Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3790/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: CHEQUE COMO TÍTULO EXECUTIVO: REQUISITOS NECESSÁRIOS
Data do Acordão: 01/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº S 45º E 46º, AL. C), DO CPC .
Sumário: I – No caso de um cheque não ser apresentado a pagamento no prazo decorrente do artº 29º da L.U. s/C., e sendo omisso em relação à obrigação subjacente, além de nada ser alegado sobre esta obrigação no requerimento executivo, deve entender-se que esse documento não constitui título executivo .
II – As condições que permitem ao credor exigir, de imediato, a prestação coactiva da prestação têm de estar reunidas logo no início da execução, pelo que não pode uma contestação de embargos servir de complemento ao requerimento executivo e suprir as deficiências deste .
Decisão Texto Integral: 5

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Relatório.
I – Por apenso à execução ordinária para pagamento de quantia certa que A..., com sede em Lauchringen, Alemanha, lhe move, no 2° Juízo do tribunal da comarca de Castelo Branco, B..., com sede em Alcains, deduziu embargos de executado pedindo que se julgue extinta a execução, com o fundamento de que o cheque em que a mesma se baseia não constitui título executivo, por ter sido apresentado a pagamento depois do decurso do prazo de oito dias subsequentes à sua emissão.
Acrescentou ainda que o cheque foi entregue apenas como caução do acordo de pagamento da quantia de 18.672,23 €uros, em prestações semanais de 500,00 €uros, em cumprimento do qual já pagou 1.500,00 €uros.
A embargada contestou sustentando a exequibilidade do título e, aceitando ter já recebido 1.500,00 €uros, pugnou pelo prosseguimento da execução para cobrança do restante.
No saneador, o Mmº Juiz considerou o cheque título executivo válido e ordenou o prosseguimento da execução para cobrança da quantia de 17.172,23 €uros.
Inconformada com tal decisão, apelou a embargante, terminando a sua alegação com as conclusões seguintes:
1. O cheque dos autos não é título executivo, visto que foi apresentado a pagamento fora do prazo legal, isto é não foi apresentado a pagamento nos oito dias seguintes à data da sua emissão, nos termos dos art.ºs 29º e 40º da L. Unif. Cheques.
2. Por tal não pode valer como título executivo, sendo manifesta a falta e insuficiência de título executivo, devendo ser indeferida a presente execução, art.811º e segs. C.P.C..
3. O cheque dos autos nunca se destinou a ser utilizado como meio de pagamento de qualquer dívida da recorrente, mas como garantia desse crédito.
4. O cheque foi emitido como simples meio de garantia e não pode o tomador fazê-lo valer como meio de pagamento e instaurar execução contra o sacador (neste sentido ac. RP: de 1977 in CJ ano II pag, 57; Ac. RC de 1988 in BMJ pag. 391 ; Ac. STJ 1999, C.J. STJ tomo II ano VII, pág. 89).
5. Não possui a recorrida título executivo bastante para alicerçar a presente acção executiva, nem o cheque vale como documento particular, pois é uma mera garantia, não podendo a recorrida utilizá-lo para ser paga do seu crédito.
A embargada não ofereceu contra-alegação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Fundamentação de facto
Os factos com relevo para a apreciação e decisão do recurso são os seguintes:
1. A embargada deu à execução um cheque no valor de 18.672,23 €uros, emitido a seu favor pela embargante, com data de 24 de Fevereiro de 2003.
2. O cheque não foi apresentado a pagamento em qualquer instituição de crédito e dele não consta a obrigação que está na base da sua emissão.
3. A embargada não preencheu o campo do requerimento executivo destinado à exposição de factos.
4. Na data de emissão do cheque, embargante e embargada acordaram que aquela pagaria o valor indicado no cheque, em prestações semanais sucessivas de 500,00 €uros cada uma, a primeira a vencer-se a 26 de Fevereiro de 2003.
5. A embargante pagou apenas as 3 primeiras prestações.
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III – Fundamentação de direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da apelante (artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil), passa pela análise e resolução da única questão jurídica por ela colocada a este tribunal e que consiste em determinar se o cheque não apresentado a pagamento nos oito dias subsequentes à sua emissão é, ou não, título executivo.
O processo executivo baseia-se, como se sabe, num título executivo, cuja apresentação é suficiente para iniciar a execução. O título executivo consiste num documento que faz prova documental simples de um acto ou de um negócio jurídico constitutivo ou certificativo de uma relação jurídica de natureza real ou obrigacional e que, só por si, permite que o credor desencadeie a actividade jurisdicional visando a realização coactiva da prestação que lhe é devida. Pode dizer-se que «é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente, ou que estabelece, de forma ilidível, a existência daquele direito, cujo lastro corpóreo ou material é um documento (v.g. sentença, documento particular), que a lei permite que sirva de base à execução» Cfr., a este propósito, José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código Revisto, 2ª edição, pág. 30, e J.P. Remédio Marques, in Curso de Processo Executivo Comum, à face do código revisto, 1ª edição, págs. 55 e 56.. É um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6ª edição, pág. 19, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1985, pág. 76.. O título executivo constitui, pois, a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva (artº 45º, nº 1 do Cód. Proc. Civil).
No caso, o título em que se funda a execução de que os embargos são apenso é um cheque sacado pela embargante a favor da embargada, que o não apresentou a pagamento nos oito dias subsequentes à sua emissão.
O cheque tem, como se sabe, uma função económica complementar da moeda, substituindo-a inclusive vantajosamente, na medida em que evita o risco da transferência de dinheiro efectivo, ou numerário, e proporciona uma maior comodidade na liquidação de débitos, através de ordens de pagamento de quantitativos previamente depositados num banco. Como a letra exprime também uma ordem de pagamento de determinada quantia, dada por um sacador (o emitente) a um sacado, que tem obrigatoriamente de ser um banqueiro (artº 3º da LUC), e a favor de uma pessoa denominada tomador.
Tal como a letra e a livrança, o cheque é um título de crédito rigorosamente formal e os seus requisitos extrínsecos enunciados no artº 1º da LUC não são exigíveis unicamente com carácter probatório, mas antes como indispensáveis para que nasça a obrigação cartular nele incorporada Cfr. Miguel J. A. Pupo Correia, Direito Comercial, 5ª edição, pág. 121, e Antonino Vazquez Bonome, Tratado de Derecho Cambiário, 1997, pág. 597.. À semelhança do que sucede com os outros títulos cambiários, também no cheque o sacador é responsável pelo seu pagamento (artºs 12º, 18º e 44º da LUC), devendo a falta deste, em princípio, ser comprovada por protesto, a realizar no prazo da apresentação do mesmo a pagamento (artºs 29º e 41º da LUC).
A obrigação literal e abstracta incorporada no cheque é accionável independentemente da alegação e demonstração da causa da sua subscrição pelos sujeitos cambiários. Para tanto exige, porém, o artº 29º da LUC que o portador o apresente a pagamento no prazo de oito dias a contar da data da sua emissão e que a recusa de pagamento se verifique, dentro desse mesmo prazo, por um dos meios previstos nos artºs 41º e 42º da LUC. Sem a observância deste requisito o cheque perde a sua potencialidade cambiária, não valendo mais como título de crédito, mas apenas como mero quirógrafo de uma obrigação.
No caso, sucedeu precisamente essa situação: a portadora do cheque dado à execução não o apresentou a pagamento no indicado prazo. Está, por isso, impedida de fazer valer a obrigação cambiária ou cartular que o mesmo incorpora. Daí que, enquanto título de crédito, com o regime próprio da respectiva Lei Uniforme, a apelante não possa exigir com êxito o seu pagamento.
Pode, contudo, encarar-se o cheque como mero quirógrafo da obrigação jurídica subjacente à sua emissão, a qual não se extinguiu pelo facto de não se verificar o aludido requisito, que apenas tem reflexos na acção cartular.
Será que, nessa vertente, o documento exequendo continua ainda a poder servir de base à execução?
Tem-se entendido Cfr. Alberto dos Reis, Comentário, I Volume, págs. 77 e 78, Gama Prazeres, Do Processo de Execução, pág. 45, Jorge Barata, Acção Executiva Comum, I Volume, pág. 38 e José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2ª edição, pág. 53., embora com vozes discordantes Cfr. Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, pág. 80., que extinta a obrigação cartular constante de uma letra, cheque ou livrança podem estes documentos continuar a valer como título executivo, agora, em relação à obrigação subjacente e enquanto escritos particulares (quirógrafos), desde que se verifiquem os requisitos de exequibilidade destes. Todavia, o exercício dessa faculdade só será admissível, se o título cambiário mencionar a obrigação subjacente, ou pelo menos, o exequente a indicar no respectivo requerimento inicial da execução Cfr. José Lebre de Freitas, obra citada, pág. 54. , de modo a permitir a impugnação por parte do executado.
No caso em apreço, o cheque é omisso em relação à obrigação subjacente, e a exequente no requerimento inicial também nada alegou, a tal propósito, o que, de acordo com a apontada orientação, inviabiliza a hipótese dele continuar a servir de título executivo, depois de extinta a respectiva obrigação cartular.
Esta problemática não tem merecido, porém, a unanimidade da jurisprudência, que sobre ela se encontra profundamente dividida Cfr, a este propósito, António Santos Abrantes Geraldes, Títulos Executivos, Separata THEMIS, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, N.º 7, 2003, págs. 60/65.. Uma orientação, ancorada na ampliação dos títulos executivos resultante da nova redacção do artº 46º, alínea c) do Cód. Proc. Civil, defende que extinta a obrigação cartular incorporada no cheque, este mantém a sua natureza de título executivo, por se tratar de documento particular assinado pelo devedor, que contém em si o reconhecimento de obrigação pecuniária de montante determinado Cfr. ac. do STJ de 18/1/01, CJ/STJ, ano IX, Tomo I, pág. 71, ac. do STJ de 23/01/01, sumariado em www.stj.pt, bol 47, pág. 14, ac. do STJ de 30/1/01, sumariado em www.stj.pt, bol 47, pág. 26, ac. do STJ de 27/9/01, sumariado em www.stj.pt, bol 53, pág. 53, e ac. do STJ de 29/11/01, sumariado www.stj.pt, bol 55, pág. 49, ac. do STJ de 29/1/02, CJ/STJ, ano X, Tomo I, pág. 64, ac. da Rel de Lisboa de 18/12/97, CJ, ano XXII, Tomo V, pág. 129, e ac. da Rel. de Coimbra de 3/12/98, CJ, ano XXIII, Tomo V, pág. 33. . Argumenta-se que ao redigir este novo preceito o legislador deixou cair, de caso pensado, a expressa referência que na legislação anterior se fazia às letras, livranças, cheques e outros documentos, substituindo-os pela simples alusão a documentos particulares, com vista a uma diminuição das acções declarativas, com tudo o que isso implica de celeridade processual e de redução dos respectivos custos. Ou seja, deixou de existir qualquer diferença entre aqueles documentos, no que respeita aos requisitos formais necessários a que tenham força executiva, exigindo-se tão só, para todos eles, os nele mencionados, quais sejam: o conterem a assinatura do devedor; o importarem a constituição ou reconhecimento de obrigações; as obrigações reportarem-se ao pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, à entrega de coisas móveis ou à prestação de facto.
Outra orientação, bem mais rigorista e formal, considera que o cheque que não reúna condições para valer como título de crédito, por não ser constitutivo ou certificativo de uma obrigação, não constitui, por si só, título executivo Cfr. ac. do STJ de 4/5/99, CJ/STJ, ano VII, Tomo II, pág. 82, ac. do STJ de 29/2/00, CJ/STJ, ano VIII, Tomo I, pág. 124, ac. do STJ de 16/10/01, CJ/STJ, ano IX, Tomo III, pág. 89, ac. do STJ de 20/11/03, CJ/STJ, ano XI, Tomo III, pág. 154 , ac. da Rel. da Coimbra de 9/3/99, CJ, ano XXIV, Tomo II, pág. 19, ac. da Rel. de Coimbra de 6/2/01, CJ, ano XXVI, Tomo I, pág. 28, e ac. da Rel. de Lisboa de 11/10/01, CJ, ano XXVI, Tomo IV, pág. 120.. Argumenta-se, por um lado, que o cheque já era título executivo antes da reforma processual de 1995/96, pelo que nunca esteve na mente nem nos propósitos do legislador alterar a LUC, nem bulir no regime aí consagrado, ou sequer modificar os requisitos de exequibilidade do cheque. Acrescenta-se ainda, em abono dessa orientação, que o cheque não contém o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, mas tão só uma ordem de pagamento, o que é insuficiente para lhe atribuir força executiva nos termos do artº 46º, alínea c) do CPC.
O saneador-sentença recorrido perfilhou o entendimento de que o cheque, apesar de não valer como título cambiário, por não ter sido apresentado a pagamento dentro dos oito dias subsequentes à emissão, constitui título executivo, desde que dele conste a obrigação causal/subjacente ou então que o exequente a indique no respectivo requerimento inicial da execução Cfr. José Lebre de Freitas, obra citada, pág. 54. , de modo a permitir a impugnação por parte do executado.
Temos seguido essa orientação e, por enquanto, não vemos razões para a abandonar. Só que, no caso, nem no cheque, nem no requerimento executivo consta a indicação da obrigação subjacente. Daí que não deva, nestas condições, aceitar-se o cheque como título executivo. É que, no momento da instauração da execução, altura em que se devem verificar as condições de exequibilidade do título, a obrigação exequenda não é conhecida, dado que quer o cheque, quer o requerimento executivo são, nesse ponto, completamente omissos.
Na tentativa de superar essa deficiência e considerar que existe título executivo válido o Mm.º Juiz a quo aproveitou a alegação feita pela executada na petição de embargos em que esta aludiu a um acordo feito com a embargada para pagamento, em prestações, do montante inscrito no cheque.
Não nos parece de sufragar essa sua tentativa de salvar a execução. As condições que permitem ao credor exigir, de imediato, a prestação coactiva da prestação, sem necessidade de recorrer previamente à acção declarativa, têm de estar reunidas logo no início da execução. Não pode, por isso, a definição da obrigação exequenda ficar postergada para momento posterior, sob pena de se correr o risco de transformar a execução numa espécie de processo declarativo.
Significa isto que, ao invés do que se entendeu e decidiu no saneador-sentença recorrido, não pode a petição de embargos servir de complemento ao requerimento executivo e suprir as deficiências deste no que concerne à omissão da alegação da obrigação exequenda. A embargada terá que socorrer-se da acção declarativa ou, então, instaurar nova execução, com base no cheque ajuizado, em cujo requerimento executivo indique a obrigação subjacente àquele.
Procedem, deste modo, as conclusões da apelante, o que implica a procedência do recurso e a revogação do saneador-sentença recorrido.
V - Decisão.
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se o saneador-sentença recorrido que considerou existir título executivo e consequentemente julgam-se procedentes os embargos e determina-se a extinção da execução.
Custas pela apelada.
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Coimbra, 25 de Janeiro de 2005