vontade de produzir a declaração negocial – vontade da acção – e de através desta exprimir um pensamento – vontade da declaração – como também a vontade de produzir um certo efeito – vontade de resultado - no processo pendente ou futuro. Se o negócio processual for bilateral, fala-se em contrato processual de que constitui exemplo acabado a transacção. Se for concluída na pendência da causa, aquele negócio processual diz-se interlocutório e destina-se a conformar a decisão do processo (artº 293º, nº 1 e 295º, nº 2 do CPC). Dada a sua função esse negócio constitui causa de extinção da instância e do processo pendente (artºs 287º, d) e 294º do CPC).

A transacção – como qualquer outro negócio processual que conforme a decisão da causa – exige os requisitos gerais de qualquer negócio jurídico, nomeadamente quanto aos sujeitos, à vontade e sua exteriorização e ao objecto negocial.

Expressão desse regime comum é justamente a possibilidade de a transacção – tal como a confissão e a desistência - poder ser declarada nula ou anulada como os actos de idêntica natureza negocial, apenas com a especialidade de que, quanto à confissão, o erro apesar de dever ser essencial, pode ser culposo (artº 301º, nº 1 do CPC).

A acção de nulidade ou de anulação pode ser instaurada após o trânsito em julgado da sentença homologatória do negócio processual (artº 301º, nº 2 do CPC). Obtida essa declaração de nulidade ou anulação depois do trânsito em julgado daquela sentença, a parte pode impugná-la no recurso extraordinário de revisão (artº 771º, nº 1, d) do CPC). Se a fase rescindente da revisão terminar com o reconhecimento do fundamento invocado, segue-se a fase rescisória que consiste, nessa hipótese, numa nova instrução e julgamento da causa, aproveitando-se apenas a parte do processo que o fundamento de revisão não tenha prejudicado (artºs 776º, c) do CPC).

A composição da acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho pode, evidentemente, ser obtida através de acordo, rectius, através de contrato processual de transacção (artºs 109º a 115º do Código de Processo do Trabalho).

Como se notou, esse acordo exige os requisitos gerais de qualquer negócio jurídico, nomeadamente quanto à exteriorização da vontade.

                Pode, assim, dar-se o caso na conclusão daquele negócio jurídico processual, a vontade declarada por uma das partes não corresponder, inintencionalmente, à sua vontade real, existente mas de sentido diverso. Quando isso ocorre, estamos, decerto, perante um erro na declaração, erro-obstáculo ou erro obstativo: a vontade da declaração existe com certo conteúdo, simplesmente, não coincide com a vontade declarada; a vontade real e a declarada são divergentes (artº 247º do Código Civil). A lei não delimita os elementos sobre que pode recair o erro na declaração, para que seja relevante: esse elemento pode ser qualquer um, desde que essencial para o declaratário.

Todavia, para que releve, o erro na declaração exige – mas só exige – dois requisitos: a essencialidade, para o declarante do elemento sobre que recaiu o erro; o conhecimento dessa essencialidade para o declaratório, ou o dever de a conhecer[4]. Não se reclama, por exemplo, a desculpabilidade do erro[5].

 A essencialidade e o conhecimento – ou as circunstâncias que originam o dever de conhecer – devem, naturalmente, ser alegadas e provadas pela parte interessada na anulação do negócio[6].

Reunidos estes dois requisitos, o negócio é anulável (artº 247º do Código Civil).

                Pode, porém, suceder que a invalidade não diga respeito a todo o negócio mas apenas a parte dele, i.e., que a invalidade seja meramente parcial. Assim ocorre quando a causa de invalidade atinge apenas uma ou algumas das cláusulas ou das convenções e ainda quando a invalidade resulta de uma estipulação de algo excessivo, por exemplo, uma taxa de juro superior ao limite fixado na lei. A invalidade parcial do negócio pode implicar, ou não, a invalidade total dele. Quando não acarrete a invalidade total do negócio, este manter-se-á válido na parte não afectada pela causa dessa mesma invalidade. Por aplicação de um nítido princípio de favor negotii, dá-se a redução, sempre que, num caso de invalidade parcial, se mantenha como válida a parte sã do negócio, sendo declarada nula ou anulada apenas a parte dele que se mostre viciada (artº 292º do Código Civil).

Todavia, para que haja redução é necessário que o negócio seja divisível, i.e., que seja possível separá-lo numa parte que é inválida e noutra que se mantém válida: se o negócio for indivisível, a sua redução não será possível e a invalidade parcial terá por consequência irremissível a sua invalidade total (artº 292º, in fine, do Código Civil).

O critério da divisibilidade e, correspondentemente, o da redutabilidade do negócio que só parcialmente é inválido, assenta, em última extremidade na vontade negocial das partes, dependendo, em última análise do que teria sido a sua vontade negocial caso tivessem previsto o vício.

É comum falar-se a este propósito de presunção de divisibilidade[7] ou de presunção de redutibilidade. Mesmo abstraindo do facto de não se tratar de uma presunção proprio sensu – dado que a presunção se refere à inferência da verificação de factos e não da vigência de regimes jurídicos – a verdade é que uma tal presunção colide com o princípio indiscutido da integralidade do cumprimento (artºs 350º e 763º do Código Civil).

Seja como for, a redução só não opera quando se mostre que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada, para o que é suficiente a demonstração, pelas circunstâncias objectivas, ou pela vontade real de uma das partes, conhecida pela outra, ou pela sua vontade hipotética e pela boa fé, que, sem a parte viciada, aquele concreto negócio não teria sido concluído (artºs 236º e 239º do Código Civil).

                Este viaticum habilita, com suficiência, à apreciação do pedido – material – da recorrente de anulação do contrato processual que concluiu com a recorrida, através do qual foi composta a acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho.

                A recorrente e a recorrida concluíram, no contexto daquela acção, um contrato processual – acordo – através do qual contratualizaram as prestações devidas pela primeira à segunda em consequência do acidente de trabalho que vitimou o cônjuge da última.

Todavia, no tocante a uma das prestações em que se desdobra a indemnização por morte do trabalhador – o subsídio por despesas de funeral – a recorrente exteriorizou a vontade de aceitar o seu pagamento - mas o pagamento pelo seu valor real, documentado nos documentos de despesas juntos pela recorrida, beneficiária também dessa prestação. Assim, ao passo que a sua vontade real consistia em aceitar o pagamento do custo real, documentado, das despesas com o funeral, exteriorizou, por lapso, uma vontade diferente – e que ficou a constar do auto no qual foi documentado o acordo – a de pagar a quantia proposta pelo Ministério Público, correspondente ao valor máximo legalmente admissível dessa prestação, superior em € 657,31 ao seu valor real, demonstrado pelos documentos de despesa oferecidos pela recorrida.

A declaração da recorrente foi, pois, ferida por erro na declaração ou erro-obstáculo. E esse erro foi essencial, já que, naquele contexto, a recorrente não teria emitido a declaração de aceitação do pagamento daquela prestação pecuniária com o sentido que, por causa do erro, acabou por exteriorizar. Se a recorrente conhecesse esse erro não teria, decerto, emitido, tal como o foi, aquela declaração de aceitação. E essa essencialidade do erro, como se diz, ou essencialidade do elemento sobre que esse erro incidiu, era conhecida da recorrida – declaratário. Esta conclusão impõe-se pela circunstância de a recorrida conhecer o custo real das despesas, dado que foi ela que ofereceu os documentos comprovativos da sua realização – produzidos pelos prestadores do serviço a quem ela mesma os pagou – e, portanto, que a recorrente só aceitaria pagar-lhe o valor real dessa despesa e não um valor superior, equivalente ao valor máximo, legalmente admissível.

Todavia, o erro que feriu a declaração de vontade da recorrente, embora essencial, é meramente parcial. Realmente aquela essencialidade não é absoluta - mas relativa, dado que a divergência entre a vontade real e a declarada se traduz numa redução de elementos quantitativos do negócio: aceitou pagar um valor superior das despesas com o funeral, quando teria aceitado – e queria aceitar - pagar apenas o seu valor real, documentado no processo. A essencialidade do erro é, aliás, parcial ou relativa num duplo sentido: no sentido de que não diz respeito a todas as prestações objecto do negócio processual – mas apenas a uma delas: com o significado de que, mesmo relativamente a essa prestação, a recorrente queria proceder ao seu pagamento – embora apenas pelo valor real da respectiva despesa e não por valor superior.

                Quer dizer: a essencialidade do erro na declaração em que a impugnante incorreu, de um aspecto, não respeita à totalidade do negócio processual – mas apenas a parte dele, de outro, mesmo no tocante a essa parte daquele negócio, aquela essencialidade é referida apenas a um segmento dela. Aquele erro não influiu na conclusão do negócio processual em si mesmo – a recorrente queria, realmente, contratualizar com a recorrida uma solução do litigio – mas apenas nos termos em que foi concluído e relativamente a um aspecto particular: o valor do subsídio por despesas de funeral.

A invalidade, por anulabilidade, fundada no erro que feriu a declaração da recorrente, do negócio processual é, pois, puramente parcial e a eficácia jurídica autónoma da parte restante não é afectada por essa invalidade. Como se notou, a nossa lei acolhe como regra a redução do negócio jurídico parcialmente inválido, que, assim, é aproveitado na parte restante não afectada pela invalidade, contanto, claro, que satisfaça os requisitos legais do tipo negocial utilizado.

A redução do negócio jurídico parcialmente inválido opera automaticamente – não tem que ser requerida[8]. Em qualquer caso, é à parte que não pretende a redução do negócio parcialmente inválido que terá de pedir a declaração de nulidade ou a anulação de todo ele, alegando e provando que este não teria sido concluído sem a parte viciada (artº 342º, nº 1 do Código Civil)[9].

A recorrente pede que se anule, sem qualquer restrição, o acordo – todo o acordo. Todavia, não estão provados – por não terem sido alegados - factos que inculquem que, sem a parte viciada, o negócio processual apontado não teria sido concluído.

Como o ónus dessa prova competia à recorrente, deve recusar-se-lhe a anulação total do negócio jurídico processual (artºs 346º, in fine, do Código Civil e 519º do CPC).

Nestas condições, deve anular-se aquele negócio adjectivo – mas apenas no tocante à prestação do subsídio por despesas de funeral e só relativamente à diferença entre o valor real dessas despesas – que era vontade real da recorrente pagar – e o valor superior que, por erro, declarou aceitar pagar.

O recurso deve, pois, proceder – mas apenas parcialmente.

A recorrente declara, na petição inicial e na conclusão da sua alegação do recurso, que, uma vez anulada a transacção voltará ao Tribunal do Trabalho a intervir quanto às questões a resolver na esfera da sua competência, nomeadamente a convocação das partes para uma nova transacção. É claro que de harmonia com o princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo é àquelas que incumbe a definição do respectivo objecto, através da definição do pedido e da invocação da respectiva causa de pedir.

Todavia, há que ponderar o seguinte: se a sentença homologatória do acordo, parcialmente anulado, transitou em julgado, não é suficiente a acção de anulação; deve seguir-se-lhe a interposição de recurso de extraordinário de revisão, dirigido contra a sentença homologatória, com a finalidade de destruir os efeitos desta (artº 771º, d) do CPC)[10]. A exigência desta duplicação de meios – acção e recurso – assenta na distinção entre efeitos – negociais – do negócio jurídico processual e os efeitos – processuais – da sentença que o homologa. O sistema é, pois - desnecessariamente complexo – complexidade que contrasta vivamente com o valor económico da prestação a que se refere o erro da recorrente - € 657,31.

A recorrente e a recorrida deverão suportar, porque sucumbem reciprocamente, no recurso, as custas deles.

                Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6º, nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julga-se o recurso parcialmente procedente, e, consequentemente:

a) Revoga-se a decisão impugnada;

                b) Anula-se o acordo concluído entre a recorrente, Companhia de Seguros A…, SA, e a recorrida, M…., na tentativa de conciliação, realizada no dia 2 de Fevereiro de 2011, no âmbito do processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, que correu termos sob o nº 246/10 no Tribunal do Trabalho da Guarda, no segmento relativo ao subsídio por despesas de funeral, na parte correspondente à diferença entre a quantia € 3.689,14 – constante do auto de conciliação - e a de € 3.031,83, valor real daquelas despesas.

                Custas pela recorrente e pela recorrida, na proporção da respectiva sucumbência, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP.

                                                                                                                                             12.09.11.


[1] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, págs. 85 e 86.
[2] Note-se, porém, que, por força do princípio da auto-suficiência do processo, o tribunal incompetente para se pronunciar sobre o mérito da acção tem competência para se pronunciar sobre a sua competência. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, 1993, pág. 46.
[3] Acs. da RE de 20.02.86, BMJ nº 356, pág. 456; RP de 05.06.86, BMJ nº 358, pág. 606 e RC de 07.07.93, CJ, 93, IV, pág. 33.
[4] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 606, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, 2ª edição,Lisboa, Lex, 1996, pág. 276, e José Alberto Vieira, Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra, 2009, pág. 60.
[5] Acs. da RL de 13.12.73, BMJ nº 22, pág. 463, e de 08.01.75, BMJ nº 243, pág. 313 e do STJ de 06.12.77, BMJ nº 272, pág. 189.
[6] Acs. do STJ de 23.03.76, BMJ nº 255, pág. 133, e de 31.05.84, BMJ nº 337, pág. 366, da RE de 26.09.95, CJ, XX, IV, pág. 266, da RL de 09.05.96, CJ, XXI, III, pág. 84.
[7] Assim, por exemplo, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pág. 404 e RDES, 1993, pág. 196, e Ac. do STJ de 16.12.99, CJ, STJ, VII, III, pág. 147.
[8] José Alberto Vieira, Negócio Jurídico, cit., pág. 117; em sentido diverso, porém, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, Coimbra, 2003, pág. 422.
[9] José Alberto Vieira, Negócio Jurídico, cit., pág. 117 e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, cit., pág. 663.
[10] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, Coimbra, 1999, págs. 535 e 536.