Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2735/06.5TASTB
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: CRIME DE CHEQUE SEM PROVISÃO
LEGITIMIDADE PARA APRESENTAÇÃO DA QUEIXA
Data do Acordão: 07/01/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 113º,125º DO CP, 24º ,29º DA LUCH
Sumário: 1. A lei não proíbe a transmissão do cheque posteriormente à recusa do seu pagamento, como se vê do art.º 24º da LUCH
2. Assim o titular do direito de queixa será o legítimo dono do cheque que estiver em tempo de apresentar a queixa e for um dos prejudicados pelo não desconto do mesmo no Banco sacado.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra
I
No processo supra referido a A apresentou queixa contra B por emissão de cheque sem provisão. Tal cheque, foi passado ao portador e consta de fls. 13.
Findo o inquérito, o Ministério Público absteve-se de acusar a arguida com fundamento em que a queixosa não era titular do direito de queixa.
Constituída como assistente, esta requereu a abertura da instrução. Realizado o debate instrutório o M.mo JI pronunciou a arguida pelo indicado crime.
Para tanto ponderou por um lado a presença de indícios bastantes da prática do crime pela mesma e, pelo outro, que à queixosa assistia o direito de queixa.
Quanto ao direito de queixa refere o JI - “ (…) Nos cheques emitidos ao portador é seu legítimo portador quem o tiver em seu poder, pelo que a devolução do cheque à assistente por parte de C a tornou novamente sua legítima portadora, logo adquirindo também legitimidade para a acção penal.
A este propósito refere Abel delgado que “é portador legítimo, além do originário portador, todo o detentor do cheque que justifique o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. Estamos perante uma legitimação formal, em consequência da qual se presume que a pessoa legitimada é o portador legítimo do título, isto é, o verdadeiro titular do direito nele incorporado. Tal legitimação tem importância enorme, pois o portador, assim legitimado, não carece de provar o seu direito, admitindo-se porém prova em contrário.
Aqui chegados imediatamente se constata que a assistente apresenta-se como portadora legítima do cheque e lesada patrimonialmente pelo valor do mesmo, razões pelas quais dá-se como verificada a condição objectiva que o crime de emissão de cheque sem provisão pressupõe (…)”.
2- Recorrem o Ministério Público e a arguida.
Conclui o Ministério Público –
1) O recurso vem interposto da decisão que colocou termo a instrução determinando a pronúncia da arguida B. Os fundamentos da decisão recorrida foram, em síntese, os seguintes: foi requerida a instrução pelo assistente A. relativamente ao despacho do Ministério Público que determinou o arquivamento do inquérito por falta de queixa pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão.
2) A arguida B emitiu um cheque no valor de € 22.206 por si preenchido e assinado, emitido ao portador e entregue à assistente A para compra duma fracção autónoma. Munida desse cheque a assistente A., entregou o mesmo a C para pagamento duma dívida. Assim, o C, sendo o portador do cheque dirigiu-se à CGD com balcão nesta comarca e depositou o mesmo, isto é apresentou-o a pagamento, tendo este sido devolvido com a menção de que tinha sido extraviado pela arguida Maria Moura. O C não apresentou queixa, tendo contudo apresentado queixa por tais factor a assistente A.
3) A questão que se levanta com o recurso é saber se quem apresentou queixa foi quem tinha legitimidade para tal.
4) O cheque é um meio de pagamento de utilização cada vez mais generalizada pelo que se torna indispensável uma especial protecção por forma a garantir ao máximo a sua função e a oferecer aos que o recebem toda a segurança.
5) Trata-se dum título de crédito que incorpora uma ordem de pagamento à vista dirigido a um Banco.
6) O cheque é um meio de pagamento efectuado através duma ordem dada por uma pessoa (o sacador) a um banco (o sacado) para que este pague a um terceiro determinada quantia por conta dos fundos disponíveis que o primeiro tem no estabelecimento do segundo.
7) O cheque pode ser transmitido por simples tradição (cheque ao portador) ou através de endosso (cheque a ordem).
8) Para uma correcta interpretação das normas incriminadoras a referência à teoria do Bem Jurídico é fundamental visto que a base da estrutura e da interpretação dos tipos legais de crime é constituído pelo Bem Jurídico.
9) O Bem Jurídico tutelado pelas normas incriminadoras do D.L. 454/91 é, por um lado, o interesse patrimonial, mas acima de tudo, o que está em causa é a confiança no poder circulatório e liberatório do cheque.
10) O crime de emissão de cheque sem provisão é um crime semipúblico (artigo 11. °-A do Regime Jurídico do Cheque sem provisão). Nos termos do artigo 113. ° do Código Penal tem legitimidade para apresentar queixa, salvo disposição em contrario, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
11) Ofendido é tão-só o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e não já o titular de quaisquer outros interesses que eventualmente possam ser atingidos pelo crime. Podemos dizer que o titular dos interesses especialmente protegidos pela lei no caso de emissão de cheques sem provido é aquele a quem a lei atribui a qualidade de ser portador do bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito, o portador legitimo do titulo prejudicado pelo não pagamento do cheque.
12) Ofendido é o portador do cheque, sendo ele a pessoa que tem de dar conhecimento do facto às autoridades competentes para efeitos de procedimento criminal, do mesmo modo que é ele que o pode extinguir, mediante desistência de queixa.
13) Pode suceder, como no caso destes autos, que o cheque não tenha indicação de qualquer beneficiário. Ora, nos termos do artigo 5. ° da LURC o cheque pode ser pagável ao portador, devendo entender-se que o cheque sem indicação do beneficiário é considerado como cheque ao portador. A pessoa que vier a apresentar queixa tem de demonstrar que detêm o cheque através de uma posse natural, de boa fé, suficientemente legitimada em função do prejuízo patrimonial decorrente do seu não pagamento.
14) O cheque em causa foi entregue pela arguida à assistente A., sendo este ao portador. A assistente também entregou o mesmo ao C que o entregou a pagamento no Balcão da CGD.
15) O C era um legitimo portador do cheque e entregou-o a pagamento, tendo este sido devolvido com a menção de extravio.
16) O cheque é uma obrigação cartular que tem ínsita uma ordem de pagamento. Essa obrigação cartular acaba quando essa ordem de pagamento é dada e posteriormente cumprida.
17) A função do cheque termina quando o seu legítimo portador se dirige ao Banco e pede o pagamento daquele título de crédito, sendo aposta de seguida a menção de extravio ou de sem provisão.
18) Ora o C é o ofendido para efeitos do regime jurídico do cheque sem provisão. Foi o C, legitimo portador da "ordem de pagamento" que não viu essa ordem a ser cumprida perante o Banco.
19) Tal despacho violou as normas dos artigos, 11. °-A do Regime Jurídico do Cheque sem Provisão, artigo 49. ° do CPP, bem como o artigo 113ºdo Código Penal.
20) Pelo exposto entendemos que não foi apresentada queixa pelo titular desse direito [o C] no prazo devido, pelo que deveria a arguida Maria Moura não ser pronunciada pelo crime em causa.
Conclui a arguida
1) O recurso é interposto da decisão instrutória que decidiu pronunciar a arguida.
2) É interposto por se entender que não existem indícios suficientes para ser pronunciada a arguido uma vez que não se encontra preenchido um dos elementos objectivos do tipo legal de crime, a saber, o prejuízo patrimonial.
3) Para que se verifiquem os pressupostos do crime de emissão de cheque sem provisão é necessário causar-se um prejuízo patrimonial, neste caso, à assistente A.
4) Quanto a esta questão no entender da decisão recorrida resultaram indiciados os seguintes factos:
a) Para pagamento do recheio da identificada habitação, a arguida preencheu, assinou, datou com data de 21/06/2006 e entregou a assistente o cheque n.º 222222222, no valor de 22,206€, sobre o Banco Millennium Bcp, emitido ao portador".
b) A assistente usou tal cheque para pagamento duma divida a C.
c) Este último depositou o cheque mencionado na sua conta n.º 11111111111 da Caixa Geral de Depósitos, Balcão de Mira em 26.06.2006.
d) Tal cheque foi devolvido na compensação no dia 27/06/2006, com a informação de extraviado, conforme carimbo aposto no verso do cheque pelo Serviço de Compensação do Banco de Portugal, em Lisboa, não se encontrando ainda hoje pago.
e) Por sua vez, C devolveu o cheque identificado à assistente, que pagou a sua dívida para com este em dinheiro.
5) Da matéria de facto dada como indiciada no despacho recorrido conclui-se que o Juiz entendeu que a assistente se encontrava "lesada patrimonialmente" por ter pago a sua divida ao C em dinheiro, após este lhe ter devolvido o cheque em questão.
6) Na fase de instrução não foram realizadas quaisquer diligências probatórias uma vez que no despacho de abertura de instrução o Juiz indeferiu a reinquirição das testemunhas arroladas pela assistente com fundamento em que já haviam sido ouvidas na fase de inquérito.
7) Não resulta indiciado dos elementos de prova recolhidos na fase de inquérito que a assistente tenha pago em dinheiro ao C a quantia titulada pelo cheque.
8) Pois que em lado algum se refere tal facto quer na prova testemunhal quer documental.
9) Apenas no requerimento para abertura de instrução vem a assistente alegar que havia acordado com o C o pagamento em dinheiro da sua divida para com este.
10) Mas na instrução não foram realizadas diligências probatórias que viessem corroborar esta versão.
11) Pelo que nunca o Juiz poderia ter dado como indiciado um facto que não tem qualquer suporte probatório.
12) Se é certo que, na fase de instrução a prova produzida tem natureza meramente indiciaria, também é certo que no caso não existe qualquer facto que indicie esse pagamento.
13) Concluindo-se que inexistem quaisquer meios de prova quanto ao preenchimento dum dos elementos do tipo legal do crime de emissão de cheque sem provisão, o prejuízo patrimonial.
14) Pelo que o despacho violou o art.º 11/1 do Regime Jurídico do Cheque sem Provisão — Dec. Lei 454/091 de 28/12, bem como o art.º 308/ 1 do C.P.P.
3- Ao recurso da arguida respondeu o MP pelo seu provimento, com base na mesma argumentação do seu recurso.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto aderiu à argumentação do seu colega da 1ª instância.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II –
Apreciação –
1- O Ministério Público não acusou a arguido por entender que à queixosa não lhe assistia o direito de queixa. Entendimento diverso manifesta o JI na pronúncia.
Quanto a nós a razão está do lado do JI ao ter a queixosa como titular do direito de queixa, já que no momento em que tal direito foi exercido era ela a legítima detentora e titular do cheque.
O art.º 11º do Dec-Lei nº 454/91 de 28/12 [na redacção do Dec-Lei nº 316/97 de 19/11 e da Lei n.º 48/2005 de 29/ 8] estatui, além do mais, que comete o crime de emissão de cheque sem provisão «Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro –
a) Emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a €150 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque; ou
c) Endossar cheque que recebeu, conhecendo as causas de não pagamento integral referidas nas alíneas anteriores;
se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa aos Cheques, é punido (…)”.
O art.º 11º-A do mesmo Dec-Lei nº estabelece que o procedimento criminal pelo crime previsto no artigo anterior depende de queixa.
O art.º 113º/1 do Código Penal estabelece que «Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação».
O art.º 115º/1 do mesmo Código estatui que «O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver conhecimento do facto e dos seus autores (…)».
No preâmbulo do Dec-Lei nº 316/97 já citado refere-se que “a tutela penal do cheque visa sobretudo a protecção do respectivo tomador, conformando-se o respectivo crime, qualquer que seja a modalidade da acção típica, como de natureza patrimonial”.
Tem-se por pacífico que a apresentação a pagamento do cheque nos termos e nos prazos estabelecidos no art.º 29º da LUCH não fazem parte do tipo, sendo condições objectivas de punibilidade.
O cheque é um título de crédito transmissível por endosso. No caso sendo um cheque ao portador ele entrou no circuito comercial por ser entregue pela arguida à A em pagamento duma dívida daquela a esta.
Por sua vez a Imobiliária entregou-o a C em pagamento duma dívida dela a este que o apresentou a pagamento na CGD mas que lhe não foi descontado ou pago por indicação nele aposta pelo Banco sacado de cheque «extraviado».
Perante esta situação o dito C devolveu-o à A que se comprometeu a pagar-lhe por outro modo o que lhe devia e esta apresentou queixa por cheque sem provisão.
Ninguém duvidará que à data da apresentação da queixa era a queixosa/assistente a legítima portadora e titular do cheque.
Esta ficou prejudicada com o não pagamento do cheque já que sendo a sua tomadora não viu pago o preço dos móveis que vendera à sacadora, preço correspondente ao valor monetário nele aposto.
E porque ao entregá-lo a terceiro em pagamento duma dívida sua, também não viu extinta esta sua obrigação de pagamento.
Tendo o cheque sido apresentado nos prazos legais para desconto no Banco que o recusou com a menção de «Extravio» é óbvio que existia o direito de queixa por não pagamento do cheque.
E podendo este direito ser exercido no prazo de 6 meses contados da data da recusa do seu pagamento, parece-nos evidente que assistirá o direito de queixa a quem for o legítimo titular do cheque no momento da apresentação da queixa, desde que um dos prejudicados.
A nosso ver é da conjugação destes dois factores que se determinará quem a cada momento é o titular do direito de queixa.
Ou seja, titular do direito de queixa será o legítimo dono do cheque que estiver em tempo de apresentar a queixa e for um dos prejudicados pelo não desconto do mesmo no Banco sacado.
O MP pretende restringir a titularidade do direito de queixa a quem o apresentou a pagamento no Banco, mas esta visão não se extrai de nenhum preceito legal.
O que se sabe é que a lei não proíbe a transmissão do cheque posteriormente à recusa do seu pagamento, como se vê do art.º 24º da LUCH.
A devolução do cheque pelo Nuno à queixosa é um acto lícito e portanto válido. Esta, quiçá como pessoa de boas contas, teria as suas legítimas razões para aceitar o cheque de volta constatado o facto que o mesmo nada valia e consequentemente que nada pagava.
No caso o seu tomador foi a queixosa que se viu obrigada a aceitar a sua devolução perante a recusa do Banco em descontá-lo.
Ela é que foi a verdadeira prejudicada pois não recebeu o preço da venda que fez à arguida nem pôde usar validamente o cheque para saldar a sua dívida com o Nuno.
Quem verdadeiramente sofreu o prejuízo ou dano O crime de emissão de cheque sem provisão é um crime de dano. foi a queixosa que nem se viu paga da venda que fez nem saldada a sua dívida que posteriormente quis pagar com o cheque.
Ora o legislador pretendeu sublinhar a função económica do cheque como meio de pagamento e salientar como valor protegido com a incriminação o interesse patrimonial do seu legítimo portador.
O que interessa indagar face ao ordenamento jurídico é se a emissão e pagamento por cheque representa em termos monetários a assunção válida duma obrigação de pagamento para ser cumprida na data da emissão e entrega do cheque. Se assim não acontecer, a atitude do emitente do cheque lesa, em princípio, interesses patrimoniais do portador, legitimamente constituídos, e daí a transposição da tutela penal, para a punição do cheque, enquanto título incorporado de um bem pecuniário, destinado a circular no comércio com esse valor.
2.2.1- Assim, não corresponde à verdade a alegação da arguida que a assistente não teve quaisquer prejuízos com a emissão do cheque.
O prejuízo patrimonial da queixosa advém-lhe do cheque não ter qualquer correspondência ao preço por que vendera o mobiliário à arguida. Ao valor dessa venda sem a correspondente entrada de dinheiro corresponde o seu prejuízo e o correspondente ilegítimo locupletamento da arguida.
Efectuado o pagamento por meio de cheque, o credor tem o direito de receber o valor desse cheque, não simplesmente porque é dele portador, mas porque tinha a posição de credor na relação jurídica que subjaz ao cheque e que este se destinava a satisfazer.
2.2.2- Quanto ao facto elencado na pronúncia sob o n.º8, a saber, que «Por sua vez, C devolveu o cheque identificado à assistente, que pagou a sua dívida para com este em dinheiro» não há prova nos autos deste pagamento em dinheiro pelo que, assistindo nesta parte razão à recorrente, se altera a sua redacção para o seguinte – «8) Face ao não pagamento do cheque, o C devolveu-o à assistente e esta comprometeu-se perante ele pagar-lhe por outro modo o que lhe devia».
III
Decisão –
Termos em que se altera o n.º8 da pronúncia nos termos acabados de referir.
No mais têm-se os recursos por improcedentes.
Custas pela arguida, com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs
Coimbra,