Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
691/05.6TTVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: CRÉDITO
PENHORA
ISENÇÃO
Data do Acordão: 06/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 823º, Nº 1, CPC; 1º A 8º DO DEC. LEI Nº 460/77, DE 7/11, ALTERADO PELO DL Nº 391/2007, DE 13/12
Sumário: I – Não basta o objecto prosseguido por uma pessoa colectiva para que lhe seja reconhecida a qualidade de pessoa colectiva de utilidade pública.

II – Essa qualificação não é de carácter automático, antes resulta de específicas condições de atribuição e de reconhecimento pela entidade estadual competente (artºs 1º a 8º do Dec. Lei nº 460/77, de 7/11, alterado pelo DL nº 391/2007, de 13/12).

III – O artº 823º, nº 1, do CPC, contempla a situação de bens de entidades concessionárias de serviços públicos que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.

IV – Tendo a executada subscrito os chamados Protocolos de Execução de Acções de Profilaxia Médica e Sanitária da Direcção-Geral de Veterinária (Portaria nº 178/2007, de 9/02), tais acções sanitárias têm de se reputar como um serviço público (acções de utilidade pública).

V – Os créditos por subvenções anuais relativas a esses protocolos, destinadas a apoiar a execução das referidas acções, estão isentos de penhora, nos termos do artº 823º, nº 1, do CPC.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Na pendência de execução para pagamento de quantia certa, a requerente – ali executada – deduziu oposição à penhora
A executada deduziu oposição à penhora de crédito seu sobre o Instituto A..., I.P., no montante de € 12 727,63, alegando que esse crédito representa parte da “subvenção” concedida à executada enquanto entidade envolvida na “intervenção sanitária e na erradicação das doenças dos ruminantes”, pelo que não é passível de penhora, atento o preceituado no artº 823º, nº 1 do Código de Processo Civil.
A exequente respondeu à oposição, defendendo que a executada não beneficia da qualidade de “pessoa colectiva de utilidade pública” conforme exige aquela norma do CPC e tem outras fontes de receita, pelo que “o crédito penhorado (...) não põe em risco a actividade da executada”, razões pelas quais aquele crédito não está isento de penhora.
Prosseguindo o incidente processual, o Ex.mo juiz da 1ª instância proferiu despacho decidindo pela procedência da oposição e, em consequência ordenou o imediato levantamento da penhora.

É deste despacho que a requerida vem agora agravar apresentando, nas correspondentes alegações, as seguintes conclusões:

1- Constituem receitas da executada: a) as jóias de admissão dos associados; b) as subvenções, os subsídios do estado ou de quaisquer entidades; c) os juros provenientes de importâncias depositadas.

2- As receitas da executada provêm de várias fontes, sendo que as subvenções que recebe são uma das várias modalidades de financiamento para o normal desempenho da sua actividade.

3- O crédito penhorado no montante de 12.727,63 € do Instituto A..., I. P é uma das modalidades de financiamento da executada.

4- Consagra o artº 823 nº 1 do C.P.C. que estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização que de fins de utilidade pública.

5- Não se encontra provado que o bem penhorado se encontra especialmente afecto á realização de fins de utilidade pública, nem tão pouco foram alegados factos donde o Tribunal possa concluir ou emitir tal juízo assertivo.

6- Não se pode confundir o fim ou escopo social da executada com a afectação especial de determinados bens à realização de fins de utilidade pública.

7- O bem penhorado, a subvenção que recebe do IFADAP sendo uma das várias receitas, era e é pela executada destinado ao pagamento de salários, despesas de transportes, encargos da segurança social, telefones, despesas de instalações (água, electricidade) etc.

 8- Quanto a ele não ocorre “qualquer especialidade” ou requisito que determine a sua impenhorabilidade tout court.

9- Ao aceitar-se a posição definida pelo Mº Juiz a quo verifica-se a inexequibilidade do título executivo (sentença), vendo-se a exequente confrontada com a impossibilidade de cobrar o seu crédito.

10- O crédito da Autora integra, além do mais, o pagamento de salários, sendo que à executada não lhe são conhecidos outros bens susceptíveis de penhora.

11- O Sr. Juiz a quo fez uma interpretação errada do artº 823º do C. P. C. e foram violados entre outros os arts. 120 alínea b) e artº 122 alínea a) do Cód. do Trabalho e ainda o artº 59 da C. R. P.

12 - Deve, pois, ser revogado o douto despacho de fls. por outro onde se declare a penhora do crédito e consequentemente o prosseguimento da execução com todas as consequências legais.

A requerente apresentou contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso.

Por sua vez, recebido o recurso e colhidos os vistos legais, pronunciou-se o Exmº Procurador-Geral Adjunto, defendendo que o recurso deve merecer provimento.

Não houve resposta a este parecer.


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II.  As conclusões da alegação da recorrente delimitam o objecto do recurso (arts. 684° nº 3 e 690° nº 1 do C. P. Civil), não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Decorre do exposto que a questão que importa dilucidar e resolver, o objecto do recurso, é a de saber, como refere o Ex.mo PGA, no seu parecer, da (im)penhorabilidade da subvenção concedida pelo Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas à executada para que esta desenvolva acções de intervenções sanitária na erradicação das doenças dos ruminantes.

Vejamos:

A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:
1- Por sentença proferida na acção declarativa dos autos principais, datada de 20.4.2007, transitada em julgado, a executada foi condenada a pagar à exequente € 15.723,97 (quinze mil setecentos e vinte e três euros e noventa e sete cêntimos) e as retribuições desde 21.4.2007 até ao trânsito em julgado, segundo o quantitativo mensal de € 442,32 (quatrocentos e quarenta e dois euros e trinta e dois cêntimos), com eventuais deduções, bem como os juros moratórios sobre o montante líquido devido.
2- A executada liquidou à exequente € 2.500,00 em 20.10.2007 e € 2.500,00 em 21.01.2008.
3- Por requerimento de 05.5.2008 a executada nomeou à penhora, designadamente, os “créditos resultantes de pagamentos a efectuar à executada” pelo IFADAP – Instituto A....
4- Na sequência, foi penhorado à executada a quantia de € 12.727,63 proveniente de um subsídio a creditar e a processar através do IFADAP referente ao ano económico de 2008.
5- Em 15.01.2007, a executada procedeu à alteração dos seus estatutos e da respectiva denominação para “ C...”.
6- Como “objecto e fins” da respectiva actividade foi indicada a “execução de programas de sanidade animal, de acções de melhoramento animal e de serviços de extensão e apoio agrícola” (cfr. documento de fls. 19 a 33 cujo teor se dá aqui por reproduzido), sendo que a executada, com a denominação “B... ”, já agrupava criadores de gado bovino da região de Tondela e tinha por finalidade primordial a luta contra as doenças infecto-contagiosas e parasitaras da espécie bovina.
7- A executada, na qualidade de Organização de Produtores Pecuários de .... (OPP), subscreveu os Protocolos De Execução De Acções De Profilaxia Médica E Sanitária, ao abrigo do disposto na Portaria n.º 178/2007, de 09 de Fevereiro, datados de 30.11.2007 e 24.01.2008, a que respeitam os documentos de fls. 34 e seguintes e 111 e seguintes (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
8- Em tais Protocolos a Direcção-Geral de Veterinária (DGV), na qualidade de autoridade veterinária nacional, delegou na OPP a competência para desenvolver as acções de profilaxia médica e sanitária nos efectivos dos seus associados, que compreendem a identificação e o rastreio da tuberculose bovina, brucelose bovina, leucose bovina enzoótica e brucelose dos pequenos ruminantes, de acordo com o previsto na legislação que institui e regulamenta os respectivos Panos de Erradicação, designadamente no DL n.º 114/99, de 14.4, no DL n.º 244/2000, de 27.9 e no DL n.º 272/2000, de 08.11.
9- Para a execução das acções constantes nos programas sanitários das OPP é atribuída uma subvenção anual, destinada a apoiar a execução daquelas acções, tendo em consideração os efectivos elegíveis de cada exploração.
10- A quantia de € 12 727,63 referida em d), supra, integra a subvenção anual destinada a apoiar a realização/concretização das acções previstas no Protocolo celebrado entre a Direcção-Geral de Veterinária e a executada, referente ao ano de 2008.

Prosseguindo, ao que aqui nos interessa, dispõe o artigo 823º nº 1 do Código de Processo Civil:

Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública”.
A 1ª instância considerou que a impenhorabilidade do crédito em questão, com base nesta norma, se verificava pela verificação de dois requisitos cumulativos: a qualidade de pessoa colectiva de utilidade pública por banda da executada e a afectação ou aplicação dos bens penhorados a fins de utilidade pública.
A nosso ver, contudo, não se verifica o requisito de se tratar a requerente de pessoa colectiva de entidade pública.

Como refere o Ex.mo PGA no seu parecer, não basta o objecto prosseguido pela pessoa colectiva para que lhe seja reconhecida a qualidade de pessoa colectiva de utilidade pública. Essa qualificação não é de carácter automático, antes resulta, nos termos previstos pelo Dec. Lei nº 460/77, de 7/11, (alterado pelo DL 391/2007, de 13/12) de específicas condições de atribuição e de reconhecimento pela entidade estadual competente (v. arts. 1º a 8º).

Ora, a executada não alegou nem demonstrou, como lhe competia, que foi declarada a sua qualidade de pessoa colectiva de utilidade pública.

Todavia, o artº 823º do CPC recorta ainda a situação de bens de entidades concessionárias de serviços públicos que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.

Importa, assim, verificar se a executada pode ser considerada uma entidade concessionária de serviços públicos.
Está estabelecido que tem como actividade a “execução de programas de sanidade animal, de acções de melhoramento animal e de serviços de extensão e apoio agrícola”.
Por outro lado, verifica-se que, na qualidade de Organização de Produtores Pecuários de .... (OPP), subscreveu os Protocolos De Execução De Acções De Profilaxia Médica E Sanitária, ao abrigo do disposto na Portaria n.º 178/2007, de 09 de Fevereiro, datados de 30.11.2007 e 24.01.2008. Em tais Protocolos a Direcção-Geral de Veterinária (DGV), na qualidade de autoridade veterinária nacional, delegou na OPP a competência para desenvolver as acções de profilaxia médica e sanitária nos efectivos dos seus associados, que compreendem a identificação e o rastreio da tuberculose bovina, brucelose bovina, leucose bovina enzoótica e brucelose dos pequenos ruminantes, de acordo com o previsto na legislação que institui e regulamenta os respectivos Panos de Erradicação, designadamente no DL nº 114/99, de 14.4, no DL nº 244/2000, de 27.9 e no DL nº 272/2000, de 08.11.
Como refere a decisão da 1ª instância, a Portaria nº 178/2007, de 09 de Fevereiro, regulamentou o exercício das competências ou atribuições das diferentes entidades que participam na execução das intervenções sanitárias do Programa Nacional de Saúde Animal (PNSA) bem como a modalidade de apoios do Estado às acções executadas pelas organizações de produtores pecuários (OPP) (artº 1º). A mesma Portaria definiu, designadamente, “OPP”, “Programa sanitário” e “Protocolo” como, respectivamente, “as organizações de criadores já existentes ou a criar que celebrem um protocolo com a autoridade competente para a realização de intervenções sanitárias no âmbito do PNSA”; “o programa anual que estabelece as intervenções sanitárias a executar nas explorações, detalhado por espécie e de acordo com os programas de erradicação em vigor (...)” e “o documento pelo qual a Direcção-Geral de Veterinária e as OPP estabelecem as cláusulas que regem os direitos e as obrigações de ambas as partes na execução das acções do programa sanitário anual” (artºs 2º, alíneas f), n) e o)). Estabeleceu, ainda, designadamente, que a execução das acções do PNSA compete, nomeadamente, às OPP, mediante o estabelecimento de protocolo com a autoridade competente, renovável anualmente (artºs 3º, nº 1, alínea a) e 12º) e que para a execução das acções constantes nos programas sanitários das OPP é atribuída uma subvenção anual, destinada a apoiar a execução daquelas acções, maxime, a coordenação e a execução do programa sanitário aprovado no âmbito dos planos de erradicação bem como o aprovisionamento de meios técnicos e logísticos destinados à sua realização (artº 16º, nºs 1 e 2).
Verifica-se que, nos termos da mesma Portaria, a executada, como OPP, se enquadra no programa de realização das acções previstas no Programa Nacional de Saúde Animal, no que respeita à execução dos programas sanitários aprovados pela Direcção-Geral de Veterinária, coordenados por esta e em colaboração mútua (v. arts. 8º e 9º).
A execução das acções protocoladas compete, assim, não só à DGV mas também a outras entidades, como a executada, desde que aquela, mediante Protocolo adequado, nelas delegue a actividade.
Ora, assim sendo, tais acções sanitárias da obrigação da Administração Pública têm de se reputar como delegadas por ela na executada, sendo então adequado considerar que esta é concessionária de um serviço público.
Tais acções não podem deixar de ser consideradas como de utilidade pública, ante o enquadramento que apresentámos.
A agravante sustenta que tal não pode considerar-se porque se parte de um pressuposto retirado meramente do fim social da executada. Mas isso não se revela exacto. O Protocolo de concreta delegação da, também, concreta actividade é que permite caracterizá-la como tal.

Sustenta ainda que não está provado que o crédito penhorado se encontra especialmente afecto á realização daqueles fins de utilidade pública, nem tão pouco foram alegados factos donde o tribunal assim possa concluir.

Sem razão, a nosso ver.

Ficou expressamente provado que (factos 9. e 10.) para a execução das acções constantes nos programas sanitários das OPP é atribuída uma subvenção anual, destinada a apoiar a execução daquelas acções, tendo em consideração os efectivos elegíveis de cada exploração e que a quantia de € 12 727,63 referida em d), supra, integra a subvenção anual destinada a apoiar a realização/concretização das acções previstas no Protocolo celebrado entre a Direcção-Geral de Veterinária e a executada, referente ao ano de 2008.

Ou seja, perante tais factos, deve considerar-se, sem margem para dúvidas, que o crédito em questão está especialmente afecto á realização daquelas acções (de utilidade pública).

A executada terá outras receitas, como refere a agravante, eventualmente afectas a outras actividades. Mas a subvenção em causa não pode deixar de estar apenas afectada aos fins do Protocolo referido.

Refere também que a executada utilizava a subvenção no pagamento de salários, despesas de transportes, telefones etc. Tal não se encontra provado. Mas, como diz o Ex.mo PGA, no seu parecer, ainda que tal tivesse sido estabelecido, não seria possível concluir-se daí que a verba não era afecta aos referidos fins de utilidade pública, sendo patente que as acções de profilaxia médica e sanitária nos animais se realiza através de uma estrutura humana e material que as permita, com despesas próprias.

Em suma, como se refere no Acórdão da Relação de Évora de 06.11.2003, in CJ, t. 5, 253, (consultável em CJ-online, ref. 8258/2003), tirado a respeito de um caso semelhante ao dos autos, podemos concluir que a subvenção em causa está afectada ao funcionamento de um serviço de utilidade pública, prestado pela executada, não passando esta de uma “entidade delegada ou concessionada, no âmbito do plano nacional de Saúde Animal, agindo no interesse do Estado, numa verdadeira actuação de "outsourcing", tão frequente no mundo de hoje”.

Encontra-se, assim e a nosso ver, o crédito penhorado afectado a fins de utilidade pública, pelo que a penhora colide com o disposto no art. 823º do CPC., o qual estabelece a sua isenção de penhora.

Assim sendo, tem de improceder o recurso.  


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III- DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, e sem necessidade de outros considerandos, delibera-se julgar improcedente o recurso de agravo e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, ainda que com diverso fundamento.

Custas do recurso pela recorrente.