Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111/04.3TAMIR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME DE POLUIÇÃO
CRIME DE PERIGO
PROVA
PRESUNÇÕES
Data do Acordão: 07/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS
Sumário: I. - No domínio probatório, para além dos meios de prova directos, são relevantes os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
II. - «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)».
III. - A apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras de experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova.
IV. - O crime de poluição do citado artigo 280.º é um crime pluri-ofensivo em que o bens jurídicos tutelados pela norma incriminante não se confinam ao bem jurídico de feição colectiva como é o ambiente mas abrange igualmente bens jurídicos de natureza individual, como a vida, a integridade física e bens alheios de valor elevado.
Decisão Texto Integral: 22
Proc. n.º 111/04.3TAMIR.C1
I. Relatório:
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Mira, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal singular, os arguidos:
- MA, casada, nascida a …, filha de … e de …, residente na …, em …; e
- JD, casado, reformado, nascido a ..., natural de …, filho … e de …, residente na …, …, …,
acusados da prática, em co-autoria material e concurso real, de um crime de poluição com perigo comum, p. p. nos termos do disposto no artigo 280º, al. a) do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física qualificado, na forma continuada, p. p. nos termos do disposto nos artigos 143.º a 146.º, n.º 2 e 30.º do Código Penal.

2. UA deduziram pedido cível, peticionando a condenação, solidária, dos arguidos no pagamento: da quantia de € 7.365,00, pelos danos patrimoniais descritos em 18.º a 20.º do articulado de fls. 208/213; de quantia não inferior a € 25.000,00, a cada um dos demandantes; tudo acrescido de juros de mora.

2. Por sentença de 9 de Janeiro de 2008, o tribunal proferiu decisão do seguinte teor:
1. Julgou a acusação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Absolveu ambos os arguidos pela prática, em co-autoria, de um crime de ofensa à integridade física qualificado, na forma continuada, p. p. nos termos do disposto no artigo 143.º e 146.º, n.º 2, e 30.º, do Código Penal;
b) Condenou cada um dos arguidos, …, pela prática, em co-autoria, de um crime de poluição com perigo comum, p. p. nos termos do disposto no artigo 280.º, al. a), do Código Penal, na pena de 22 (vinte e dois) meses de prisão, declarada suspensa na sua execução por igual período (22 meses).
2. Julgou o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, em consequência, condenou ambos os demandados,… e …, a pagar, solidariamente, as seguintes quantias:
a) € 2.538 a ambos os demandantes, com juros de 4% desde a data da prolação da sentença; e
b) € 5.000 a cada um dos demandantes, com juros à taxa de 4% desde a data da referida decisão.
3. Inconformados, os arguidos interpuseram recurso, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - Quanto à matéria de facto, a douta sentença em apreço não fez uma correcta apreciação das provas produzidas em sede de audiência de julgamento.
2.ª - Assim, os recorrentes entendem que o Tribunal a quo julgou incorrectamente os seguintes pontos de facto:
“4. Em data e de forma não concretamente determinada, mediante um plano por ambos previamente gizado, os arguidos JD e MA fizeram passar do seu terreno para a propriedade dos assistentes um cano, fazendo-o desembocar no poço referido em 2., nele entrando, cano este através do qual faziam drenar para dentro do poço os dejectos, fezes e urina humanas, sabões, champôs, detergentes, produtos abrasivos de limpeza de sanitas e desentupimento de canos, que nela se acumulavam.
5. Em virtude do exposto, foram sendo feitas descargas directamente para o poço da casa dos arguidos, sendo certo que o ofendido e a sua família faziam uso doméstico da água do poço, designadamente para cozinhar, beber ou tomar banho.
6. Agindo do modo descrito os arguidos tinham o intuito firme e determinado, que concretizaram, de fazer cair no poço dos ofendidos as águas residuais, vindas do seu terreno, águas estas que os arguidos produziam, assim poluindo a água que esse poço continha, bem sabendo que este, bem como toda a sua família, faziam uso doméstico daquela água e que assim poriam em perigo a saúde, e mesmo a vida, daquelas pessoas.
7. Tinham a firme intenção, concretizada, de misturar a água do poço que fazia o abastecimento da casa do Urbino com dejectos e outras águas residuais de sua casa, assim poluindo aquela água, bem sabendo que este, bem como toda a sua família, faziam uso doméstico daquela água e assim poriam em perigo a saúde e mesma a vida dessas pessoas.
8. Como causa directa e necessária da sua conduta, durante um período indeterminado, enquanto não foi detectada a transformação operada, aquelas tomaram banho com água altamente poluída com dejectos e produtos abrasivos, prejudiciais ao seu corpo.
9. Os arguidos agiram de forma deliberada, livre e consciente, bem cientes da natureza reprovável e proibida da sua conduta.
12. Inspeccionado o poço, os ofendidos detectaram uma descarga dentro do seu poço, ficando e ainda estando assustados com as possíveis consequências para a sua saúde e para a sua vida, em virtude da ingestão da água do poço nas aludidas condições.
13. Além disso, B e U sentem-se ofendidos e humilhados pelo facto dos arguidos os terem feito beber, bem como aos seus filhos, netos e todos os que foram recebidos em sua casa, toda a série de produtos tóxicos e imundícies”.
3.ª - Isto porque a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não permite concluir que foram os Arguidos quem abriu o buraco no poço do Assistente, que no mesmo tenham colocado um cano e que através deste tenham feito drenar para dentro do poço do Assistente águas residuais.
4.ª - A sentença recorrida não valorou minimamente os depoimentos dos Arguidos que negaram peremptoriamente a prática dos factos, nem das testemunhas de acusação nem das testemunhas de defesa.
5.ª - Mesmo os depoimentos das testemunhas de acusação são claros e inequívocos em responder não saber quem fez aquele buraco na manilha do poço do Assistente, em responder não terem visto qualquer cano a desembocar no mesmo.
Neste sentido depôs a testemunha de acusação …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 3, lado A, contador 2089 a 2497 e lado B, contado 0000 a 2457; a testemunha de acusação …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 4, lado A, contador 0000 a 1828; a testemunha de acusação …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 4, lado A, contador 1908 a 2501 e lado B, contador 0000 a 2497 e cassete n.º 5, lado A, contador 0000 a 0287; a testemunha de acusação …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 5, lado A, contador 0288 a 1354; a testemunha de acusação …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 5, lado A, contador 1355 a 2378, e a testemunha de acusação …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 5, lado A, contador 2379 a 2499 e cassete n.º 5, lado B, contador 0000 a 0946.
6.ª - Aliás, o próprio Assistente, parte naturalmente interessada e excessivamente preocupada em demonstrar ao Tribunal as suas conclusões, não factos, referiu-se à existência do buraco no poço, mas não aos Autores do mesmo.
(Cfr. cassete n.º 2, lado A, contador 1406 a 2491 e cassete n.º, lado B, contador 0000 a 2425).
7.ª - Por outro lado, as fotografias juntas pela testemunha de acusação …, no dia da audiência e julgamento, e admitidas a fls. 407 e seguintes dos autos, fotografias essas recolhidas um dia após a descoberta do buraco no poço, são esclarecedoras da inexistência de qualquer tubo a desembocar no mesmo, o que a existir deveria estar necessariamente registado!
8.ª - Por outro lado, os fundamentos invocados pelo Tribunal e nos quais o mesmo alicerçou a sua convicção, não são suficientes para dar como provados os factos da acusação.
9.ª - Pois, e apesar de todas as testemunhas de acusação terem sido unânimes em afirmar não terem visto qualquer cano a desembocar no poço, a verdade é que no terreno dos Arguidos não existem quaisquer vestígios da permanência e/ou passagem de tubos para a propriedade do Assistente, o que necessário se tornava, atentos os factos dados como provados.
10.ª - E as testemunhas de defesa foram unânimes em afirmar terem assistido à escavação efectuada na propriedade dos Arguidos e não se constatar in loco qualquer cano ou vestígios da passagem ou permanência de canos para o terreno do Assistente.
(Neste sentido depôs a testemunha de defesa …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 3, lado A, contador 0825 a 2088; a testemunha …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 8, lado A, contador 114 a 1722 e lado B, contador 0000 a 0250; a testemunha …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 8, lado B, contador 0251 a 1653; a testemunha …, cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 5, lado B, contador 0947 a 497, cassete n.º 6, lado A, contador 0000 a 1582 e lado B, contador 0000 a 1590 e cassete n.º 7, lado A, contador 0000 a 0477).
11.ª - Além disso, as conclusões insertas no documento junto pela testemunha de acusação …, a fls. 351 dos autos, foram elaboradas quando o local a inspeccionar já se encontrava a descoberto e vulnerável a qualquer tipo de acção.
12.ª - Aliás, a testemunha …, que assistiu à escavação junto ao poço, referiu que o aterro envolvente do poço e por baixo da fundação, não apresentava as características descritas pela testemunha … no documento junto aos autos.
13.ª - Por outro lado, todas as fotografias juntas aos autos a fls. 217, pelo Assistente, a fls. 352 pela testemunha de acusação …e a fls. 407 e seguintes pela testemunha de acusação …., filha do Assistente, e que retratam o buraco no poço em causa, nenhumas semelhanças têm quanto à forma e definição do mesmo, quanto ao aspecto/contorno do bordo e até a sua extensão, ficando por se perceber a que se deve esta falta de semelhança!
14.ª - Pelo que, neste aspecto, a sentença ao decidir como decidiu, violou entre outras as normas plasmadas nos artigos 124.º e 127.º do CPP.
15.ª - Quanto à matéria de direito: face à matéria de facto dada como provada não estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de “Poluição com perigo comum” previsto e punido pelo artigo 280.º do Código Penal.
16.ª - O crime previsto no artigo 280.º do Código Penal e pelo qual os Arguidos foram condenados é caracterizado como um crime de perigo comum que, na esteira da concepção propugnada por Faria Costa, é um crime em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indeterminado de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos e, simultaneamente, como um crime de perigo concreto – o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efectivamente sido posto em perigo.
17.ª – Ora, sendo o crime pelo qual os Arguidos foram condenados um crime de perigo comum, para que tal ocorresse necessário seria resultar dos factos dados como provados que o perigo decorrente da conduta dos Arguidos colocasse em perigo um número indeterminado e indeferenciado de pessoas.
18.º - Resulta do ponto 2 e 5 da matéria de facto dada como provada que “Para abastecer de água a sua casa, para o consumo doméstico, o ofendido construiu um poço …” e “…sendo certo que o ofendido e a sua família faziam uso doméstico da água daquele poço …”, respectivamente.
19.ª - Logo dos factos provados na sentença recorrida, não se extrai que a água daquele poço, destinada a uso doméstico, fosse usada ou destinada ao uso de outras pessoas que não o ofendido e sua família, fosse usada para além daquele núcleo de pessoas concretas e determinadas.
20.ª - Se o Tribunal deu como provado que a água daquele poço é destinada ao uso doméstico daquelas pessoas – o ofendido e a sua família – por provar ficou um elemento essencial caracterizador dos crimes de perigo comum, ou seja, que a conduta dos Arguidos colocou em perigo um número indeterminado, indeferenciado de pessoas, mesmo que só o ofendido e a sua família tenham sido postos efectivamente em perigo face ao uso daquela água.
21.ª - Esta circunscrição do âmbito do perigo decorrente da conduta promovida pelos Arguidos obsta ao enquadramento da ocorrência versada nos autos como crime de perigo comum, conduzindo necessariamente à absolvição dos Arguidos, por os factos dados como provados não preencherem o “tipo” de crime pelo qual foram acusados e condenados, tendo a sentença recorrida, neste particular, violado o artigo 280.º do Cód. Penal.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença do Tribunal a quo, absolvendo-se os Arguidos pela prática do crime em que foram condenados, bem como do pedido cível.
4. O Ministério Público concluiu a resposta que apresentou ao recurso nos seguintes termos:
1. Recorrem os arguidos da douta sentença proferida em 09.01.2008, a fls. 454 e seguintes dos autos com processo comum criminal em epígrafe, no qual se procedeu a julgamento e que os condenou na pena de 22 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela co-autoria material de um crime de poluição com perigo comum, p. e p. na norma do artigo 280.º, al. a) do Código Penal.
2. Alegam os recorrentes que a prova produzida em audiência é insuficiente para dar como provados os factos que conduziram à condenação dos arguidos, uma vez que o tribunal fundamentou a sua convicção em depoimentos de duvidosa coerência, clareza e imparcialidade, nomeadamente para prova da autoria dos factos pelos arguidos, bem como que os factos eventualmente praticados pelos arguidos não configuram a prática do crime em causa, uma vez que se trata de um crime de perigo comum e não de um crime de perigo singular, caindo por base, desde logo, o tipo de crime em causa.
3. Da prova produzida em julgamento, que se encontra gravada e que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais, não resulta, de facto, que foram os arguidos, em comunhão de esforços, cada um de per si, ou um a mando do outro que cometeram os factos pelos quais foram condenados.
4. Em nenhum momento, qualquer testemunha ou o assistente, ou mesmo os arguidos, referiram que viram os arguidos a fazerem qualquer buraco no poço, nem muito menos a colocarem um tubo no mesmo por forma a enviarem dejectos para o poço do assistente.
5. Como não pode haver crime sem autor(es), e não se provando de forma suficiente, isto é, não existindo indícios suficientes de que foram os arguidos que cometeram o crime, não poderiam os mesmos ser condenados por tais factos.
6. Por outro lado, referem os arguidos que foram condenados por um crime de poluição, sendo este um crime de perigo comum e que a prova produzida em sede de audiência de julgamento apenas levaria ao preenchimento, no máximo, de um crime com os contornos de um crime de perigo singular.
7. Quando se fala dos crimes de perigo ocorre logo a ideia da criação de uma área de tutela que significa o adiantamento da consumação.
8. O perigo concreto só ocorre quando, por força do comportamento em questão, se chega a uma situação crítica em que a segurança de uma pessoa ou de uma coisa é de tal modo atingida que unicamente dependerá do acaso que a lesão do bem jurídico se realize ou não.
9. A especial censurabilidade dos crimes de perigo comum não reside na circunstância de muitos bens jurídicos serem afectados como acontece nos delitos em série, mas no facto de as vítimas, sendo vítimas do acaso e por isso terceiros “inocentes” aparecerem, nas relações com o criminoso, como representantes da comunidade.
10. De perigo comum só se poderá falar se, avaliando a acção ex ante, uma multiplicidade desses indivíduos escolhidos ao acaso (ou o seu património) puder entrar no âmbito do perigo, mesmo se no final, numa avaliação ex post, só uma pessoa esteve efectivamente em perigo.
11. Para o aplicador do direito não será indiferente operar com um resultado de lesão ou com um resultado de perigo, pois, como já se terá compreendido, enquanto o dano permanece, o perigo, por sua natureza, ocupa sempre um lapso de tempo, mais ou menos duradoiro, mas nunca por nunca, permanece.
12. O que importa projectar no sentido interpretativo das normas [do perigo comum] deve ser a de surpreender a distinção entre o perigo que ameaça singularmente a vida de A, B, ou C e o perigo que ameace simultaneamente a vida de A, B e C ou de uma toda comunidade.
13. Perigo comum tem ainda a ver com a indeterminação do titular dos bens jurídicos ameaçados.
14. “Outrem”, nos crimes de perigo comum, significa uma vítima indistinta, alguém que pertence a um conjunto de pessoas que se encontra num determinado círculo de perigo causado pela acção praticada através de meios incontroláveis – ainda que o perigo se possa concretizar quando uma pessoa, escolhida ao acaso, é colocada em perigo.
15. A essência do perigo comum, “mais do que na pluralidade, reside na indeterminabilidade dos objectos do perigo: esta indeterminabilidade depende, não do número de bens jurídicos afectados, mas do modo como são afectados; eles têm de ser escolhidos ao acaso. Numa boa parte das incriminações, a situação perigosa apresenta a particularidade de estar referida, em alternativa, a uma multiplicidade de bens jurídicos: vida, ofensa corporal de alguém ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.
16. No caso dos autos, a ideia de furar o poço com o fito de contaminar a água existente, apenas poderia ter como sujeitos ou objectivo do crime colocar em crise a vida ou a integridade física dos assistentes e, no máximo, das suas visitas habituais a título de dolo eventual.
17. Não está subjacente a ideia de colocar em perigo a vida ou integridade física de um número indeterminado de pessoas “ao acaso”, ou a uma comunidade.
18. Ora, salvo melhor opinião, e com o devido respeito por opinião contrária, que é muito, estamos perante um caso típico, do ponto de vista factual, que se enquadra nos parâmetros dos crimes de perigo singular e não nos quadros de crime de perigo comum como é o caso do crime de poluição pelo qual os arguidos foram acusados e condenados.
19. Assim sendo, não poderemos dizer que a conduta dos autos é uma conduta que se enquadra nos parâmetros dos crimes de perigo comum, nomeadamente no crime de poluição.
20. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo, salvo melhor opinião, não aplicou de forma correcta a lei, violando os artigos 127.º do Código de Processo Penal, e os artigos 26.º e 280.º, ambos do Código Penal.
21. Pelo exposto, deve ser dado provimento ao recurso interposto pelos arguidos.
5. Em sentido contrário se manifestou o assistente …, que pugna pela improcedência do recurso.
5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer de que destacamos, pela sua especial relevância, as seguintes passagens:
«1.º - Dos vícios da sentença:
A – Contradição entre matéria de facto provada e não provada [al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP]:
No ponto 1 da matéria não provada, onde se diz “sem prejuízo do que consta em 3” pretendeu-se dizer em 4, já que, de outro modo, tudo o que aí se indica como não provado está em contradição com o que consta do facto provado 4.
Trata-se de manifesto lapso que se pode relevar e suprir nesta Relação, nos termos do n.º 2 do art. 380.º do CPP, tanto mais porque foi reconhecido por quem reapreciou a decisão e a fez chegar a esta instância.
B – Nulidade suprível da sentença:
Os factos assentes não estão situados no tempo. Apenas se considerou provado que ocorreram “em data não concretamente determinada” – cfr. pontos provados com os n.ºs 4 e 8 e pontos não provados 1 e 2.
É certo que, pela leitura do ponto provado em 1, se fica a saber que ocorreram depois de 1978, mas não mais do que isto.
Porém, uma vez que, quer na denúncia inicial (f. 2) quer na acusação do M.º P.º (f. 196) se refere o ano de 2004 como sendo aquele em que a situação descrita nos autos ainda se verificava, uma vez que se trata de um crime continuado em que tem interesse secundário a data precisa do seu início, e ainda porque a questão não é posta no recurso, provavelmente porque no terceiro parágrafo da fundamentação constante de fls. 461 o Tribunal recorrido fornece dados quanto à data dos factos, estamos em crer que, a considerar-se ter sido cometida uma nulidade prevista no art. 379.º do CPP, ela deve ser suprida, nos termos do art. 380.º, n.º 1, do CPP, de molde a que se fixe que os factos provados ocorreram desde data não determinada mas que se estenderam até, pelo menos, Março de 2005, data em que a Direcção Regional de Agricultura da Beira Litoral procedeu a recolha e análise da água da casa do assistente, conforme resulta de fls. 49 e 50».
A par, conclui pela improcedência do recurso.
6. Notificados, o assistente e o arguido não exerceram o seu direito de resposta.
7. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Tendo em conta as conclusões formuladas pelos recorrentes, resumem-se ao seguinte quadro as questões que cumpre conhecer:
A) Se ocorrem os alegados erros de julgamento em matéria de facto;
B) Se a sentença recorrida violou as normas plasmadas nos artigos 124.º e 127.º do CPP;
C) Da verificação do crime de poluição com perigo comum p. e p. pelo artigo 280.º, al. a), do Código Penal.
2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. U… e sua mulher, M…, são, desde 1976, donos de uma casa de habitação, sita na …., correspondendo-lhe o número no Lugar de, nesta comarca de Mira; já os arguidos JD e MA, são donos de uma casa sita num terreno contíguo ao daquela, logo na Rua …, com o número …, mas construída uns anos mais tarde.
2. Para abastecer de água a sua casa, para o consumo doméstico, o ofendido construiu um poço, em manilhas de cimento armado, com cerca de 8 metros de profundidade, o qual se situa por baixo do pavimento do pátio coberto existente nas traseiras da casa.
3. Apesar do ofendido U.. ser irmão da arguida MA…, estes encontram-se de relações cortadas, o que já acontecia ao tempo da verificação dos factos.
4. Em data e de forma não concretamente determinada, mediante um plano por ambos previamente gizado, os arguidos JD e MA fizeram passar do seu terreno para a propriedade dos assistentes um cano, fazendo-o desembocar no poço referido em 2., nele entrando, cano este através do qual faziam drenar para dentro do poço os dejectos, fezes e urina humanas, sabões, champôs, detergentes, produtos abrasivos de limpezas de sanitas e desentupimento de canos, que nela se acumulavam.
5. Em virtude do exposto, foram sendo feitos descargas directamente para o poço de casa dos arguidos, sendo certo que o ofendido e a sua família faziam uso doméstico da água daquele poço, designadamente para cozinhar, beber ou tomar banho.
6. Agindo do modo descrito os arguidos tinham o intuito firme e determinado, que concretizaram, de fazer cair no poço dos ofendidos as águas residuais, vindas do seu terreno, águas estas que os arguidos produziam, assim poluindo a água que esse poço continha, bem sabendo que este, bem como toda a sua família, faziam uso doméstico daquela água e que assim poriam em perigo a saúde, e mesmo a vida, daquelas pessoas.
7. Tinham a firme intenção, concretizada, de misturar a água do poço que fazia o abastecimento da casa de U … com dejectos e outras águas residuais de sua casa, assim poluindo aquela água, bem sabendo que este, bem como toda a sua família, faziam uso doméstico daquela água e assim poriam em perigo a saúde e mesmo a vida dessas pessoas.
8. Como causa directa e necessária da sua conduta, durante um período indeterminado, enquanto não foi detectada a transformação operada, aqueles tomaram banho com água altamente poluída com dejectos e produtos abrasivos, prejudiciais ao seu corpo.
9. Os arguidos agiram de forma deliberada, livre e consciente, bem cientes da natureza reprovável e proibida da sua conduta.
10. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais.
11. A arguida é doméstica e o arguido reformado; vivem entre Portugal e o Canadá, onde foram emigrantes, possuindo residência em ambos os locais; são pessoas bem reputadas socialmente.
12. Inspeccionado o poço, os ofendidos detectaram uma descarga para dentro do seu poço, ficando e ainda estando assustados com as possíveis consequências para a sua saúde e para a sua vida, em virtude da ingestão da água do poço nas aludidas condições.
13. Além disso, B … e U …. sentem-se ofendidos e humilhados pelo facto de os arguidos os terem feito beber, bem como aos seus filhos, netos e todos os que foram recebidos em sua casa, toda a sorte de produtos tóxicos e imundícies.
14. Em substituição do poço contaminado, os ofendidos foram forçados a abrir um outro poço, em lugar diferente, no que despenderam € 2.538.
15. A obra de enchimento do poço contaminado, referenciada a fls. 216, importa cerca de € 4.827,00.
3. E como factos não provados:
1. Sem prejuízo do que consta em 3., não se provou especificamente que em Setembro de 2000, os arguidos fizeram construir, no seu terreno, uma fossa para recolha de dejectos das casas de banho e cozinha da referida casa, a qual foi implantada encostada ao muro que separa o seu quintal do da casa do ofendido, a escassos 2 metros de distância do poço de abastecimento da casa daquele; nessa ocasião, os arguidos, agindo de comum acordo, de forma concertada e levando a cabo um plano que previamente haviam delineado, perfurando os alicerces do antigo muro de vedação e da casa e ainda da parede do poço de casa do ofendido, assim construindo uma ligação directa entre aqueles; com esta mudança, os arguidos fizeram com que a fossa de sua casa passasse a drenar directamente para dentro do poço os dejectos, fezes e urina humanas, sabões, champôs, detergentes, produtos abrasivos de limpezas de sanitas e desentupimento de canos, que nela se acumulavam.
2. No dia 05 de Outubro de 2004, a ofendida B … estava a tomar banho, em sua casa, quando a água, que já vinha apresentando um cheiro desagradável, começou a ficar com espuma assumindo agora um cheiro nauseabundo.
3. Bem sabendo que o ofendido e a sua família vinham consumindo água altamente contaminada com os seus dejectos, os arguidos regozijando-se com tal situação, dirigiram-se aos ofendidos com expressões do género “hás-de beber o que eu mijo”.
4. Os arguidos tinham ainda a firme intenção de ofender o corpo dos ofendidos, o que concretizaram.
C) Os demais factos, não especificamente dados como provados ou não provados estão em oposição ou constituem a negação de outros dados como provados ou não provados, ou contém expressões conclusivas ou de direito, ou são irrelevantes para a decisão da causa.
4. Relativamente à motivação da decisão de facto ficou consignado:
O Tribunal formou a sua convicção em todo o acervo probatório produzido em audiência, analisado de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum.
Quanto ao ponto 1., que, ao fim e ao cabo, respeita às propriedades e confrontações, para além de ser premissa implícita no discurso de todos aqueles que testemunharam e conheciam o local (…), foi afirmado em uníssono por arguidos e assistentes.
Relativamente aos pontos 2. e 8., cuja matéria é atinente aos abastecimento de água através do ponto alegadamente contaminado, formou a convicção do Tribunal, as declarações dos próprios assistentes e as testemunhas ….que proporcionaram uma visão do que era em geral utilizado pelos moradores da zona para abastecimento de água aos respectivos prédios ou pelos assistentes em concreto.
No que toca ao ponto 3., relativo às más relações entre ambos os casais (assistentes/arguidos), resultou visível da forma como uns e outros se referiam a uns e outros, o que de si foi bastante para formar convicção.
No que diz respeito ao ponto 4., que se consubstancia na questão essencial dos autos e diz respeito ao facto de os arguidos fazerem a passagem de um tubo, do seu terreno para o poço dos assistentes, por onde faziam passar as águas residuais e ao ponto 5. onde está provado o efectivo resultado dessa acção, isto é, a existência de descargas para aquele poço, diremos que apesar de não de ter ficado com a certeza de quando e especificamente de onde foi feita a ligação (da fossa, directamente dos canos da casa, ou da casa de banho?) seguros estamos de que tal sucedeu.
Vejamos.
A água do poço dos assistentes encontra-se contaminada de forma compatível com água residual (cfr. fls. 49-50, …, médica do Centro de Saúde e
Há um buraco no poço dos assistentes, que aparenta ter sido feito de fora para dentro (vd. fls. 118, fls. 126 e, no essencial …, engenheiro - cujo testemunho, saliente-se, foi mais calmo, coerente, pormenorizado e seguro que o do engenheiro …, que se revelou mais excitado, mais evasivo, menos pormenorizado, aparentando a testemunha sentir-se, por vezes, quase que “ameaçada” ou “ofendida” com a inquirição e que assim se mostrou bem mais frágil; coadjuvado pelos testemunhos de …, que se referiu em geral ao aspecto das aberturas em cimento, de acordo com a sua experiência profissional de pedreiro).
Desse buraco, para dentro do poço, houve, pelo menos em momento perto da altura em que se descobriu a existência do buraco, sinais de escorrimentos (vd. assistentes, …, fotos juntas aos autos).
A direcção desse buraco é no sentido da confrontação com o prédio dos arguidos, sendo certo que os prédios apenas confrontam entre si, por esse lado – vd. todos aqueles que quanto a esta matéria testemunharam, conhecedores do local, já mencionados e fls. 136 e também, coadjuvando, fls. 138.
Em vários momentos (não só em Setembro de 2000, mas numa série de situações) os arguidos fizeram obras no seu terreno, bem depois da construção inicial das fossas que propiciaram a realização da passagem de tubos, de casa ou da fossa, para o terreno de U… (vd. em especial M …mas também M… e até …), pelo que apesar de não sabermos em concreto em que momento tal ocorreu, certo é que falta de oportunidade não faltou.
Para fazer a ligação de um prédio ao outro foram seguramente precisas obras.
Apenas o arguido foi visto em obras, não se tendo levantado a questão de qualquer terceiro, para além da autorização dos arguidos, ter estado no seu terreno a fazer qualquer obra, sem autorização destes – o que não será fácil, dado estarem em terreno alheio e seria naturalmente notado pela vizinhança, alguns dos quais testemunhas nestes autos.
Por outro lado, nada nos faz crer que qualquer terceiro tivesse interesse, vantagem em efectuar essas obras de ligação da propriedade dos arguidos para o dos assistentes.
Arguidos e assistentes estavam e estão de más relações.
Assim, tudo analisado à luz das regras da experiência comum, apesar de não ter sido possível demonstrar que específico tipo de obra e quando a mesma foi realizada (ponto 1. dos factos não provados), não pode deixar de se concluir como se fez nos pontos 4. e 5. da matéria provada.
Já o que ora consta dos pontos 6., 7. e 9. têm que ver com os elementos subjectivos do tipo e tipo de culpa e resultam da prova já mencionada e das conclusões supra aludidas, a que chegámos. De facto, quem actua da forma como o fizeram os arguidos, por regra actua com vontade de agir da forma como o faz. Por outro lado, tratando-se os arguidos de pessoas normais, como aparentaram em julgamento, tinham de saber, como qualquer cidadão médio que uma conduta como a dos autos, que fizesse com que os assistentes utilizassem para uso doméstico água residual, teria que resultar, pelo menos, em perigo para a saúde e vida destes. Poderiam surgir dúvidas quanto à necessidade de ocorrência de lesão, em virtude do consumo deste tipo de água (aliás, dúvidas às quais o tribunal foi permeável também e que com dificuldade tentou esclarecer), mas cremos que, analisadas as coisas à luz das regras do normal acontecer, qualquer cidadão, assim como os arguidos, bem sabe que quem consome água residual pelo menos tem a saúde e vida em perigo. Pelo exposto, só se deram como provados os elementos de dolo de perigo (ponto 7. dos factos provados) e já não os elementos do dolo de resultado (ponto 4. dos não provados).
O ponto 10. resultou da análise dos CRCs juntos aos autos, a fls. 446 e 447.
Quanto ao ponto 11., consideram-se as declarações dos arguidos na identificação e nas suas declarações para provar a ocupação dos mesmos e os factos atinentes à emigração e residência; quanto à reputação considerou-se os testemunhos de ….
Relativamente aos pontos 12. a 15., no que toca foram impressivas as declarações dos assistentes e sua filha…, assim como todos aqueles que especificamente se pronunciaram quanto à matéria. A este propósito consideraram-se os documentos de fls. 214-216.
5. Dos alegados erros de julgamento:
Consideram os recorrentes terem sido incorrectamente julgados os pontos n.ºs 4, 5, 6, 7, 8, 9, 12 e 13 do acervo factológico provado.
Relevantes, no domínio probatório, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
O art. 349.º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º do mesmo diploma).
No plano de análise em que nos movemos, importam as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)» Cfr, v. g., Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ, n.º 112, pág. 190..
As presunções simples ou naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.
As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 333 e ss..
Na verdade, como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004 In http://ww.dgsi.pt/jstj (proc. n.º 03P3213). «na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
(...)
A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável».
Em suma, nos parâmetros expostos, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras de experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também, elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.
Não se pondo em causa a legitimidade do recurso às presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP), a questão que imediatamente se coloca consiste em saber se, recorrendo às razões da lógica e às regras da experiência, os factos provados postos em causa pelos recorrentes são a consequência, normal e típica, dos factos conhecidos decorrentes da prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
Concretamente, contrapõem os recorrentes: a aludida prova não permite concluir no sentido de terem sido eles quem abriu um buraco no poço do assistente e colocou nesse buraco um cano; nenhuma prova se fez do conluio entre os arguidos para desencadear a referida conduta.
Há que apreciar, pois, a natureza/conteúdo das provas produzidas e, em seguida, os meios, modos os processos intelectuais, utilizados e inferidos pelo tribunal a quo, em sede de fundamentação da decisão de facto, para dar como provados os concretos factos que estão impugnados pelos recorrentes.
Para abastecer de água a sua casa, para o consumo doméstico, o assistente construiu um poço, em manilhas de cimento armado, com cerca de 8 metros de profundidade, o qual se situa por baixo do pavimento do pátio coberto existente nas traseiras da casa (cfr. ponto n.º 2 da factualidade provada, não questionado pelos recorrentes).
As manilhas em cimento armado que revestem o poço têm uma espessura entre 7cm e 12cm (….)
O pavimento do pátio é em placa de marmorite, que se estende até ao muro que divide os terrenos dos arguidos e do assistente (cfr. declarações do assistente – …).
Na primeira manilha do poço, foi feita uma abertura com um diâmetro de aproximadamente 10,00cm (cfr. relatório de peritagem de fls. 351, documentos fotográficos de fls. 352, e depoimentos da testemunha …).
Essa abertura possui o betão interior esmilhado de forma irregular (cfr. relatório de peritagem de fls. 351), o que permite fundadamente afirmar que foi feita, a cinzel, de fora para dentro da parede do poço, porquanto, como pormenorizadamente esclareceu a testemunha …, engenheiro civil, quando se abre um buraco numa parede de betão fina, como é o caso, e se bate com o cinzel, do lado oposto àquele em que se bate o cimento esmilha. Aliás, este depoimento foi corroborado pelas testemunhas … e …- tendo sido pedreiros, revelaram o conhecimento adquirido no exercício dessa profissão -, e é consonante com o conteúdo do relatório pericial de fls. 351.
No lado interior do poço, em direcção ao fundo, por baixo da abertura, havia uma escorrência castanho/amarelada, própria de água suja e matéria orgânica (cfr. relatório de peritagem de fls. 351, declarações do perito …).
Em consequência dos líquidos e matérias orgânicas que escorriam para o interior do poço, através da dita abertura, em 23 de Fevereiro de 2005 todos os parâmetros considerados na análise à água do poço (cloretos, nitratos, microorganismos viáveis a 22.ºC e 37.ºC, coliformes totais, escherichia coli, enterococos fecais e pesquisa de clostridios) ultrapassavam os valores máximos admitidos para a água destinada a consumo humano, não estando, por isso, conforme às Partes A, B e C do Anexo I, do Decreto-Lei 243/2001, de 5 de Setembro (cfr. documentos de fls. 49/50).
Na referida data, a água apresentava-se contaminada por excesso de matéria orgânica, de origem fecal, sendo a contaminação antiga (cfr. informação de fls. 126, prestada pelo técnico de saúde ambiental,…).
A água assim contaminada é susceptível de causar várias patologias, nomeadamente gastro-intestinais e dermatológicas, aos eventuais consumidores (cfr. depoimento da testemunha,….).
Entre o poço e o muro que divide os terrenos dos arguidos e do assistente existe uma distância de 1m/1,5m (cfr. declarações, coincidentes da arguida ….).
A abertura existente no poço, direccionada no sentido do dito muro, encontrava-se a uma profundidade média para a colocação de um colector de esgoto (cfr. relatório pericial de fls. 351 e documento de fls. 136), sensivelmente abaixo dos alicerces da casa do assistente e ao nível dos da quota de fundação daquele muro divisório. É o que se recolhe dos depoimentos, conjugados, das testemunhas…., que manifestou conhecimento sobre os elementos ora expostos.
No ano de 2000, os arguidos realizaram obras no seu prédio e plantaram árvores no quintal, sendo que, em data indeterminada, construíram uma casa de banho (cfr. declarações da arguida…).
Desde há muitos anos que os arguidos, de um lado, e o assistente de outro, estão incompatibilizados entre si (cfr. declarações do arguido …..
O cotejo destes dados de facto conduz necessariamente à ilação de que o buraco existente no poço só do quintal dos arguidos pode ter sido aberto.
O pavimento sobre o poço, estendido até ao muro, é em placas de marmorite, não havendo o mínimo indício probatório no sentido de ter sido perfurado antes da data em que a abertura foi detectada.
Assim, só do terreno dos arguidos - perfurando a terra/areia existente abaixo da quota de fundação do muro divisório e do alicerce da casa do assistente e a manilha em cimento que constitui a parede do poço – se antevê como possível a abertura do buraco em questão.
Aliás, como se recolhe do relatório pericial de fls. 351, “o aterro envolvente, à altura do buraco na parede do poço, apresenta alguns materiais diferentes da areia branca que constitui o aterro do pátio nessa zona” e, por sua vez, “o aterro por baixo da fundação” do muro, “na direcção e à profundidade do buraco do poço apresenta uma descontinuidade de tonalidade de mais escuro para mais claro (ver local assinalado na foto de fls. 2), indicando que o mesmo foi mexido e substituído por material mais claro”.
Em audiência de julgamento, o subscritor do citado relatório pericial, Eng. Civil Rogério Simões, esclareceu, de forma coerente e pormenorizada, como se assinala na fundamentação da decisão de facto da sentença recorrida, os aspectos em questão.
Referiu, a propósito:
O aterro que foi escavado à volta do poço, até à profundidade do buraco, “apresenta alguns materiais diferentes da areia branca que constitui o aterro do pátio na zona (…)”.
“Outra coisa que detectei e que me pareceu estranha, foi a terra, na estrema, por baixo da fundação do muro (…). O muro de estrema tinha uma viga de fundação e por baixo dessa viga havia terreno; a viga de fundação fica assente em terreno e deveria ter uma uniformidade visual, em termo de cor, de consistência e ao nível dos materiais, e aí, nessa direcção, nessa zona, também era ligeiramente diferente, de facto era diferente. Parece-me um pouco estranho que, estando a aterrar, depois surja uma zona de aterro mais escura. A alteração de material ocorre exactamente no troço que liga a zona do poço onde está o buraco e o muro”.
Bem menos credíveis se revelam, neste conspecto, as declarações da testemunha …, também engenheiro civil.
Referiu ter observado os aterros criados em volta do poço e no quintal dos arguidos, junto ao muro, e não ter detectado o mínimo indício de as terras terem sido perfuradas em direcção ao buraco.
Contudo o depoimento que esta testemunha prestou está eivado de meras suposições, insuficiências e até contradições.
Começou por conjecturar, sem razão lógica que se descortine, que a manilha onde existe o buraco fora adquirida já com essa abertura.
Depois, no início, em certa passagem do seu depoimento, foi peremptório na afirmação de que, caso tivesse havido perfuração do buraco e a colocação de um tubo, a partir do quintal dos arguidos, por baixo da fundação do muro, seria notório, quando da realização dos aterros, a existência, no local, do tubo assim colocado ou, tendo este sido removido, os indícios que da remoção necessariamente resultariam. Porém, em momento posterior, admitiu como possível a remoção do tubo, sem que essa operação deixasse vestígios.
Noutro ponto de análise, foi um atento observador de vários aspectos por si descritos, mas, estranhamente, não deu conta daquilo que, no dizer, credível e isento de várias testemunhas, era perfeitamente visível a “olho nu”. Referimo-nos aos vestígios de escorrências, de líquidos e matéria orgânica, em direcção ao fundo do poço, marcados na manilha, imediatamente abaixo do buraco.
Vejam-se os esclarecimentos insuspeitos do perito … (cassete 3, lado A, rotações 0000 a 0824)«vi um buraco, dentro do poço, e vi vestígios desse buraco (…), vestígios de cor acastanhada, em direcção ao fundo do poço. Sugeriram-lhe escorrências de uma água suja qualquer. Marcaram a parede do poço até ao nível da água»; o relatório pericial de fls. 351 e os depoimentos das testemunhas … (cassete 4, lado A, rotações 0000 a 1828)«viu o buraco a correr água. Vê-se nas paredes, junto ao buraco, “sujo”»; …(cassete 4, lado A, contador 1908 a 2501, lado B, contador 0000 a 2497 e cassete 5, lado A, contador 0000 a 0287) - «vi escorrência, húmida, meio escura (…), uma papa, de cor amarela, e líquida. Pareceram-me excrementos»; …(cassete 5, lado A, contador 1355 a 2378) - «O poço tinha um buraco numa manilha e estava a escorrer água suja»; …(cassete n.º 5, lado A, contador 2379 a 2499 e lado B, contador 0000 a 0946) - «vi só um buraco. Não havia nada a correr. Havia marcas, meio amareladas, de já ter corrido alguma coisa. Havia humidade».
A perfuração da terra e a abertura do buraco eram perfeitamente viáveis a nível técnico, como esclareceram as testemunhas Rogério Simões (Eng. Civil) – «o buraco pode ser feito por um “habilidoso”»; e Messias da Cruz Castelhano (pedreiro) - «não custa nada a fazer o buraco».
Para o poço, através da ligação efectuada através de um cano, corriam os líquidos e matérias orgânicas referidas no ponto n.º 4 da matéria de facto provada.
E quem mais, senão os arguidos, poderia ter praticado a conduta descrita no aludido ponto de facto?
Ninguém, afigura-se-nos.
Apenas os arguidos habitavam o prédio instalado no terreno que confronta com a casa de habitação do assistente, nada fazendo crer que terceiros tivessem livre acesso ao prédio daqueles, em termos tais que lhe fosse possível a realização das referidas obras de perfuração e colocação do tubo utilizado para drenagem para o poço do assistente de líquidos e matérias orgânicas.
No demais, fazendo apelo ao razoável entendimento das regras de vida, são manifestamente compreensíveis laços de continuidade lógica que permitem formular um juízo de inferência sobre: o acordo, pelo menos tácito, dos arguidos, reportado aos factos descritos no ponto 4, e à contribuição objectiva de cada um dos arguidos nas descargas de dejectos, fezes, urina, sabões, detergentes, etc. para o poço do assistente; o processo psíquico revelador dos elementos (intelectual e volitivo) do dolo e da consciência que os arguidos tinham da ilicitude das suas condutas.
Por fim, não pode ser posta em dúvida a matéria de facto vertida nos pontos n.ºs 5, (“utilização pelo ofendido e a sua família, para uso doméstico, da água do poço, designadamente para cozinhar, beber ou tomar banho”), 8, 12 e 13, vistos os depoimentos, credíveis, do assistente e da testemunha ….
Por todo o exposto, não procedem os desígnios dos recorrentes no sentido da alteração da matéria de facto.
Contudo, como bem salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, existe manifesto lapso na referência que é feita pelo n.º 1 da matéria de facto não provada ao ponto 3 da factualidade provada. Da correlação entre o acervo factológico provado e não provado, é permitido ver que, sob pena de quebra de todo e qualquer sentido lógico, o juiz de 1.ª instância, quando escreveu “sem prejuízo do que consta em 3.”, teve em mente não o n.º 3 mas sim o n.º 4 da factualidade tida por provada.
Tal lapso será corrigido, nos termos do disposto no artigo 380.º, n.º 1, al. b) e 2, do Código de Processo Penal.
Observa ainda o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto que a omissão, no acervo factual da sentença recorrida, à data da ocorrência dos factos, constitui uma nulidade prevista no artigo 379.º do CPP, a suprir por este Tribunal da Relação, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, do CPP.
Assim não entendemos.
Na acusação, a data “Setembro de 2000” surge reportada às obras que descreve, enquanto a data “5 de Outubro de 2004” é invocada como aquela em que a “ofendida MB estava a tomar banho (…)”, altura em que a água “começou a ficar com espuma, assumindo (…) um cheiro nauseabundo”.
Ora, relativamente à primeira das referidas datas, o tribunal a quo deu por provada a versão factual do ponto n.º 4, reportada a data indeterminada, e como não provado que, sem prejuízo do que consta naquele ponto n.º 4, as obras tivessem ocorrido, mormente em Setembro de 2004. Quanto à 2.ª data, todo o complexo factológico da acusação foi dado por não provado.
Verifica-se, isso sim, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
A delimitação temporal dos factos praticados pelo arguido tem evidente relevância no campo da punibilidade, mais não seja no domínio do instituto da prescrição do procedimento criminal.
Porém, havendo registo da prova produzida em audiência de julgamento, e existindo elementos probatórios que permitem fixar no tempo a conduta dos arguidos, pode-deve este Tribunal da Relação modificar, em conformidade, a matéria de facto, suprimindo o vício.
Ora, as declarações, convincentes, da testemunha …permitem saber que as descargas dos produtos e matérias referidos no ponto n.º 4 da matéria de facto provada ainda se verificavam em Outubro de 2004.
Em conformidade com o que se vem de expor, procedendo à modificação da matéria de facto, nos pontos em destaque, os factos provados e não provados são os seguintes:
Factos provados:
(…)
«5. Em virtude do exposto, até pelo menos Outubro de 2004, foram feitas descargas directamente para o poço de casa dos arguidos, sendo certo que o ofendido e a sua família faziam uso doméstico da água daquele poço, designadamente para cozinhar, beber ou tomar banho.
(…)»
Factos não provados (para além dos que constam da sentença recorrida):
«1. Sem prejuízo do que consta em 4., não se provou especificamente (…).
(…)».
6. Da violação dos artigos 124.º e 127.º do CPP:
Secamente, invocam os recorrentes a violação do artigo 124.º do CPP.
Porém, toda a prova considerada pelo tribunal a quo, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, teve por base os factos probandos, juridicamente relevantes para a existência do crime, a punibilidade dos arguidos e a determinação das penas que aos mesmos foram impostas.
Na concreta situação dos autos, o tribunal objectivou e motivou o seu convencimento da verdade dos factos, através de uma via suficientemente racionalizável, em que assumiu compreensível relevo a fundamentação da decisão de facto que se transcreveu, onde é perfeitamente perceptível o raciocínio lógico-dedutivo seguido e as razões que determinaram que se dessem como provados e não provados os factos que a decisão recorrida acabou por consagrar.
Ao invocar a violação do princípio consignado no artigo 127.º do CPP, os recorrentes mais não pretendem a final do que a modificação da matéria de facto, pretensão essa que já foi sindicada por este tribunal ad quem, nos termos supra expostos.

*
8. Da verificação do crime de poluição do artigo 280.º, al. a) do Código Penal:
Dispõe o artigo 280.º, alínea a) do Código Penal (norma introduzida no referido diploma pela revisão levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março):
«Quem mediante uma conduta descrita no n.º 1 do artigo anterior, criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão:
a) De 1 a 8 anos, se a conduta e a criação de perigo forem dolosas;
b) Até 5 anos, se a conduta e a criação do perigo ocorrer por negligência».
Por sua vez, estatui o artigo 279.º do mesmo corpo normativo:
«1. Quem, em medida inadmissível:
a) Poluir águas ou solos ou, por qualquer forma, degradar as suas qualidades;
(…) é punido (…).
3. A poluição ocorre em medida inadmissível sempre que a natureza ou os valores da emissão ou da imissão poluentes contrariem prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente em conformidade com disposições legais ou regulamentares e sob cominação de aplicação das penas previstas neste artigo».
O crime de poluição do citado artigo 280.º é um crime pluri-ofensivo em que o bem jurídico protegido não visa proteger o ambiente, pelo menos de forma directa. Nas palavras do Sr. Conselheiro José Souto Moura Crimes Ambientais, CEJ, pág. 14., não se trata de um crime ecológico puro, em que o legislador se desinteressa da tutela de bens jurídicos individuais. O que a norma visa proteger é a vida, a integridade física e bens alheios de valor elevado.
«E isto porque, quando no artigo 280.º se remetia para a conduta descrita no n.º 1 do artigo 279.º, como que ficava de fora a definição da medida inadmissível da poluição, que constava do n.º 3 do artigo 279.º» Souto Moura, idem.. O legislador, se o quisesse, teria sido mais explícito, fazendo menção expressa, também, ao dito n.º 3».
Este entendimento não sofre hoje contestação em face da nova redacção conferida ao artigo 280.º pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, do seguinte teor:
«Quem mediante conduta descrita nas alíneas do n.º 1 do artigo anterior, criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, para bens patrimoniais alheios de valor elevado ou para monumentos culturais ou históricos, é punido com pena de prisão:
a) De 1 a 8 anos, se a conduta e a criação de perigo forem dolosas;
b) Até 5 anos, se a conduta e a criação do perigo ocorrer por negligência» (os segmentos anotados a “negrito” pertencem-nos, e correspondem às alterações concretamente registadas).
Na verdade, na nova redacção do preceito, o legislador foi preciso na referência às alíneas do artigo 279.º, sinal inequívoco de que foi sua intenção «utilizar a poluição como mero instrumento de criação de perigo, não se fazendo dele um tipo qualificado em que, ao tipo matricial, se acrescentou depois o perigo» Souto Moura, ibidem..
Para os recorrentes, o crime em destaque é um crime de perigo comum «em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indeterminado de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos».
Partindo desta concepção para a análise do caso concreto, acrescentam os recorrentes que a circunscrição do perigo decorrente da conduta promovida pelos arguidos ao assistente, e à sua família (cfr. pontos 2 e 5 da factualidade provada), obsta ao enquadramento da ocorrência versada nos autos como perigo comum, conduzindo necessariamente à sua absolvição, por os factos provados não preencherem o “tipo” de crime pelo qual foram acusados e condenados.
Não é esta a posição que defendemos.
A propósito dos crimes de perigo, pode ler-se no ponto 31. do preâmbulo do Dec. Lei 400/82 de 23/9, que aprovou o C. Penal na redacção de 1982:
«O ponto crucial destes crimes - (...) - reside no facto de que condutas cujo desvaler da acção é de pequena monta se repercutem amiúde num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o que neste capítulo está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo. A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a protecção para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta».
Os crimes de perigo têm por oposto os crimes de dano. Enquanto nestes, o preenchimento típico depende da efectiva lesão do bem jurídico tutelado pela norma, naqueles a consumação basta-se com o perigo, com o risco, efectivo ou presumido, da lesão do bem jurídico tutelado pela norma Neste sentido, Prof. Cavaleiro de Ferreira, in Lições de Direito Penal, I, pág. 37, e Rui Carlos Pereira, in O Dolo de Perigo, pág. 23.. Podemos pois, afirmar que o perigo é sempre a possibilidade ou a probabilidade de lesão do bem jurídico tutelado.
Nos crimes de perigo há que distinguir entre crime de perigo abstracto e crime de perigo concreto.
Nos primeiros, o perigo, a perigosidade da acção, é presumido júris et de jure.
Nos segundos, o perigo, concebido como situação perigosa, surge como “evento” típico, destacado da acção.
Dito isto, o crime do art. 280.º incrimina uma conduta e associa a esta, na descrição típica, como um evento autónomo, um perigo para os bens jurídicos que descreve (vida ou integridade física de outrem, bens patrimoniais alheios de valor elevado ou, na nova redacção do preceito, para monumentos culturais ou históricos), sendo, por isto, um crime de perigo concreto.
«Os crimes de perigo comum são crimes de perigo em que o perigo se expande relativamente a um número indeterminado e indiferenciável de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou por vários bens jurídicos Prof. José Faria e Costa, citando Tröndle/Fisher, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 866.. Se uma acção – desse modo tipificada na lei – cria um perigo concreto, por exemplo, para a vida de dezenas, centenas ou mesmo milhares de pessoas, está-se, indesmentivelmente, perante um crime que é, simultaneamente, um crime de perigo comum e de perigo concreto» Prof. Faria e Costa, idem, pág. 866..
Se a epígrafe do art. 280.º pode levar a pensar que nos situamos perante um crime de perigo comum, a letra da norma não deixa dúvidas de que se trata «de um clássico crime de perigo concreto» segundo o modelo acima descrito. «Bem mais perto “de uma compreensão de “perigo comum” (…) está, é bom dizê-lo, a norma incriminadora contida no art. 281» Prof. Faria Costa, mesma obra, pág. 866/867..
Em suma, sendo o crime do artigo 280.º um crime de perigo concreto que não um crime de perigo comum, ao preenchimento dos elementos do tipo basta a mera colocação em perigo dos bens jurídicos aí mencionados, independentemente da ocorrência de uma situação de perigo para um número indiferenciado e indeterminado de objectos de acção sustentados por bens jurídicos Neste sentido, o Ac. da Relação do Porto de 27-04-2005, publicado em www.dgsi.pt..
Revertendo ao caso dos autos, está provado:
- Os arguidos drenaram para o poço do assistente dejectos, fezes e urina humana, sabões, champôs, detergentes, produtos abrasivos de limpezas de sanitas e desentupimento de canos;
- O assistente e sua família faziam uso doméstico da água do poço, designadamente para cozinhar, beber ou tomar banho;
- Durante um período indeterminado, enquanto não foi detectada a transformação operada, o assistente e sua família tomaram banho com água altamente poluída com dejectos e produtos abrasivos, prejudiciais ao seu corpo;
- Os arguidos tinham a firme intenção, concretizada, de misturar a água do poço que fazia o abastecimento da casa do assistente com dejectos e outras águas residuais de sua casa, bem sabendo que aquele e bem assim toda a sua família faziam uso doméstico daquela água e assim poriam em perigo a saúde e mesmo a vida dessas pessoas.
Perante estes factos, é inquestionável terem os arguidos cometido o crime p. e p. pelo art. 280.º, alínea a) do Código Penal, como bem decidiu o tribunal de 1.ª instância.
Na economia do recurso, a absolvição do pedido civil impetrada pelos recorrentes tem como pressuposto a inexistência do crime do artigo 280.º, al. a) do CP.
Verificado que está o referido crime, há que manter, integralmente, também nesta parte, a decisão do tribunal a quo.
11. Da responsabilidade pelas custas:
Face à improcedência do recurso, cumpre condenar os recorrentes em custas, nos termos do disposto nos arts. 513.º e 514.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com o disposto nos arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, estes do Código das Custas Judiciais.
III. Decisão:
Posto o que precede, decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção integral da decisão recorrida.
Taxa de justiça de 6 UC´s a cargo de cada um dos recorrentes, que ficam ainda condenados, solidariamente, nos encargos.