Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
895/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
PEDIDO RECONVENIONAL - SEU CONHECIMENTO
Data do Acordão: 05/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 193º, Nº 1, E 274º, Nº 6, DO CPC .
Sumário: I – Dispõe o artº 274º, nº 6, do CPC, que a improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor .
II – Este normativo constitui uma das inovações introduzidas no CPC pela chamada reforma de 1995, e que, de algum modo, veio consagrar a doutrina que, nesse domínio, era já possível inferir da norma do artº 296º, nº 2, do CPC, assumindo, assim, a natureza de uma norma interpretativa .

III – Resulta daquele normativo a regra de que o pedido reconvencional será apreciado não obstante a inadmissibilidade ou a improcedência da acção, ou seja, em princípio o pedido reconvencional não deixará de ser apreciado mesmo que a acção venha a ser julgada improcedente ou o réu seja absolvido da instância, só assim não sucedendo no caso de o pedido reconvencional estar ou ser dependente do pedido formulado pelo autor .

IV – Tendo o réu deduzido reconvenção, o nº 1 do artº 193º do CPC, onde se estatui que é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, deve ser interpretado no sentido de que se reporta (tão só) à nulidade de todo o processado que depende da petição inicial afectada pelo vício da ineptidão, em nada afectando a prossecução da reconvenção, quando esta não for dependente do pedido formulado.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. A autora, A..., instaurou a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os réus, B... e mulher C..., alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
Desde 1965 que vem ocupando o prédio urbano id. no artº 1º da pi. Inicialmente por virtude de um contrato de arrendamento que, na qualidade de inquilina, celebrou com D..., e depois, na sequência de um novo contrato de arredamento que, em 1968, celebrou com o 1º R-marido, assumindo este a qualidade de senhorio, e, por fim, na qualidade de promitente-compradora e na sequência de um contrato-promessa que, em 11/12/1981, celebrou com o R, na qualidade de proprietário e então casado com E..., através do qual estes lhe prometeram vender o referido imóvel, nas condições estipuladas no clausulado do dito contrato (e melhor descriminadas no doc. junto a fls. 14/15 destes autos).
Réu que, entretanto, se divorciou daquela sua mulher, vindo depois a casar-se com aquela 2ª ré, sendo que, na sequência do inventário ocorrido para partilha dos bens do casal-divorciado, tal imóvel lhe veio a ser adjudicado.
Acontece que, devido à ocorrência de várias vicissitudes relatadas pela autora, o réu, de forma culposa, vem faltando ao cumprimento do referido contrato-promessa, recusando-se, nomeadamente, a celebrar a escritura pública do respectivo contrato-prometido, e não obstante a autora já lhe ter pago o montante de todo o preço que fora estipulado para o efeito.
De qualquer modo, e à falta de outro título que legitimasse a ocupação que vem fazendo do dito prédio urbano, sempre a autora teria adquirido o direito de propriedade sobre o mesmo por via do instituto da usucapião.
Pelo que terminou a autora pedindo:
a) A condenação dos RR a reconhecerem o direito de propriedade pleno e exclusivo da A. sobre o referido prédio urbano id. na pi;
b) Que se adjudicasse à autora o referido prédio, “proferindo-se sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos faltosos, que como outorgantes, vendedores estão obrigados a prestar por escritura pública da venda prometida, contra o preço ajustado e já recebido, fornecendo todos os documentos necessários à outorga do contrato prometido”;
c) Que se “cancelassem todos os registos que se oponham a tal ou quando se torne impossível”;
d) Que se declarasse “resolvido o contrato por falta de cumprimento dos RR. e condenar-se estes a devolver à A. o dobro do sinal e preço recebidos, acrescidos de correcção monetária a efectuar entre 11/12/1981 até efectiva condenação, mais juros vincendos...e ainda pagamento de cláusula pena devida por esse contrato”.

2. Os réus contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação, e contra-atacando por via de dedução de reconvenção.
Como fundamento da sua reconvenção alegaram, em síntese, que foi a autora (pelas razões que descriminaram), e não o réu, que, culposamente, não cumpriu o clausulado do aludido contrato-promessa que haviam celebrado, entrando em mora de cumprimento, levando, por via disso, o R. perder definitivamente o interesse que tinha na realização do negócio.
Situação de incumprimento da autora que lhe acarretou, inclusivé, diversos danos de natureza patrimonial e não patrimonial.
Pelo que terminaram os réus por pedir a absolvição da ré da instância e o réu de todos os pedidos formulados pela autora, e, por sua vez, a procedência da reconvenção, consubstanciada através de diversos pedidos formulados contra aquela, quer a título principal, quer a título subsidiário.
No que concerne aos pedidos principais da reconvenção foi pedido, em síntese, que fosse declarado que a autora, ao não proceder ao pagamento das contribuição autárquica e dos montantes das amortizações mensais nos termos ali alegados e que foram contratualizados, incumpriu o aludido contrato-promessa de “forma irremessível e para sempre, por o reconvinte ter perdido, de forma definitiva, o interesse na prestação a que a reconvinda ficou adstrita”, com a resolução do referido contrato e, em consequência, a perda “por parte da reconvinda das quantias por ela já pagas” e ainda “em indemnização do reconvinte no montante de € 49.880,04 ...e entrega imediata da moradia livre de pessoas e coisas”.

3. Replicou a autora, pedindo a improcedência não só das excepções deduzidas pelos réus como também do pedido reconvencional.

4. No despacho sanedor, o srº juz a quo considerou enfermar a petição inicial do vício de ineptidão, por haver cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis entre si (vg. consubstanciados nas als. a) e b) e b) e d) do petitório final), pelo que, em consequência, julgou, no final, procedente a excepção (dilatória) de inpetidão da petição inicial (que havia sido deduzida pelos RR), absolvendo estes da instância.

5. Despacho decisório esse que transitou em julgado.

6. Entretanto, os réus fizeram juntar os autos os requerimento de fls. 510/511, através do qual solicitaram ao juiz do processo que providenciasse pela normal tramitação do mesmo, com vista à apreciação da reconvenção que por si foi deduzida.

7. Pela srª juiz a quo, que entretanto foi nomeada titular do processo, foi proferido o despacho de fls. 516, através do qual se indeferiu a sobredita pretensão dos réus, com o fundamento de que a ineptidão da petição, que levou à absolvição da instância dos réus, acarreta a nulidade de todo o processado.

8. Não se tendo conformado com tal despacho decisório, os réus dele interpuseram recurso, o qual foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

9. Nas alegações de tal recurso, os réus-agravantes concluíram as mesmas nos seguintes termos:
B1: O recorrente, ante a paralisia dos autos, após a prolacção do douto despacho que, ao julgar inepta a petição inicial, o absolveu e a outra, da instância, dado que deduziu reconvenção, acompanhado, da então sua co-ré, requerereu a prossecução da tramitação processual para conhecimento da matéria da reconvenção. Porém,
B2: viu esta pretensão desatendida, com a invocação do disposto no artigo 193º, nº 1, do Código de Processo Civil, nos termos do qual é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. Ora,
B3: se este entendimento já era, salvo o devido respeito, insustentável antes da revisão operada em 1995 no mencionado diploma, pois a falada nulidade, por força da própria natureza das coisas e da teleologia específica da figura da reconvenção, dever-se-ia entender restrita à pretensão deduzida pelo autor
B4: afronta, agora, norma expressa, no caso o nº 6 do artigo 274º, do Código de Processo Civil. Como tal,
B5: o recorrente assaca ao douto despacho recorrido uma deficiente compreensão da norma invocada pela m.ma juíza, que não pode ser interpretada como a Ex.ma julgadora o fez, antes o devendo ser nos termos acima preconizados
B6: e a violação de lei expressa, no caso, o já falado nº 6 do artigo 274º, do Código de Processo Civil. Com efeito,
B7: tendo em conta a independência dos pedidos deduzidos em sede de reconvenção relativamente à pretensão formulada pela autora/recorrida, deveria a m.ma juíza, ao invés do que fez, ter determinado a prossecução processual, nos termos legalmente previstos que tivesse por cabidos, face à situação concreta. Por conseguinte,
B8: ante a procedência do presente recurso, devem V.as Ex.as revogar o despacho recorrido, determinando que baixado o processo à 1ª instância, seja aberta conclusão à m.ma juíza, para que esta proceda ao saneamento do processo, de acordo com a tramitação que julgar adequada.”

10. A autora-agravada nas suas contra-alegações pugnou pela improcedência do agravo.

11. No tribunal a quo sustentou-se, de forma tabelar, o despacho recorrido.

12. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
***
II- Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso.
É sabido que são as conclusões das alegações do recurso que fixam e delimitam o objecto do mesmo (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, do CPC).
Como resulta de tais conclusões, e bem assim daquilo que supra se deixou exarado, a única grande questão que, no fundo, importa aqui apreciar e decidir consiste em saber se a srª juíza do tribunal a quo andou ou não bem ao ter indeferido o pedido dos réus de prosseguimento do processo com vista à apreciação da reconvenção que os mesmos deduziram, na sua contestação, contra a autora.
***
2. Os Factos
Os factos relevantes para o decisão da questão, aqui em apreço, são aqueles que supra se deixaram descritos, e que resultam das diversas peças documentais juntas a estes autos – e que aqui, por uma questão de economia processual, nos dispensamos de novamente reproduzir.
***
3. O Direito
Como resulta do supra exarado, a única questão aqui em apreciação consiste em saber se, no caso em apreço, o despacho que absolveu os réus da instância, por ineptidão da petição inicial (dado nela se formularem pedidos substancialmente incompatíveis), obsta ao prosseguimentos do processo para apreciação do pedido reconvencional deduzido pelos réus?
Vejamos.
Dispõe o artigo 274, nº 6, do CPC, que “a improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor”.
Normativo esse que, como é sabido, constitui uma das muitas inovações introduzidas com a chamada reforma do CPC/95, e que, de algum modo, veio consagrar a doutrina que, nesse domínio, era já possível inferir da norma do artº 296, nº 2, do CPC (que já antes da referida reforma, tal como agora, estipulava que “a desistência do pedido é livre, mas não prejudica a reconvenção, a não ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor”), assumindo, assim, de alguma modo, a natureza de uma norma interpretativa (vidé, por todos, o Cons. Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, pág. 223, nota V).
Norma esse que é norteada, essencialmente, por fins de economia processual, a qual, como se sabe, foi uma das preocupações que esteve sempre presente na mente do legislador da actual reforma processual civil.
Assim, consagra-se em tal norma o princípio geral da apreciação autónoma dos pedidos da acção e da reconvenção, resultante da regra da autonomia da reconvenção em relação ao pedido da acção.
Desse modo, resulta desse normativo a regra de que o pedido reconvencional será apreciado não obstante a inadmissibilidade ou a improcedência da acção, ou seja, em principio o pedido reconvencional não deixará de ser apreciado mesmo que a acção venha a ser julgada improcedente ou o réu seja absolvido da instância.
Só assim não sucederá (e essa é a excepção à regra) no caso de o pedido reconvencional estar ou ser dependente do pedido formulado pelo autor. Ou seja, o nº 6 do citado artº 274 prevê tão só, como causa de exclusão da apreciação do pedido reconvencional, a dependência entre este e o pedido do autor, sendo que alguns autores estendem ainda essa exclusão aos casos de procedência de uma excepção que, pela sua natureza ou vontade do réu, se mostre incompatível com tal pedido (cfr., a propósito, o prof. Lebre de Freitas, in “Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, págs.173/174 e nota 34” e ainda in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, pág. 491”).
Como exemplos escola de dependência (por natureza) do pedido reconvencional em relação ao pedido do autor, veja-se aqueles casos em que o réu invoca ali uma compensação de créditos, ou, por ex., quando numa acção de despejo o réu reclama, por via da sua reconvenção, uma indemnização por benfeitorias realizadas no locado, ou, ainda, quando o réu, numa acção reconhecimento de constituição de servidão de passagem, pede, por via reconvencional, a extinção da mesma, por desnecessidade, ou então quando (por vontade do réu) a reconvenção é deduzida cautelarmente, ou seja, de só ser atendida para a hipótese de a acção vir a ser julgada procedente.
Ora, face ao que acima deixámos (ainda que de forma sintéctica) exarado, facilmente, a nosso ver, se terá de concluir que não existe qualquer dependência entre o pedido reconvencional e o pedido formulado pela autora, ou melhor, aquele não está dependente da formulação deste último. Qualquer um deles pode sobreviver, no processo, sem o outro, e muito especialmente no que concerne ao pedido reconvencional, aqui em causa, relativamente ao pedido deduzido pela autora. De comum tais pedidos têm apenas o mesmo facto ou acto jurídico de que partem para fundamentar as suas respectivas pretensões, ou seja, a existência de um contrato-promessa cujo incumprimento cada uma das partes imputa à outra.
Logo, em principio, não se verificando a excepção prevista no citado nº 6 do artº 274 do CPC, ou seja, a sobredita dependência do pedido reconvencional em relação ao pedido formulado pela autora, nada impediria que autos prosseguissem, tal como impõe o referido normativo, para apreciação daquele primeiro pedido (reconvencional).
Porém, e à primeira vista, um obstáculo surge – e que serviu de fundamento à srª juiz a quo – para que tal possa acontecer. É que tendo os réus sido absolvidos da instância, com o fundamento na ineptidão da pi (devido à formulação cumulativa de pedidos substancialmente incompatíveis entre si), preceitua o nº 1 do artº 193 do CPC que “é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”.
Só que tal obstáculo é apenas aparente, como tentaremos demonstrar.
Como escreve o prof. Lebre de Freitas (in “obras supra citadas, respectivamente, pág. 17, nota 15, e págs. 322, 326 e 327”), a dedução de pedidos entre si incompatíveis implica a contradição no objecto do processo que impede a sua necessária identificação, fazendo com que (à semelhança do que sucede com as demais causas de ineptidão da pi) não haja condições para a decisão de mérito pretendida (pelo autor). A ineptidão constitui, assim, um vício de conteúdo da petição inicial, em que está em causa a conformação do objecto do processo. A invalidade que gera é não tanto uma invalidade do acto enquanto elemento da sequência processual (não obstante o efeito radical cominado no artº 193, nº 1, do CPC) mas uma invalidade do acto em si mesmo considerado, que o impede de, assim, exercer a sua função conformadora do objecto do processo, gerando, desse modo, a falta de um pressuposto processual (cfr. artºs 288, nº 1 al. b) e 494 al. b), ambos do CPC).
Estando, pois, em causa, um vício que afecta, nos termos acabados do referir, o acto inicial do processo, ou seja, a petição inicial, é natural que, não havendo condições para decidir sobre a pretensão pretendida (pelo autor), tal acarrete a nulidade de todo o processado que dela depende.
É sabido que a cada direito corresponde uma acção destinado a fazê-lo valer em juízo (artº 2, nº 2, do CPC).
Porém, a lei permite que, mais uma vez por razões de economia processual, o réu não só se defenda do ataque que lhe é dirigido pelo autor como também ainda aproveite o processo para contra-atacar o mesmo. Ou seja, fundamentalmente por razões de economia processual, a lei permite que, em vez de as partes em litígio instaurarem, uma contra a outra, duas acções em separado para fazer valer os seus direitos, o possam fazer utilizando um só e mesmo processo. Daí que a parte (neste caso o réu) que primeiramente é demandada, o possa fazer no próprio articulado da contestação, através da figura processual denominada reconvenção, também conhecida por contra-acção. É certo que, para que tal possa suceder, a lei estabelece para o efeito alguns mecanismos processuais de controle, nomeadamente através da fixação de alguns pressupostos e dos quais ressalta a exigência de que entre as “duas acções” haja factores de conexão (cfr. nºs 2, 3, 4 e 5 do citado artº 274). Portanto, com a dedução da reconvenção, ficamos, no fundo, na presença de duas acções que se cruzam entre si utilizando um só e mesmo processo. Em reforço deste entendimento veja-se ainda o disposto no artº 501 do CPC.
Logo, se a regra é que a cada acção corresponde um processo, é normal e natural que, estando petição inicial afectada de um vício (de conteúdo), de tal modo grave, que impede no futuro que se possa decidir sobre o mérito da pretensão nela formulada, que se anule todo o processado que dela depende, ou seja, e no fundo, o processo.
Todavia, já, assim, não sucederá, e nem é natural e normal que o seja, se no mesmo processo tiverem sido “instauradas duas acções”. Na verdade, estando perante duas acções autónomas, e independentes, não faz sentido, e nem tal encontra justificação à luz dos princípios supra referidos, que o vício de que uma delas (neste caso a da autora) esteja afectada possa, na prática, contagiar a outra, impedindo-a de prosseguir a sua tramitação normal e de, mais tarde, vir a ser apreciada e julgada. Em tais condições uma das partes não pode ser sancionada pela inépcia ou inaptidão da outra. Numa linguagem metafórica, poder-se-ia dizer que “o justo não pode pagar pelo pecador”. Com solução contrária, ou seja, a perfilhar-se o entendimento seguido pelo tribunal a quo, ir-se-ia fechar, mais uma vez, a porta que o legislador quis abrir, sendo certo que, para além de não se vislumbrarem razões suficientemente válidas que o justifiquem, tal colidiria, repete-se, com os princípios que atrás deixámos enunciados e que são caros do actual legislador.
A seguir-se “à letra” o referido normativo – tal como o fez a srª juiz a quo – ou seja, fazendo-se uma interpretação estrita e rigorosamente literal do mesmo, pense-se, e salvo sempre com o devido respeito por opinião em contrário, no absurdo a que seriamos conduzidos, por ex., na seguintes situações: Se, em vez de ser a petição inicial do autor, fosse a reconvenção do réu (havendo mesmo quem lhe chame petição reconvencional, por contraponto com a petição da acção) que sofresse do referido vício de ineptidão, conhecido no despacho saneador, tal acarretaria, como nulidade de todo o processo, então também a nulidade de todo o processado pelo autor, obstando, assim, a que o tribunal conhecesse da sua pretensão formulada na sua pi (que não sofre de qualquer vício)? E se tal vício, numa acção em que não há despacho saneador, fosse apenas detectado na sentença final? (cfr. artº 206, nº 2 – 2ª parte – do CPC).
Afigura-se-nos, assim, e por tudo o exposto, que tendo o réu deduzido reconvenção, o nº 1 do citado artigo 193 do CPC, quando ali estatui que é “nulo todo o processo...”, deve ser interpretado no sentido de que se reporta (tão só) à nulidade de todo o processado que depende da petição inicial afectada pelo vício da ineptidão.
Interpretação essa que, por tudo o que supra se deixou exarado, obedece, a nosso ver, aos cânones estabelecidos no artº 9 do Código Civil.
Nestes termos, deve conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, ordenando-se, em consequência, que os autos prossigam a sua ulterior tramitação legal com vista à apreciação da reconvenção deduzida pelos réus.
***
III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso (de agravo), revogando-se o despacho recorrido, ordenando-se, em consequência, que os autos prossigam a sua ulterior tramitação legal com vista à apreciação da reconvenção deduzida pelos réus.
Custas do recurso pela autora-agravada (cfr. artº 2, nº 1 al. g) – à contrário – do CCJ).

Coimbra, 2006/05/03