Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
370/08.2TACVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
Data do Acordão: 09/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECISÃO SUMÁRIA
Legislação Nacional: ART.º 121º, N.º 1, AL. A), DO C. PENAL
Sumário: A referência expressa do artigo 121º, n.º 1, al. a), do Código Penal, à “constituição de arguido” só pode ser entendida no sentido rigoroso definido nos artigos 58º e 59º, do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral: Decisão sumária
[artigo 417.º, n.º 6, alínea c), do CPP]


1. No 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, após julgamento em processo comum, perante tribunal singular, os arguidos A... e B..., devidamente identificados nos autos, foram condenados nos seguintes termos:
- O arguido A..., pela prática de um crime de casamento de conveniência, p. e p. pelo artigo 186.º, da Lei n.º 23/2007, de 04-07, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, declarada suspensa na sua execução por igual período;
- A arguida B..., também pela prática do mesmo crime, na pena de 2 (dois) anos de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, suspensão essa condicionada à frequência de um “regime de prova”, nos termos do disposto nos artigo 53.º e 54.º do Código Penal, no âmbito do qual, mediante sujeição a um plano de reinserção social, aquela seja levada a interiorizar o sentimento de responsabilidade social, naquele plano se devendo incluir necessariamente a obrigatoriedade de a arguida desenvolver uma qualquer actividade ocupacional ou formativa que venha a ser determinada e indicada pela DGRS.
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2. Imediatamente após a leitura da sentença, na acta de fls. 340, o julgador de 1.ª instância determinou a extracção de certidão das declarações prestadas pela testemunha … , Inspector do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, do processado a fls. 22 a 37 e da decisão final, e a sua entrega ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes, por lhe parecer indiciada uma forma de autoria mediata ou de co-autoria do Dr. … (Advogado, neste processo, da ora recorrente), na prática do crime pelo qual os arguidos foram julgados e condenados em 1.ª instância, acima indicado.

Pronunciando-se sobre requerimento da arguida, no sentido de a emissão e remessa da certidão ao Ministério Público ficar condicionada ao trânsito em julgado da sentença, o Sr. Juiz indeferiu tal pretensão, nos termos do despacho exarado a fls. 350/351.
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3. Inconformado, o arguido interpôs recurso quer da sentença quer dos dois despachos supra referidos, tendo formulado na respectiva motivação as conclusões descritas a fls. 388/393.
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4. Em acórdão proferido, neste Tribunal da Relação de Coimbra, no dia 30 de Março de 2011, foi julgado improcedente o recurso, relativamente às questões relativas à sentença recorrida, com manutenção integral do decidido nessa peça processual; no mais, decidiu-se a revogação do despacho supra referido, de fls. 350/351 e, em consequência, determinou-se que a certidão já passada e entregue ao Ministério Público apenas seja tida em conta após o trânsito em julgado da sentença, em função do conteúdo decisório que se vier a revelar definitivo.
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5. Tal como deixámos registado em despacho preliminar, afigura-se-nos encontrar-se extinto, por prescrição, o procedimento criminal dos autos, na parte relativa à arguida B....
Para comprovar que assim é, há que ter em conta os seguintes elementos relevantes contidos nos presentes autos:
A) A... foi constituído arguido em 5 de Agosto de 2008 (cfr. fls. 116);
B) Como decorre dos autos, B... nunca foi formalmente constituída arguida;
C) Datada de 10 de Abril de 2010, foi deduzida acusação pública contra os arguidos A... e B..., sendo-lhes imputada a prática, em co-autoria material, de um crime de casamento por conveniência, ocorrido no dia 10 de Setembro de 2007, p. e p. pelo artigo 186.º da Lei n.º 23/2007, de 04/07 (fls. 215 a 217);
D) O arguido A... foi notificado do libelo acusatório no dia 2 de Maio de 2010 (fls. 257 e 261);
E) A arguida B... não foi notificada da referida peça processual (cfr. fls. 260 e v.º);
F) Remetido o processo à distribuição, no dia 1 de Junho de 1010 foi lavrado o despacho previsto nos artigos 312.º e 313.º do CPP, do qual a arguida B... não foi regularmente notificada (cfr. fls. 271/272 e 278);
G) Na sentença condenatória de 1.ª instância, foi dado como provado, no segmento que importa ter em conta, que os «arguidos contraíram matrimónio entre si no dia 10 de Setembro de 2007, pelas 15 horas, na Conservatória do Registo Civil de Castelo Branco»;
H) Inconformada com o acórdão desta Relação de Coimbra, referido no ponto 4., a arguida B... recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 477/488), recurso que não foi admitido por despacho de fls. 500/501;
I) Interposta reclamação, nos termos do disposto no artigo 405.º, do CPP, o Exmo. Sr. Conselheiro Vice-Presidente do STJ indeferiu-a, com os fundamentos constantes de fls. 591/594;
J) A arguida interpôs, então, recurso do acórdão supra descrito para o Tribunal Constitucional, tendo invocado, previamente, justo impedimento para a apresentação do respectivo requerimento no primeiro dia útil subsequente ao termo do prazo (peremptório) de 10 dias (fls. 598/605);
K) Em acórdão de 13 de Dezembro de 2011, os Juízes da 5.ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra tiveram por inexistente o invocado justo impedimento e, em consequência, determinaram que, após trânsito em julgado, se passassem guias, na forma legal, para pagamento, pela recorrente, no prazo de 10 dias, da multa prevista na alínea a) do artigo 107.º-A, do CPP (fls. 626/629);
L) Na sequência de recurso interposto, pela arguida, daquele acórdão para o STJ, neste Tribunal, o Exmo. relator proferiu, em 26 de Abril de 2012, a decisão sumária de fls. 125 a 128 do apenso de recurso em separado, tendo determinado a baixa dos autos para o Tribunal da Relação de Coimbra para aqui, decorridos os dez dias fixados para o recorrente pagar a multa, nos termos dos artigos 107.º-A do CPP e 145.º, n.º 5, do CPC, se processar o “presente incidente” como reclamação para o Tribunal Constitucional, seguindo-se os demais termos processuais;
M) Em acórdão de 28 de Junho de 2012, transitado em 03-09-2012, o STJ indeferiu a reclamação, apresentada pela arguida, da dita decisão sumária (fls. 145/152).
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6. Estatui o artigo 118.º do Código Penal:
«1. O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:
a) (…);
b (…);
c) 5 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano, mas inferior a 5 anos;
d) (…)».
E o n.º 1 do artigo 119.º do mesmo Código:
«O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado».
Por sua vez, preceituam os artigos 120.º e 121.º, ainda do mesmo compêndio legislativo (versão do DL n.º 48/95, de 15-03, na redacção conferida pela Lei n.º 65/98, de 02-09):
O primeiro:
«1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) (…);
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
c) (…);
d) (…);
e) (…).
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.
3. A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão».
O segundo:
«1. A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;
c) (…).
d) (…).
2. Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3. A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a 2 anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo».
O crime imputado aos arguidos, cuja consumação ocorreu no dia 10 de Setembro de 2007, é punível com pena de 1 (um) a 4 (quatro) anos de prisão (cfr. artigo 186.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007).
Deste modo, corresponde-lhe o prazo de prescrição de 5 anos.
Em 05-08-2008, com a aquisição do estatuto de arguido por parte de A... (cfr. art. 58.º do CP), interrompeu-se naquela data, quanto a este, a prescrição do procedimento criminal, iniciando-se, a partir do referido marco temporal, novo prazo de 5 anos.
Consubstanciando a notificação da acusação, simultaneamente, circunstância suspensiva e interruptiva, e tendo o arguido A... sido notificado dessa peça processual em 2 de Maio de 2010, só em 2 de Maio de 3013 se iniciaria a contagem de novo prazo prescricional.
É, assim, apodíctico que, em relação a este arguido, não recorrente, não se verifica a referida causa extintiva do procedimento criminal, se por hipótese - não verificada, como veremos em seguida -, nos termos do disposto no artigo 402.º, n.º 2, al. a), do CPP, viesse a ser alterada, de qualquer forma, a condenação que lhe foi imposta.
Mas conclusão diversa temos de extrair em relação a B....
Como já ficou dito, aquela não foi formalmente constituída arguida, nos termos previstos no artigo 58.º do CPP.
Apenas adquiriu essa qualidade, ao abrigo do disposto no artigo 57.º, n.º 1, do CPP, com a dedução da acusação pública.
Coloca-se, assim, a questão de saber se também com a dedução de acusação e com a passagem do suspeito a arguido, ope legis (cfr. artigo 57.º do CPP), e não apenas com a declaração (obrigatória) de arguido (artigos 58.º e 59.º, do CPP), se deve considerar interrompido o prazo prescricional, nos termos da já citada alínea a) do n.º 1 do artigo 121.º do Código Penal.
Enuncia aquele normativo (artigo 57.º, n.º 1) que «assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal.
E consta nos artigos 58.º e 59.º:
Artigo 58.º:
«1. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido, logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;
b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial;
c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º; ou
d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.
2. A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.
(…)».
Artigo 59.º:
«1. Se, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e procede à comunicação e à indicação referidas no n.º 2 do artigo anterior.
2. A pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem.
3. (…)».
A simples leitura do artigo 57.º permite desde logo apreender o seu sentido e alcance.
Com efeito, a norma não refere a “constituição” como arguido, mas sim que “assume” a qualidade de arguido aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida a abertura da instrução.
Escrevem, a propósito, M. Simas Santos e M. Leal Henriques (Código de Processo Penal Anotado, I Vol., 2.ª edição, 1999, Editora Reis dos Livros, pág. 304):
«O artigo que ora nos ocupa fornece duas situações em que o posicionamento do suspeito perante o crime ou crimes em averiguação no processo justifica seriamente a imputação da qualidade de arguido.
Assim, passa a arguido, se ainda não o for:
- todo aquele contra quem foi deduzida acusação;
- todo aquele contra quem for requerida instrução.
No primeiro caso há já uma possibilidade razoável de o agente do crime vir a ser condenado, visto que se recolheram indícios suficientes da prática do delito (cfr. art. 283.º), pelo que se impõe acautelar a sua posição processual através de um estatuto próprio.
No segundo, também há que rodear a posição do visado no processo de cuidados particulares, na medida em que se vai entrar numa fase processual - a instrução - que tem por finalidade comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286.º).
Em qualquer destas situações, portanto, a pessoa ou pessoas visadas no processo, como eventuais agentes da infracção, encontram-se a partir daí - acusação ou requerimento para instrução - numa posição de suspeita declarada que é preciso rodear de especiais mecanismos de protecção.
A atribuição do estatuto de arguido é assim, pois, da maior importância com vista à garantia dos direitos de defesa do cidadão objecto de suspeição em processo penal, tendo ainda efeitos significativos no desenvolvimento da sua tramitação, uma vez que é a partir do momento da sua efectivação que, por exemplo, se conta o prazo para a conclusão do inquérito (cfr. arts. 276.º, n.º 3 e 107.º n.º 2)».
Neste caso, o estatuto de arguido não carece de declaração, decorrendo automaticamente da circunstância de ter sido deduzida acusação ou requerida instrução.
Pelo contrário, os artigos 58.º e 59.º exigem um acto formal, material e documentado, presidido por Magistrado ou órgão de polícia criminal no uso de competência delegada, no qual o suspeito é confrontado com os factos que constituem o objecto da queixa ou da participação criminal e com a informação dos direitos e deveres que lhe assistem.
Pelo exposto, a referência expressa do artigo 121.º, n.º 1, al. a), do CPP, à “constituição de arguido” só pode ser entendida no sentido rigoroso definido nos artigos 58.º e 59.º do mesmo diploma legal.
Teleologicamente, seria destituída de sentido outra interpretação.
Efectivamente, é sabido que a interrupção da prescrição tem como fundamento a existência de actos processuais que, ocorridos com normalidade, levam ao conhecimento do arguido a vontade de exercício da acção punitiva do Estado.
Ora, no domínio em que nos situamos, só com a constituição solene, formal, de arguido, nas precisas circunstâncias exigidas pelos artigos 58.º e 59.º do CPP, o arguido pode tomar conhecimento da pretensão do Estado em exercer a acção penal (no sentido que partilhamos, vejam-se, a título exemplificativo, os Acs. da Relação de Lisboa de 02-10-2002 e 14-01-2010, ambos publicados, o primeiro apenas o sumário, no sítio www.dgsi.pt).
A arguida não foi notificada da acusação, nem tão pouco, diga-se, do despacho que designou data para julgamento, acompanhado de cópia daquela [referimos neste contexto o que deixámos escrito no acórdão proferido em 30 de Março de 2011: «no despacho de recebimento da acusação e designação de data para realização da audiência de julgamento, o Sr. Juiz determinou a notificação dos arguidos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 113.º, n.º 1, alínea c), 313.º, n.ºs 2 e 3 e 315.º, todos do CPP, sendo que, relativamente à arguida/recorrente deveria ser previamente solicitada ao SEF informação sobre o seu paradeiro.
O despacho é sugestivo dos desígnios do Sr. Juiz, no sentido da determinação do paradeiro, então desconhecido, da arguida para que, uma vez apurado, fosse recolhido TIR, de modo a possibilitar a notificação da mesma nos termos e para o fim determinado (notificação do despacho, acompanhado de cópia da acusação, e da faculdade de a arguida apresentar contestação e rol de testemunhas), em consonância com o disposto no artigo 196.º do CPP.
Sucede que a secção omitiu o teor do despacho, tendo remetido postal simples com prova de depósito e para a morada onde, na fase de inquérito, estava comprovado a arguida não residir.
Sendo assim, acompanhamos o Ministério Público em 1.ª instância quando refere estarmos perante patente falta de notificação»].
Por tudo o que ficou dito, sem que tenham ocorrido circunstâncias suspensivas ou interruptivas da prescrição relativamente à arguida B..., desde a consumação do crime imputado à arguida, em 10-09-2007, até ao presente momento já decorreu o prazo de 5 (cinco) anos e, desde modo, quanto à mesma arguida, está extinto o procedimento criminal.
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Posto o que precede, no que concerne à arguida B..., declaro extinto, por prescrição, o procedimento criminal.
Sem tributação.
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(Processado em computador. Revisto pelo signatário)
Coimbra, 19 de Setembro de 2012