Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2469/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: CUSTÓDIO COSTA
Descritores: PENHORA
PARTES INTEGRANTES
Data do Acordão: 11/02/2004
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 204.º, N.º 3 DO CÓDIGO CIVIL 146.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: O facto de os elevadores serem considerados parte integrante do prédio, tal não impede que possam, a título excepcional, ser penhorados alguns dos seus componentes, independentemente do prédio onde estão instalados, porque são coisas móveis sem as quais o prédio não deixa de satisfazer a sua função.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I
1.º - Na execução que “A...”, com sede em Leça do Balio, instaurou contra “B...”, sito na Avenida Lourenço Peixinho, n.º 16, Aveiro, para se ressarcir da quantia alegadamente em dívida no montante de 7.615,54 €, juros incluídos, relativa a conservação e reparação do ascensor do referido edifício, veio o exequente nomear à penhora, para garantia dessa quantia exequenda, “os comandos e máquinas dos elevadores do prédio do condomínio”.
Com o fundamento, porém, de que os elevadores “são partes integrantes dos prédios urbanos onde se encontram instalados” e, como tal, não podem ser penhorados de forma independente do edifício, o Sr. Juiz "a quo" indeferiu a requerida penhora.

2.º - Inconformado com esta decisão, veio o exequente dela agravar, concluindo, em síntese, que o facto de os elevadores serem, como de facto são, partes integrantes do prédio, tal não impede que possam ser penhorados independentemente do prédio onde estão instalados, porquanto são coisas móveis livremente separáveis e alienáveis.
O Juiz "a quo" manteve o despacho recorrido.
Cumpre conhecer e decidir.
II
O objecto do recurso está linearmente confinado: pode ou não penhorar-se o bem que foi indicado à penhora – comando e máquinas dos elevadores do prédio do Condomínio – nos termos em que o pretende o exequente, ou seja, independentemente do prédio onde se situam?
Não se suscita qualquer discussão quanto à classificação dos elevadores como parte integrante do prédio, face ao comando do n.º 3 do art.º 204.º do Código Civil: é parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência.
Em apoio deste entendimento, de que os elevadores são partes integrantes do prédio em que se situam, o Sr. Juiz "a quo" citou o Ac. RL de 17.3.94, in CJ Ano XIX, T II, 86.
Quanto a isso todos estamos de acordo. Porém a questão não é a de saber se os elevadores são ou não pares integrantes do prédio, mas antes a de saber se, no caso concreto, isso é impeditivo de penhora independente do prédio na sua globalidade.
Situando-nos no campo dos princípios do direito, diríamos, à partida, não ser possível a penhora quanto a uma parte integrante do prédio. Se é parte integrante, não pode separar-se dele, sob pena de desintegração do prédio. Assim, ou se penhora o prédio na sua totalidade, ou nada se penhora.
Este foi o entendimento do Juiz "a quo", e esta é a solução a que uma análise silogística dos termos legais conduz.
Porém a vida nem sempre se compraz com uma visão das coisas tão só a preto e banco. Há situações concretas que pedem uma solução que eventualmente extravase a rigidez dos princípios, sem que por isso caia o Carmo e a Trindade.
Decisivo para a resposta colocada com o presente recurso – pode ou não penhorar-se uma parte integrante do prédio, concretamente os comandos e máquinas dos elevadores? – é analisar a lógica das coisas: relação da parte com o todo, montante da quantia exequenda e sua origem, e bem ainda o objectivo e consequências da penhora, tudo lido à luz do princípio fundamental da “economia” que o filósofo Guilhermo de Ockham ( 1295-1350) magistralmente sintetizou no aforismo “Frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora”É inutilmente que se faz por muitos o que se pode fazer por poucos”., aforismo que, em tradução livre, Galileu Galilei (1564-1642) verteu para “La Natura non opera com molte cose quello che puo operare com poche”.
O escopo do exequente é, naturalmente, fazer-se pagar do seu crédito e quanto mais fácil e rápido isso for conseguido, tanto melhor, quer para ele quer para o executado.
Sabido que a nomeação à penhora de imóveis se torna morosa e dispendiosa, o que tudo se repercutirá negativamente sobre o devedor/executado, o exequente só em último caso nomeia à penhora bens imóveis. Mais morosa e dispendiosa ainda seria atacar o património dos condóminos pro quota, já que as despesas respeitantes ao condomínio são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções. No caso presente, é notório que o exequente, compreensivelmente, procura evitar as delongas de nomear à penhora o próprio imóvel em que está instalado o elevador, ou o património dos condóminos.
Mas restar-lhe-á alternativa?
É o que por ora não sabemos, porquanto os autos nada referem no que concerne à existência de bens móveis pertencentes ao Condomínio executado, que é possível que os tenha, vg mobiliário da habitação do porteiro, se eventualmente existir, depósitos bancários, fundo de reserva do condomínio, etc.
É que, inexistindo a possibilidade de penhora em bens desta natureza, e a manter-se o rigor do princípio que não permite a penhora de parte integrante do prédio, então deparamo-nos perante a realidade de que haverá que proceder-se à penhora de todo o prédio, que vale milhões, para que o credor/exequente possa ressarcir-se do seu crédito, que é apenas de tostões.
Sabendo-se que a penhora retira o bem penhorado da disponibilidade jurídica do proprietário, de imediato se haverá de questionar, ética e juridicamente, da necessidade de pôr em causa a disponibilidade do direito de propriedade dos condóminos sobre as respectivas fracções, quando o que se pretende é tão somente o pagamento de uma relativamente pequena dívida que tem origem na reparação dos elevadores, sendo certo que, se estes ficarem inoperacionais, o edifício continua a satisfazer, no essencial, a sua função.
Não obstante o carácter permanente da ligação material dos elevadores ao edifício, do que resulta a sua natureza de “parte integrante” do mesmo, não se pode ignorar a realidade material dessa “ligação”, que não é impeditiva de uma certa autonomia dos elevadores. De facto, se sofrerem avaria irreparável, se se tornarem obsoletos ou por qualquer outra razão o proprietário do edifício entender que deve substitui-los, ou até prescindir deles se não forem legalmente obrigatórios, eles serão substituídos ou prescindidos, sem que daí a casa venha abaixo.
Acresce que, no caso sub judice, tão pouco se pede a penhora dos elevadores, na sua globalidade – portas, guias, cabines, comandos, máquinas – mas tão somente os elementos mais facilmente separáveis de todo o conjunto de materiais que os constituem – os comandos e máquinas – que, no entender do exequente, serão suficientes para garantir a dívida exequenda.
O facto de os elevadores, uma vez instalados, se tornarem parte integrante do prédio, não anula a realidade material de se poder destacar um elemento deles – concretamente os comandos e máquinas – sem que o prédio deixe de satisfazer, no essencial, a sua função. Já o mesmo se não poderá dizer, vg, das telhas da cobertura do prédio que, dentro dos mesmos princípios, são também parte integrante do prédio.
É nesta linha que haverá de se ultrapassar o aparente obstáculo originado na natureza dos elevadores como “parte integrante” do prédio, no qual tropeçou o despacho recorrido.
A pragmaticidade do direito, como ciência que é ao serviço da vida em sociedade, confere-lhe a suficiente e necessária elasticidade para, sem abalar os alicerces dos seus princípios, encontrar o justo equilíbrio dos conflitos. No caso sub judice, tendo em conta a especificidade da situação, verdadeiramente excepcional, e só a título excepcional, não repugna admitir a penhora, em separado, dos comandos e máquinas dos elevadores, como vem requerido, mantendo-se intocável a natureza jurídica dos elevadores como parte integrante do prédio, solução que é a que maior equilíbrio confere ao litígio: satisfaz o credor, e é a que menos prejuízo causa ao devedor.
Defendemos que, mais importante que os princípios do direito, é o próprio homem, ao serviço de quem está o direito. O homem não existe para o direito, pelo contrário é o direito que existe para o homem. O homem criou o direito para regular com equilíbrio as suas relações sociais – note-se que estamos no âmbito do direito positivo, que não no do direito natural – e não para as complicar, pelo que sempre haverá de poder modificar ou adaptar a lei ou os princípios com a mesma liberdade com que os criou, sob pena de se tornar escravo da sua própria criação.
No caso presente, sendo suficiente o menos, seria uma violência obrigar à penhora do mais, só porque, em abstracto, o bem indicado à penhora se tornara parte integrante do prédio, com violação de um princípio do direito.
Tal solução prejudicaria o credor o devedor, e só agravaria o desequilíbrio do conflito entre as partes, precisamente o oposto do que se pretende com a criação do direito e seus princípios.
Porém, como acima referimos, desconhece-se se existirão outros bens que possam ser indicados à penhora, afigurando-se pertinente indagar junto do exequente dessa eventualidade.


Decisão
Pelo exposto, acorda-se em revogar o despacho recorrido, para ser substituído por outro que ordene a diligência sugerida, decidindo-se de seguida em conformidade com o que dito fica.
Sem custas – art.º 2.º, n.º 1, o) do Cod. Custas Judiciais.