Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5846/06.3TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º, Nº 1, 20º, Nº 1, 25º, Nº 1, E 27º DO CIRE
Sumário: I – A invocação do valor de créditos é ilegítima e inválida quando o requerente num processo de insolvência desconhece o valor desses créditos, razão pela qual não pode afirmar que são de elevado valor e que o requerido se encontra numa situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações.

II – Também não se pode inferir a situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações por parte do requerido pelo facto deste não proceder de forma voluntária ao seu respectivo pagamento, visto que é facto notório que muitas vezes as pessoas não pagam as suas dívidas não porque não possam mas sim porque não querem.

III – A situação de insolvência só pode ser considerada quando o devedor se encontre impossibilitado de cumprir com as suas obrigações vencidas, o que só pode ser constatado comparando, em concreto, as dívidas e os rendimentos e bens do devedor.

IV – O artº 25º, nº 1, do CIRE não exime o requerente de aduzir na petição inicial os necessários elementos factuais que possam levar à declaração de insolvência do requerido.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., residente na X..., 3105-239 Meirinhas, Pombal, veio requer a insolvência de B... e marido C..., residentes na Y..., 2405-002 Maceira, Leiria, com os fundamentos seguintes, em síntese:
A requerente emprestou, em 25-9-1999 a quantia de 1.481,43 euros aos requeridos, sendo que os requeridos não lhe restituíram tal quantia, razão por que lhes instaurou um procedimento de execução, à qual foi aposta a fórmula executória, sem que tivesse logrado obter o respectivo pagamento. Os requeridos encontram-se numa situação de impossibilidade de cumprir as obrigações, ou seja numa situação de insolvência. Existem outros credores, cuja identidade desconhece, que não viram os seus créditos ressarcidos. Desconhece quaisquer bens móveis ou imóveis aos requeridos, estando impossibilitada de obter quaisquer informações sobre o património dos requeridos
1-2- Por decisão de 12-10-2006, ao abrigo do disposto do art. 27º do CIRE, a Mª Juíza indeferiu liminarmente a petição inicial, absolvendo, em consequência, os requeridos da instância.
1-3- Não se conformando com esta decisão, dela veio recorrer a requerente, recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
1-4- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A prévia instauração da acção executiva não é requisito legal para a insolvência.
2ª- O fundamento de insuficiência de bens penhoráveis em acção executiva é só um dos 8 motivos que justificam a insolvência (art. 20º nº 1 al. e) do CIRE), quando o fundamento invocado pela requerente é o que consta do art. 20º nº 1 al. b) do CIRE-
3ª- Ilustra bem a total incapacidade dos requeridos em satisfazerem as suas obrigações, a circunstância de as buscas efectuadas não terem revelado a existência de bens de registo, terem passado quase 7 anos sobre o vencimento da prestação e a proposta de pagar o valor em mais de 50 prestações, quando o valor é relativamente baixo.
4ª- A apresentação de prova testemunhal do que pela requerente foi alegado, só é legalmente exigida desde que o requerente disponha da mesma (art. 25º nº 1 do CIRE).
5ª- O Tribunal a quo deveria ter convidado ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado, possibilitando a eliminação dos vícios alegadamente existentes (art. 27º al. b) do CIRE e arts. 265º nº 2 e 508º nº 1 al. b) do C.P.Civil).
6ª- Porque os alegados vícios do requerimento inicial ocorreram por falta de alegação, eram os mesmos passíveis de posterior sanação, pelo que não são por si só de molde a conduzir à improcedência da declaração da insolvência, inexistindo fundamento suficiente para decretar o indeferimento liminar da acção.
7ª- Foram violados os arts. 265º nº 2, 508º nº 1 al. b) do C.P.Civil, 3º nº 1, 20º nº 1 al. b), 25º nº 1, 27º nº 1 al. b) do CIRE.
Termos em que deve ser revogada a sentença.
1-5- A parte contrária não respondeu a estas alegações.
1-6- A Mª Juíza sustentou a sua decisão (fls. 45).
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- É do seguinte teor, para o que aqui interessa, o despacho recorrido:
De harmonia com o disposto no nº 1 do artº 3 do CIRE, é considerado em situação de Insolvência o devedor que se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. Neste sentido, o pedido de declaração de insolvência, faz-se por meio de petição escrita na qual são expostos os factos que integram os pressupostos de declaração requerida e se conclui pela formação do correspondente pedido. Tais pressupostos legais estão estabelecidos no artº 20º do CIRE e incluem nomeadamente a insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor (artº 20 nº 1 e) do CIRE). No caso em apreço, a requerente limitou-se a informar que emprestou dinheiro aos requeridos cuja actividade se desconhece e que desde Fevereiro de 2000 (já que o prazo de pagamento era de 6 meses) não lhe pagam a quantia de € 1.481,43, quantia esta que no domínio da injunção não tem sequer valor de recurso. E mais não disse, desconhecendo-se se após a declaração de executoriedade da Injunção, a requerente instaurou ou não a competente execução. Aliás, presume-se que não o fez, senão tê-lo-ia dito. Tal situação, coloca a ora requerente na situação de desconhecimento total do património dos requeridos, por opção. Tal como se impunha, após a declaração de executoriedade a aqui requerente deveria ter instaurado a competente executiva, nos termos da qual teriam sido desencadeadas diligências no sentido de ser conhecido o património dos requeridos, quer ao nível dos imóveis e dos móveis, com a consequente penhora e venda dos bens encontrados, aos ali executados. Não o tendo feito, o desconhecimento total em que se encontra a requerente, é, salvo devido respeito, opcional e acarreta um ónus processual que a desfavorece. Veio agora passados vários anos sobre a declaração de executoriedade de Injunção e sem nada mais ter feito, accionar a Insolvência dos requeridos, sem que estejam devidamente preenchidos, a nosso ver, por falta de alegação e demonstração, os requisitos legais constantes no artº 20º do CIRE em análise. Assim sendo, sem necessidade de outros considerandos e feita a apreciação liminar dos presentes autos, afigura-se-nos que a petição sofre de vícios insanáveis, ao nível da causa de pedir, por falta de alegação e demonstração documental, dos pressupostos legais que legitimam a apresentação do pedido de declaração de insolvência dos requeridos”.
Quer dizer, em síntese, a Mª Juíza a quo entendeu que, por falta de alegação e de demonstração, não se encontravam preenchidos os requisitos legais que levam à declaração de insolvência dos requeridos.
Como se vê compulsando a petição inicial, a agravante interpõe a presente acção com o fundamento de que os requeridos estão impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas. Para tal baseiam-se no que dispõe o art. 3º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), segundo o qual “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Para tal alega que emprestou, em 25-9-1999 a quantia de 1.481,43 euros aos requeridos, sendo que os requeridos não lhe restituíram tal quantia, razão por que lhes instaurou um procedimento de injunção (que correu sob o nº 458/2004 no Tribunal Judicial de Pombal), à qual foi aposta a fórmula executória, sem que os requeridos tivessem procedido a qualquer pagamento. Os requeridos encontram-se numa situação de impossibilidade de cumprir as obrigações, ou seja numa situação de insolvência. Existem outros credores, cuja identidade desconhece, que não viram os seus créditos ressarcidos. Tais obrigações, pelo seu valor e pelo facto dos requeridos não procederem de forma voluntária ao respectivo pagamento, revelam que estão impossibilitados de cumprir as suas obrigações. Está impossibilitada de obter quaisquer informações sobre o património dos requeridos, por força do “sigilo fiscal” invocado pelos serviços de finanças. Na Conservatória de Registo Automóvel, referem-lhe que só podem fazer pesquisas de matrículas específicas e nas conservatórias de registo predial só por artigos matriciais concretos, que a requerente desconhece. Desconhece aos requeridos quaisquer bens susceptíveis de serem penhorados, pelo que é mais que provável que não consiga obter, total ou parcial, o pagamento da dívida, pelo que é de presumir, de forma segura que os requeridos se encontram incapacitados a nível financeiro de cumprir as suas obrigações.
Quer dizer e em síntese, para além de justificar o seu crédito (ao qual foi dada forma executiva através de processo de injunção), a requerente refere que os requeridos se encontram numa situação de impossibilidade de cumprir as obrigações. Justifica este seu entendimento pelo facto de existirem outros credores desconhecidos que não viram os seus créditos ressarcidos, acrescentando que pelo seu valor e pelo facto dos requeridos não procederem de forma voluntária ao respectivo pagamento, revelam que estão impossibilitados de cumprir as suas obrigações. Refere, por fim, que não tem condições de saber se os requeridos têm bens que possam ser penhorados, estando impossibilitada de obter quaisquer informações sobre o património dos requeridos.
Somos em crer que a conclusão que a requerente aduz de que os requeridos se encontram numa situação de impossibilidade de cumprir as obrigações, é ilegítima face aos factos que referiu no sentido de justificar esse seu entendimento. Com efeito, como é bom de ver, pelo facto de existirem outros credores (desconhecidos) que não viram os seus créditos ressarcidos, não significa, peremptoriamente, que os requeridos não tenham meios para solver esses compromissos. A invocação do valor dos créditos é ilegítima e inválida, visto que, nas suas próprias palavras, desconhece o valor desses créditos, razão por que não poderá afirmar que são de elevado valor. Aliás o conceito de alto valor, sempre deverá ser relacionado com a possibilidade (ou impossibilidade) de os visados em solver dívidas. Também é evidente não se poder inferir a situação de impossibilidade de cumprir as obrigações por parte dos requeridos, pelo facto destes não procederem de forma voluntária ao respectivo pagamento, visto que é facto notório que muitas vezes as pessoas não pagam as suas dívidas não porque não possam, mas sim porque não querem. Por outro lado, diremos que, se a requerente não tem condições de saber se os requeridos têm bens que possam ser penhorados, não poderá pedir a insolvência deles, visto que, nos termos do art. 3º acima referido só pode ser “considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”, sendo que esta constatação só se poderá efectuar comparando, em concreto, as dívidas, com a possibilidade de os devedores, através dos seus rendimentos e/ou dos seus bens, poderem solver os seus compromissos obrigacionais. A este propósito, estabelece o art. 20º nº 1 al. a) do CIRE, que poderá ser declarada a insolvência, verificando-se a “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações
Quer isto tudo dizer que foi certo o juízo feito no tribunal recorrido de que a petição inicial sofre de falta de alegação dos pressupostos legais que legitimam a apresentação do pedido de declaração de insolvência dos requeridos.
Mas será que, ao invés de ter indeferido a petição, o Mº Juiz não deveria ter convidado a requerente a apresentar nova petição em que as falhas apontadas fossem supridas?
É certo que, nos termos do art. 27º nº 2 do CIRE, com vista ao aperfeiçoamento do articulado, o juiz “concede ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir os vícios sanáveis da petição, designadamente quando esta careça de requisitos legais ou não venha acompanhada dos documentos que hajam de instrui-la, nos casos em que tal falta não seja devidamente justificada”.
Porém, a nosso ver, no caso vertente, o Mº Juiz não poderia, com efeitos práticos objectivos, mandar aperfeiçoar a petição inicial, pois do que se trata aqui não é de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, mas sim do desconhecimento pela requerente, de factos imprescindíveis para que o pedido de insolvência possa proceder, ou seja, desconhecimento do montante das dívidas (vencidas) dos requeridos e da impossibilidade de meios materiais para as poderem solver. Se a requerente desconhece (como confessa) esses factos, é inútil qualquer notificação para aperfeiçoamento da petição inicial.
É certo também que, nos termos do art. 20º nº 1 al. a) do CIRE será possível pedir a insolvência dos requeridos em caso[1 Os outros casos susceptíveis de gerarem a insolvência, definidos no art. 20º nº 1 als. c) a h), estão aqui, patentemente, fora de causa.] de “suspensão generalizada do pagamento de obrigações vencidas”. Também aqui, segundo o entendimento legal, indicia-se que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, daí o ser considerado em situação de insolvência. Para além de na petição não se vislumbrar que tenha sido nesta disposição em concreto que a requerente tenha baseado o seu pedido, o certo é que também, desconhecendo os credores e os montantes dos créditos vencidos, é escusada qualquer notificação no sentido de uma melhor clarificação da situação.
Por último só uma referência muito rápida à alusão que a agravante faz do disposto no art. 25º nº 1 do CIRE, para dizer que esta disposição não exime o requerente de aduzir na petição inicial os necessários elementos factuais que levam à pretendida declaração de elementos. A disposição, na parte salientada pela agravante, impõe ao requerente a obrigatoriedade de junção dos elementos (documentais) que eventualmente possua relativamente ao activo e passivo do devedor.
A douta decisão recorrida é, pois, de confirmar.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo a douta decisão recorrida.
Custas pelos agravantes.