Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
544/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: CASO JULGADO
EFEITO DIRECTO E EFEITO INDIRECTO
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART. 672.º C. P. C.
Sumário:

I - O que ficou decidido numa acção tem de ser respeitado numa outra acção pela parte que não interveio naquela e não queira discutir, como thema decidendum, a relação que ficou definitivamente fixada entre o seu co-réu e o autor.
II - Outro efeito do caso julgado é o seu valor como meio de prova.
III - Independentemente dos efeitos referidos do caso julgado, deve ter-se em conta a posição que uma parte tomou em acção anterior enquanto critério de apreciação da sua actual posição.
Decisão Texto Integral:


Acórdão:
I – Relatório
...
3. Pedidos:
3.1. condenação dos réus a reconhecerem a existência de uma servidão de passagem de pessoas, animais e veículos que corre desde o prédio dos autores (...), a Norte e do lado Nascente, ao longo de toda a estrema Nascente dos prédios dos primeiros réus e dos segundos réus, numa largura de cerca de quatro metros e com o comprimento de cerca de setenta e quatro metros, até à estrada, ..., onerando, assim, os prédios dos réus, ..., como servientes a favor do dos autores, ..., este como dominante;
3.2. Ou, em alternativa, declaração de constituição da servidão legal de passagem de pessoas, animais e veículos que corre desde o prédio dos autores ...;
...
5.3. Foi proferido despacho saneador, no qual foi decidida a improcedência da excepção de caso julgado e a inexistência de nulidades e irregularidades processuais.
... e proferida sentença a julgar a acção procedente e a condenar os réus nos termos do pedido principal e dos que são consequência desse.
6. Desta sentença, os primeiros réus interpuseram recurso.
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II – Fundamentação.
8. Factos provados.
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9. O Direito.
...
9.1.2.1. Dizem os recorrentes que houve uma sentença anterior que decidiu que a referida faixa de terreno (entre o prédio dos 1ºs. réus - ... - e o dos filhos dos autores - ... -) pertencia ao prédio dos recorrentes, prédio esse serviente em relação ao dos segundos réus, que também foram réus na anterior acção.
9.1.2.2. Seguidamente, que, nessa acção os réus Júlio Pedreiro e mulher, também na qualidade de réus, afirmaram «que não sabem a quem pertence o chão da serventia que dá acesso ao seu prédio, porque a serventia é anterior aos seus próprios conhecimentos, desconhecendo quem definiu a serventia», conforme artigo 7º dessa Contestação, cuja cópia foi junta a fls. 192 a 194. Esta citação finaliza da seguinte maneira: « (... serventia) e, por isso impugnam o direito de propriedade invocado pelos AA e a sua definição», autores que são, agora, os recorrentes.
...
9.1.4. Parece-nos que a resposta de “provado” ao nº 1-A da B.i. não tem fundamento sustentável.
9.1.4.1. Antes desta acção, correu outra em que os agora 1ºs. réus demandaram um outro vizinho - o filho dos agora autores, cujo prédio ladeia a serventia por Poente - e os aqui 2ºs. réus, pedindo que se declarasse que a serventia, com determinada dimensão, era particular e apenas existia a favor dos 2ºs. réus, e se condenassem os outros referidos vizinhos a absterem-se de a utilizar. Dessa acção resultou que os aí réus foram condenados a reconhecerem que a serventia tinha três metros de largura em toda a sua extensão, que era particular e existia apenas a favor do prédio dos 2ºs. réus - que nesta acção são os 2ºs. réus, também -, e a condenar os outros vizinhos como se pedira.
...
Esta anterior decisão não faz caso julgado nesta acção, como já foi decidido no despacho saneador. Pensamos que bem e, de qualquer maneira, sempre estávamos perante um caso julgado formal [1].
Contudo, o que se passou na outra acção não pode ser tão indiferente ao que se passa nesta acção como pareceu resultar da audiência de discussão. Se é certo que os sujeitos passivos da outra acção eram diferentes dos desta acção - parcialmente diferentes, porque os 2ºs. réus também o eram na outra acção -, pelo que falta uma das identidades necessárias ao caso julgado, há questões decididas na outra acção que, nesta, como questão fundamental [2], têm de ser respeitadas, seja por quem for, enquanto disserem respeito à relação entre os recorrentes e os 2ºs. réus, porque, entre eles, ficou assente e proclamado que aqueles eram os proprietários da faixa de terreno aqui em discussão, pertencente ao prédio serviente, o dos recorrentes: «o respeito pelo caso julgado posto em causa num processo posterior, não como questão central, mas como questão fundamental, ou instrumental, representa uma conquista da ciência processual ...» [3].
O que importa salvaguardar com a exigência da identidade subjectiva - inter easdem personas - é que a sentença anteriormente proferida não prejudique terceiros que nela não intervieram, mas, o que ficou firme entre A e B vale entre eles e vale para toda a gente enquanto define a referida relação entre A e B [4]. De resto, «os terceiros têm de acatar a sentença proferida entre as partes e a correspondente definição judicial da relação litigada, quando a sentença não lhes causa qualquer prejuízo jurídico, porque deixa íntegra a consistência jurídica do seu direito» [5].
Vejamos a relação entre o que se pretende nesta acção e o que foi decidido na anterior.
O que pedem os autores, agora, qual é o thema decidendum ? Que lhes seja reconhecida uma servidão de passagem ou, em alternativa, que ela seja constituída. Não pedem que se declare que a parte da serventia aqui em questão pertence ao terreno dos 2ºs. réus; nem sequer tinham legitimidade nem interesse em fazê-lo, pois reconhecer uma servidão tem a ver com um conjunto de factos que se vem verificando ao longo do tempo, pertença o terreno a quem pertencer. Então, se já houve uma decisão proferida num processo em que eram partes os recorrentes e os 2ºs. réus, impugnando estes o direito de propriedade daqueles, relativamente à faixa de terreno em questão, tendo sido declarado que os recorrentes eram os respectivos proprietários, não se pode noutra acção, lateralmente, vir dizer o contrário, passando, agora, a mesma faixa, que era de uns, a pertencer a outros. Independentemente do 2º réu estar de más relações com os recorrentes, agora co-réus, e boas com os recorridos, do ponto de vista objectivo, estava encontrada a maneira de pôr em causa o caso julgado, mesmo na sua eficácia directa, enquanto excepcio rei judicatae: definida uma situação entre A, B e C, a favor de A, vinha, posteriormente, D propor acção contra A e B de forma a colocar o que já tinha sido decido antes, não como thema decidendum, mas conseguindo que se dissesse que o direito de A, afinal era de B. Conseguindo redefinir algo que já o estava, no caso concreto, como questão fundamental, sendo que, nesta acção, nem sequer era instrumental. Portanto, era uma redefinição completamente fora do objecto do processo sendo os autores, relativamente ao anteriormente definido, terceiros juridicamente indiferentes [6].
Assim, o que nós estamos a ver agora, neste momento, não tem a ver com o caso julgado, enquanto excepção de caso julgado; essa foi afastada no despacho saneador e bem. Mas tem a ver com outros efeitos do caso julgado [7], concretamente com a extensão do caso julgado a terceiros [8].
9.1.4.1.1. Outro efeito, por exemplo, é a autoridade do caso julgado, diferente da excepção de caso julgado, e o valor do caso julgado como meio de prova [9]. Ora, também neste aspecto, se desprezou demasiadamente o que se passou na outra acção.
9.1.4.2. Mas, outro aspecto, ainda, foi o não se ter tomado em atenção a posição do 2º réu na acção anterior enquanto critério de apreciação do seu actual depoimento.
Na anterior acção, os autores afirmavam que a serventia estava em terreno que lhes pertencia. A essa posição contrapuseram os 2ºs. réus, nessa e nesta acção, que não: «No sentido de esclarecerem devidamente e ser reconhecido o direito de cada um, os ora contestantes afirmam que não sabem a quem pertence o chão da serventia que dá acesso ao seu prédio, porque a serventia é anterior aos seus próprios conhecimentos, desconhecendo quem definiu a serventia (...) e, por isso impugnam o direito de propriedade invocado pelos AA. e a sua definição».
Muito embora o Sr. Advogado dos recorrentes tivesse tentado que o réu esclarecesse a mudança de posição que teve da primeira acção para a esta, nunca o conseguiu, porque lhe foi oposto que o que estava na outra acção não interessava para esta.
Já dissemos que não é assim. Mas vejamos mais especificamente: uma coisa é não se trazer o que foi decidido e o respectivo fundamento para a discussão desta acção, por ter sido decidido, com trânsito em julgado, que esta acção não tinha a identidade necessária com a anterior; outra coisa diferente, é uma parte ou uma testemunha esclarecer por que razão faz determinada afirmação de um facto, o que abrange, por maioria de razão, uma alteração de posição; parece importante que uma pessoa que, numa acção anterior, fazia uma afirmação, esclareça a afirmação contrária ou divergente numa acção seguinte; quer para esclarecimento e análise do próprio depoimento, quer por uma razão de coerência e de atitude face a um poder público que, em ambas as situações, exige que o depoimento seja verdadeiro. Suponhamos que determinada testemunha, na audiência de discussão, afirma a; uma outra testemunha diz que ouviu, no café, na rua, em qualquer sítio, aquela testemunha afirmar b, diferente e oposto de a; será que não se vai pedir à primeira testemunha que esclareça a alegada divergência e, inclusivamente, acarear as testemunhas? Pensamos que sim, sob pena das coisas ficarem por esclarecer. Ora, se dito num café, a uma outra testemunha, é motivo para aprofundar um depoimento, dito num tribunal, a um juiz, terá também de merecer a mesma análise, pelo menos. Poderia até acontecer que o depoente desse uma explicação suficiente, por exemplo, que tinha havido um mau entendimento com o seu Advogado ou que tinha sido uma opção deste, que a testemunha não subscreve.
...
Procedendo o pedido principal, fica prejudicado o conhecimento do subsidiário.
III – Decisão.
Pelo exposto, revogam parcialmente a decisão da primeira instância e, em consequência, condenam os réus a reconhecerem a existência de uma servidão de passagem de pessoas, animais e veículos que corre desde o prédio dos autores (...), a Norte e do lado Nascente, ao longo de toda a estrema Nascente dos prédios dos primeiros réus e dos segundos réus, até chegar ao outro prédio dos 1ºs. réus que dá para a Rua 23 de Março, referido no nº 2, al. B) dos factos provados, numa extensão de 68,75 metros, sendo 14,20 metros no prédio dos primeiros réus (antigo 108-E) e 54,55 metros daí até à Rua 23 de Março.
Custas por recorrentes e recorridos em partes iguais.

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[1] - artigo 672º do CPC.
[2] - Prof. João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Dissertação de Doutoramento, Edições Ática, págs. 152 e 153.
[3] - Prof. João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pág. 52; conquista que o Prof. João de Castro Mendes afirma vir já do tempo de Roma e que José Chiovenda diz ter sido salientada pela doutrina alemã (Principios de Derecho Procesal Civil, Instituto Editorial Reus, Madrid, 1977, tomo II, pág. 458, nota nº 1).
[4] - José Chiovenda, ibidem.
[5] - Professor Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 312.
[6] - Ibidem e Prof. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1982, vol. III, pág. 386.
[7] - Prof. João de Castro Mendes, Limites, pág. 43.
[8] - Profs. Manuel de Andrade e José Chiovenda, obras citadas, a págs. 312 e ss e 458 e ss.
[9] - sobre este aspecto, cf. João de Castro Mendes, que defende que uma outra manifestação do caso julgado, entre partes diferentes é constituir uma presunção ilidível (Limites, pág. 43).