Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3518/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
MOMENTO EM QUE É AFERIDA A DESNECESSIDADE
Data do Acordão: 02/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1569º, Nº 2 DO C.C.
Sumário: I – A desnecessidade da servidão traduz-se numa situação em que se conclui que o prédio dominante não precisa da servidão.
II – A lei (artº 1569º, nº 2, do Código Civil) exige que a desnecessidade da permanência da servidão deve ser aferida pelo momento da introdução da acção em juízo.
III – No entanto, a desnecessidade tem de ser aferida pela situação existente no momento em que a acção é proposta, e não só após a realização de alterações a levar a cabo no prédio dominante determinada na sentença
Decisão Texto Integral: 12

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e marido, B..., instauraram, em 27/02/2003, pelo Tribunal Judicial de Coimbra, a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra C... e mulher, D..., com o fim de obterem a condenação destes a reconhecerem que o seu prédio, a seguir identificado, se encontra onerado, a favor do imóvel deles, autores, com uma servidão de pé, tractor e animais, no modo e forma descritos na petição, isto é, uma servidão de passagem, com início numa estrada de inquilinos que atravessa o prédio dos réus, numa distância de 12,5 metros de comprimento, até ao prédio dos autores, por 2,5 metros de largura.
Pedem ainda a condenação dos réus a reconhecerem que tal servidão vem sendo utilizada pelos autores e seus antecessores, na plenitude dos direitos que suporta, há mais de 20 anos, duma forma pública, pacífica, contínua e com sinais visíveis e permanentes, e a não impedirem o exercício do respectivo direito, abstendo-se da prática de quaisquer actos que contrariem ou dificultem, nomeadamente, retirarem o portão que se encontra fechado a cadeado, os troncos, madeiras e demais objectos existentes no leito da serventia, bem como tapar a cova aberta, por forma a que os autores, ou quem se dirija ao seu prédio, nele possam entrar e sair permanentemente, através da referida serventia.
Pedem, por fim, que os réus sejam condenados a pagar aos autores uma indemnização por todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais, cujo montante se liquidará em execução de sentença.


Para tanto, alegam que o seu prédio é uma terra de cultura inscrita na respectiva matriz predial da freguesia de S. Silvestre, sob o artigo 1075, que tem serventia pelo prédio dos réus, os quais têm vindo a impedir os autores de aceder ao prédio em causa através da dita serventia, onde colocaram uma cancela de madeira a vedar a entrada, o que lhes tem causado prejuízos e daí os pedidos, pois os autores pretendem voltar a circular pela dita serventia e ser indemnizados dos danos que sofreram por não poderem aceder ao seu prédio.
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Os réus contestaram e deduziram reconvenção.
Quanto à contestação, alegam que pelo facto de serem amigos, os réus sempre permitiram que o Sr. José Branco Ferreira, pai da autora, utilizasse o terreno dos réus para passar para o terreno dele, sendo a passagem em causa numa distância de 12,5 metros de comprimento, por 2 metros de largura, no terreno dos réus.
Quando os autores adquiriram o referido terreno, em processo de partilhas, os réus continuaram a permitir a passagem no próprio terreno e os autores respeitavam as áreas cedidas pelos réus para o efeito, designadamente um caminho com 2 metros de largura.
No entanto, há cerca de 4 anos, os autores começaram a utilizar um tractor cisterna para se deslocarem para o seu terreno, com cerca de 4 metros de largura, e começaram a passar por terreno que não pertencia à servidão e a causar diversos danos no terreno dos réus, o que motivou que estes tivessem colocado dois pilares em cimento, um de cada lado da entrada, de forma a delimitar a largura da passagem, pilares estes que os autores acabaram por danificar ao passar.
Por causa dos danos que os autores causavam, os réus, para os evitar, mandaram abrir um fosso na referida passagem, a fim de impedir o devassamento da sua propriedade, mas os autores continuaram a passar e a danificar as suas sementeiras, pelo que os réus se viram forçados a colocar uma cancela em madeira a vedar a passagem.
No entanto, os Autores continuam a aceder ao seu prédio através de outra servidão e sobre o terreno de uma senhora chamada Emília de Jesus Bogalho, negando os réus, por tal razão, que os autores tenham sofrido quaisquer danos.
Em reconvenção, os réus alegam que o prédio dos autores confina com a via pública e que podem aceder ao seu prédio através desta, razão porque a servidão invocada pelos autores é desnecessária, e, sendo assim, pedem, em reconvenção, a sua extinção.
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Os autores apresentaram resposta, alegando que, muito embora seja verdade que o seu prédio confina com a via pública, tal não permite dispensar a servidão, pela razão de que entre o seu prédio e a via pública existe uma diferença de nível não inferior a 1,5 metros.
Por outro lado, as filas de videiras iniciam-se nas proximidades da via pública, razão porque a construção de uma servidão iria inutilizar parte importante da vinha, causando um prejuízo superior ao eventual prejuízo que os réus invocam.
Negam que o tractor que utilizam tenha causado qualquer estrago e referem que não têm qualquer direito de passagem por qualquer outro lado, além da servidão em questão.
Concluíram pela improcedência do pedido reconvencional.
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Entretanto, por força do valor da reconvenção, e nos termos do dispsto no artº 308º, nº 2, do C.P.Civil, passou o processo a seguir sob a forma ordinária.
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Foi, depois, elaborado o despacho saneador, e organizada a selecção dos factos considerados assentes e dos que constituem a base instrutória, sem reclamações.

Realizado o julgamento, com gravação da prova e inspecção judicial ao local, foi decidida a matéria de facto controvertida sem reclamações, após o que foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente improcedente e totalmente improcedente a reconvenção.


Para assim decidir, baseou-se o Sr. Juiz na seguinte matéria de facto:
Factos Assentes:
a) - Os autores são proprietários do seguinte prédio rústico: Terra de cultura com 15 oliveiras e vinha, sita no lugar de Murteira, a confrontar de Norte com Manuel Vaz de Carvalho, Nascente e Sul com serventia e Poente com caminho, inscrito na respectiva matriz predial da freguesia de S. Silvestre, sob o artigo 1075.
b) - Este imóvel veio à titularidade e posse dos autores por o haverem adquirido por partilhas, decorrente do processo de Inventário Obrigatório n.º 28, que transitou em julgado em 07/01/1985, em que foi inventariada Emília de Jesus Mendes e inventariante José Branco Ferreira.
c) - Os autores, por si e antecessores, sempre utilizaram o referido imóvel, tratando dele, nele entrando e saindo sempre que tal fosse necessário.
d) - Para acesso ao prédio dos autores existe uma servidão de passagem, que tem início numa estrada de inquilinos que atravessa o prédio dos réus, numa distância de 12,5 metros de comprimento, até ao prédio dos autores, por, pelo menos, dois metros de largura.
e) - A utilização desta servidão tem vindo a processar-se há mais de 20 anos, quer pelos autores, quer pelos seus antecessores, à vista de todos, sem qualquer oposição de terceiros, de forma contínua e ininterrupta, estando os autores e seus antecessores convencidos de que actuavam no pleno gozo e uso de um direito e sem prejuízo de terceiros.
f) - Os réus, durante o ano de 2002, colocaram dois pilares a definir a entrada da serventia.
g) - Os réus mandaram abrir um fosso na referida passagem, junto à extrema que dá acesso ao terreno dos autores a fim de impedir a passagem dos autores com tractor.
h) - Os réus colocaram uma cancela em madeira a vedar o caminho de servidão fechada a cadeado - al. h ).


i) - Existe um caminho público que serve a frente dos terrenos dos autores e réus (representada na fotografia que constitui o documento n.º 7 da contestação).
j) - Os autores podem abrir uma passagem, directamente do caminho público referido na al. i ) para o seu terreno.

Base Instrutória:
1º - A servidão referida na al. d ) tem 2 metros de largura na sua extensão, sendo a largura da entrada de 2,73 metros.
2º - Esta serventia continua para além do prédio dos autores, servindo outro prédio.
3º - Até às sementeiras do ano transacto, os réus permitiam a passagem dos autores, quer a pé, quer de tractor.
4º - Os réus, durante o ano de 2002, colocaram dois pilares a definir a entrada da serventia.
5º - E amontoaram lenha ao longo do leito daquela serventia.
6º - Os factos dos quesitos 4 e 5 e alíneas f ), g ) e h ) impediram a utilização daquela servidão e o acesso ao terreno dos autores.
7º - Não podendo utilizar o tractor para preparar e semear a terra.
8º - Situação que causou aos autores incómodos e revolta.
9º - A zona sul do terreno dos autores encontra-se praticamente toda cultivada com « vinha aramada », o que permite uma mecanização do seu tratamento, torna-se indispensável o uso do tractor.
10º - Tendo o uso do tractor importância determinante na fruição da parte norte deste terreno, pois trata-se de uma terra de semeadura, que só é rentável se explorada através desta máquina agrícola.
11º e 12º - O pai da autora, José Branco Ferreira, tem passado pelo terreno dos réus a fim de passar para o terreno dele, situação que se verificou também relativamente a um terceiro terreno, confinante com o dos autores, hoje propriedade de Emília de Jesus Bogalho.
13º e 14º - Quando os autores adquiriram o terreno da al. a ) passavam pelo terreno dos réus respeitando o caminho da servidão que tinha 2 metros de largura e, há cerca de 4 anos, os autores começaram a utilizar um tractor para se deslocarem para o seu terreno.
15º - Tractor este que tem cerca de 1,90 metros de largura.
16º - Os autores começaram a passar por cima do terreno semeado dos réus na parte situada à entrada da passagem, isto é, no espaço necessário ao endireitamento do tractor após este passar pela entrada da servidão.
17º e 18º - Os autores para conseguirem entrar no terreno dos réus com o tractor, necessitavam de passar por um terreno paralelo, propriedade de João Lourenço Branco Ferreira, o qual, insatisfeito com a situação, vedou a entrada/saída existente no seu terreno com placas de cimento.
19º - O carvalho foi danificado devido à entrada de veículos no terreno dos réus.
21º - Os dois pilares em cimento colocados pelos réus destinaram-se a delimitar a largura da passagem.
22º - Os autores não se abstiveram de passar com o tractor e danificaram os pilares lá colocados.
23º - Depois de aberto o fosso, os autores continuaram a passar e a danificar as sementeiras dos réus.
24º - Os réus colocaram a cancela em madeira para evitar que os autores continuassem a passar e a danificar as sementeiras dos réus.
26º - O autor tratou as videiras.
27º-A - O facto de os réus terem vedado a passagem pelo seu terreno não impediu os autores de continuarem a aceder à sua vinha e a amanhá-la.
28º - A passagem do tractor dos autores causa a destruição de arbustos e sementeiras dos réus, mas só dos arbustos que ficam na entrada do prédio e das sementeiras que ficam logo a seguir à entrada, compreendidas no espaço necessário ao endireitamento do tractor após este passar pela entrada da servidão.
29º - O desnível existente entre o caminho público referido na al. i ) e o terreno dos autores é de 1,30 metros na estrema poente e de 1,40 metros de altura na estrema nascente, sendo o terreno mais alto.
30º - As carreiras de vinha aramada do prédio dos autores ficam a 6 metros do caminho.
31º - Trata-se de uma vinha com vários anos.
32º - Ao abrir-se uma serventia a partir do prédio dos autores para aquele caminho público, os autores sofreriam prejuízos, quer pelo investimento já feito, quer pela quantidade de cepas que teriam que abater, quer pela área de cultivo que iria ser inutilizada.
33º - Prejuízo superior ao eventual prejuízo que os réus invocam.
35º - A servidão em causa atravessa e divide ao meio os terrenos quer dos autores, quer dos réus.
36º - Os autores na parte sul do seu terreno têm vinha aramada e no meio destas carreiras semeiam batatas.
37º - Enquanto na parte norte do mesmo, a terra destina-se essencialmente ao cultivo de cereais.
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Inconformados com a sentença, apelaram os réus, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1- Impugna-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto supra referida e nos pontos concretos que estão incorrectamente julgados, através da oferecida prova testemunhal e documental, conforme acima se concretiza.
2- Deve o Tribunal ad quem reapreciar tais provas e alkterar a decisão sobre a matéria de facto em causa, nomeadamente decidir que:
a) O prédio dos Réus se encontrou onerado, a favor do prédio dos Autores, com uma servidão de pé, tractor e animais, no modo e forma descritos nas als. d) e e) e quesito 1º;
b) Tal servidão, foi utilizada pelos Autores e seus antecessores, na plenitude dos direitos que suportou, há mais de 20 anos, duma forma pública, pacifica, continua e com sinais visíveis e permanentes;
c) Julgar procedente a reconvenção, e em consequência declarar extinta a servidão existente, por desnecessidade, nos termos do artº 1569º, nº 2 C.C.
d) Considerando o exposto, absolver os Réus do pedido. Porquanto:
3- O facto de os Réus terem fechado o acesso à servidão, não impediu os Autores de acederem ao seu terreno, utilizando o tractor para preparar e semear a terra.
4- Não ter sido provado que os Autores tenham tido incómodos ou sofrido qualquer prejuízo.
5- Os Autores ao utilizarem a servidão, passavam por cima do terreno semeado dos Réus e não apenas na parte situada à entrada da passagem.
6- Os Autores, após a interdição de passagem na servidão, trataram a vinha e cultivaram o terreno com milho, recorrendo ao uso de tractor e outras máquinas agrícolas.
7- Trata-se de uma vinha que tem vindo a ser renovada.
8- Não foi provado que os Autores sofram prejuízos pela abertura de uma serventia a partir do próprio terreno para o caminho público, pois não se provou que fosse necessário abater cepas de vinha.
9- Nem que os prejuízos que viessem a sofrer sejam superiores aqueles que os Réus sofrem.
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Os autores contra-alegaram, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil - diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

I – Começam os recorrentes por impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, afirmando que deve este Tribunal reapreciar tais provas (testemunhal e documental) e alterar a decisão sobre a matéria de facto em causa.
No que diz respeito à modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, a linha dominante de orientação vai no sentido de a intervenção do tribunal da relação assumir uma feição meramente residual, no sentido de que tal função correctora só terá lugar se se vier a verificar – naturalmente apenas em casos limite – uma situação em que se afigura nada plausível, face ao conjunto da produção da prova, a formação da convicção do julgador, continuando, pois, a prevalecer a primacial regra da livre apreciação das provas, tal como vem enunciada no artº 655º.
Isso mesmo se colhe do preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, onde se refere que a garantia do duplo grau de jurisdição “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente terá sempre o ónus de apontar claramente (…)”.
Pois, como já tem sido dito em diversos Acórdãos desta Relação, é preciso não olvidar que esta garantia não pode, em si, subverter o referido princípio da livre apreciação das provas, entrando na formação dessa convicção elementos que, de modo algum, no sistema de gravação sonora dos meios probatórios oralmente prestados – ou até de qualquer outro meio alternativo, como o de estenografia, computorização, taquigrafia, transcrição ou extracção de simples resumo dos depoimentos feita pelo juiz que preside à produção da prova – podem ser importados para a gravação, como sejam aqueles elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo exterior do depoente que influem, quase tanto como as palavras, no crédito a prestar-lhe, existindo actos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, pág. 257, e Eurico Lopes Cardoso, BMJ 80º-220/221).
Como diz Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, 2º, pág. 635), o princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração, cabendo ao julgador, por força dos mesmos, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência aplicáveis.
È de harmonia com o dito princípio – e é óbvio que prova livre não significa prova arbitrária ou irracional, mas sim prova apreciada com inteira liberdade pelo julgador, em conformidade com as regras da experiência e com as que regulam a actividade mental (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, pág. 245) – que as provas são apreciadas sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo coma convicção que geram no espírito do julgador acerca da existência de cada facto (cfr. Ac. R.L. de 27/03/2001, CJ, T2-87).
Como também já se aflorou, o tribunal de segunda instância não vai à procura de uma nova convicção, competindo-lhe, antes, averiguar se aquela que foi alcançada na 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova, com os demais elementos existentes nos autos, pode exibir perante si (crf. Ac. R.C. de 03/10/2000, CJ, T4-27).

Tendo em conta tais factores de risco, e uma vez que os depoimentos foram gravados, vejamos se se mostram cumpridos os ónus impostos pelo artº 690º-A.
Dispõe esta norma (na sua actual redacção, após as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto) que, quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente obrigatoriamente especifique, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e que, neste último caso, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artº 522º-C.
Resulta desse normativo que devem ser indicados com clareza os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, por referência à Base Instrutória onde estão enquadrados, como é óbvio, e, por outro lado, devem indicados os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.
Ora, os recorrentes, além de terem procedido à transcrição dos depoimentos na própria alegação do recurso (o que é incorrecto do ponto de vista processual, já que torna a alegação demasiado extensa e confusa), não deram cumprimento à condição indicada em primeiro lugar, visto que não indicaram, com clareza, os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados.
Haveria, assim, que rejeitar o recurso sobre a matéria de facto com base nos depoimentos das testemunhas.
Mas, ainda que se considere que estamos a ser demasiado rigorosos, uma vez que, de qualquer forma, os recorrentes indicaram as matérias [cfr. als. a) a i)] que consideram incorrectamente julgadas, entendemos que, ouvidos os depoimentos das testemunhas indicadas na alegação do recurso, não detectamos qualquer erro de julgamento que nos leve a conclusão diferente da alcançada na 1ª instância, visto tais depoimentos serem pouco convincentes, não merecendo, assim, grande credibilidade, como não mereceram por parte do Sr. Juiz do Tribunal de 1ª instância, de forma a permitirem a alteração das respostas a quaisquer pontos da Base Instrutória.
Acresce que foram inquiridas outras testemunhas às matérias impugnadas, com posição diferente e divergente sobre os factos, nada garantindo, por isso, que são as testemunhas indicadas pelos recorrentes que estão a falar verdade e as outras a faltar à mesma, ou vice-versa.
Por outro lado, os documentos juntos aos autos, que os recorrentes não especificam, já foram levados em conta na selecção dos Factos Assentes e nas repostas aos pontos de facto da Base Instrutória.
Não nos merece, assim, qualquer censura a decisão proferida sobre a matéria de facto, que, por isso, se mantém, improcedendo, portanto, a pretensão dos recorrentes nessa parte.
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Com a matéria de facto dada como provada, e com a não provada, não merece censura a decisão recorrida no que à acção diz respeito, para cujos fundamentos se remete, fazendo uso da faculdade conferida pelo nº 5 do artº 713º.
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II – No que à reconvenção diz respeito, importa ver se deveria ter sido declarada extinta a servidão por desnecessidade, como pretendem os recorrentes.
O nº 2 do artº 1569º do Código Civil permite que as servidões constituídas por usucapião possam ser judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
Não nos diz a lei, no entanto, em que se traduz tal desnecessidade, nem se a mesma tem que ser originária ou superveniente à constituição da servidão.
Segundo o Prof. Oliveira Ascensão (Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1964, pág. 10/12), a desnecessidade tem de ser objectiva, típica e exclusiva da servidão, caracterizada por uma mudança na situação objectiva do prédio dominante verificada em momento posterior à constituição da servidão, e, em consequência da qual, perdeu utilidade para o prédio dominante.
Traduz-se, diremos nós, numa situação em que se conclui que o prédio dominante não precisa da servidão.
Parte da jurisprudência tem entendido que a desnecessidade supõe uma alteração no prédio dominante posterior à constituição da servidão (cfr., entre outros, Acs. da R.C. de 25/10/1983, CJ, T4-62, e de 16/04/2002, CJ, T2-23, da R.P. de 02/12/1986, CJ, T5-229, de 07/03/1989, CJ, T2-189, e de 26/11/2002, CJ, T5-182).
Na doutrina, o Prof. Luís Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reias, 2ª ed., pág. 438) refere que o que está em causa no nº 2 do artº 1569º é a desnecessidade superveniente, que consiste na cessação das razões que justificavam a afectação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante.


O Ac. do S.T.J. de 27/05/1999 (BMJ 487º-313) decidiu, no entanto, que o que a lei exige é a prova da desnecessidade da continuidade ou permanência da servidão, aferida essa desnecessidade (subentende-se) pelo momento da introdução da acção em juízo; não que seja necessária a prova de uma superveniência absoluta dessa desnecessidade (após a constituição da servidão), traduzida por exemplo na feitura de obras inovatórias no prédio dominante. O próprio texto da lei ao utilizar a expressão se “mostrem” desnecessárias, em vez de se “tornem” desnecessárias, parece sugerir que essa necessidade/desnecessidade pode e deve – a requerimento do interessado – ser reavaliada e sopesada – quer seja originária quer seja superveniente – à luz da realidade objectiva actual (no mesmo sentido v. o Ac. R.L. de 30/01/2003, CJ, T1- 90).
Concordamos com esta interpretação por nos parecer que está mais de acordo com o espírito e a letra da lei.
Entendemos, no entanto, que a desnecessidade tem de ser aferida pela situação existente no momento em que a acção é proposta, e não só após a realização de alterações (obras) a levar a cabo no prédio dominante determinada na sentença.
Isso resulta expressamente da letra da lei, ao exigir que a servidão se mostre desnecessária na altura em que é invocada, e não que sejam realizadas alterações que determinem essa situação de desnecessidade, sob pena de se entender que tais alterações são uma consequência da declaração de extinção.
Por outro lado, a não existir essa restrição, poderemos ser levados a concluir que, em princípio, qualquer servidão poderia ser declarada extinta por desnecessidade, desde que realizadas determinadas obras, com mais ou menos incómodos e prejuízos para o proprietário do prédio dominante, cuja avaliação, no entanto, seria incerta, já que tanto poderia ser logo calculada na sentença, como poderia ser remetida para liquidação em execução de sentença (a fase executiva da acção de arbitramento prevista no artº 1057º do Código de Processo Civil deixou de existir com a reforma de 1995/96), de qualquer modo, sempre à posteriori em relação ao momento em que deve ser aferida a desnecessidade da servidão.

No caso sub iudice, os réus/reconvintes pediram que fosse declarada extinta, por desnecessidade, a servidão em causa, alegando apenas, com interesse, para o efeito que existe uma estrada pública que serve a frente dos terrenos dos autores e réus e que os primeiros podem abrir uma passagem, directamente da estrada pública para o seu terreno.
Na sentença foi tal pedido julgado improcedente, por se entender que a servidão é necessária, pois não há outra e, embora o prédio dos autores confine com um caminho público, o certo é que existe entre ambos um desnível (constante da resposta ao ponto 29º da Base Instrutória) que inviabiliza a entrada no prédio através deste caminho.
A fundamentação da sentença está de acordo com o que atrás dissemos quanto ao aspecto de a desnecessidade ter de ser aferida pela situação existente no momento em que a acção é proposta (ou, neste caso, no momento em que a reconvenção é apresentada em juízo).
Ora, a desnecessidade que os reconvintes invocam não estava definida no momento em que foi formulado o pedido reconvencional.
Com efeito, não existe passagem do prédio dominante para o caminho público, existindo um desnível entre eles, que consta da resposta ao ponto 29º da Base Instrutória.
Só com a realização de obras no prédio dominante – obras essas de que se desconhece por completo a dimensão, custos e prejuízos para o prédio dominante, já que nada foi alegado a esse propósito – se poderia concluir pela desnecessidade da servidão.
O que contraria aquilo que dissemos a esse respeito.
Improcede, assim, também, esta pretensão dos recorrentes e, consequentemente, o recurso na totalidade.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.