Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1532/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PEDOFILIA
Data do Acordão: 07/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ILHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 172º, Nº. 3, AL. B), DO CÓDIGO PENAL
Sumário:
1. O artigo 172º, nº. 3, al. b), do Código Penal configura um crime de perigo abstracto.

2. É de qualificar como obscena uma conversa em que o arguido apela à masturbação e formula um convite a um menor de 14 anos para praticar actos de exibição de órgãos sexuais e excitação genésica.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:
I-
1- No processo comum com o n.º 713/04 do 1º Juízo da comarca de Ílhavo, o arguido A... foi absolvido da prática de dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 172º do Código Penal.
2- Recorre o Ministério Público concluindo –
1) A decisão recorrida sofre do vício previsto no art.º 410/2 alínea b) do Código de Processo Penal, havendo nela contradição insanável ;
2) Com efeito, deu-se como provado que “o arguido iniciou conversa com os menores designadamente o B... perguntando- lhe que idade tinha. No decorrer da conversa o arguido perguntou-lhe se “já tocava ao bicho” querendo com isto dizer se ele já se masturbava e se queria ir com ele para trás das dunas para aprender o que era “tesão”, ao que este respondeu negativamente, virando-lhe as costas. O arguido agiu com o propósito de manter conversação de cariz sexual com os menores sendo seu intuito satisfazer impulsos libidinosos, apesar de saber que o B... e o C... eram menores de 14 anos de idade. Agiu livre, deliberada e conscientemente.
3) Por sua vez, a decisão foi no sentido de absolver o arguido do crime.
4) Há uma contradição traduzida na afirmação dum facto provado criminoso e na subsequente absolvição do arguido.
5) Com a reforma penal de 1995 o bem jurídico protegido [ a liberdade e a autodeterminação sexuais ] afastou-se do conceito de bons costumes e de moralidade sexual, negando-se papel eticizante ao direito penal.
6) O bem jurídico tutelado pela norma é a autodeterminação sexual do menor de 14 anos; não qualquer moralidade pública.
7) Mas nos casos das práticas sexuais com menores afasta-se qualquer ideia de “adequação” das acções, sendo a protecção absoluta.
8) A danosidade social justificadora da criminalização destas condutas não radica na ofensa dos valores ético/sociais, mas na violação do direito fundamental de liberdade individual na sua dimensão sexual, pressuposto da dignidade da pessoa humana.
9) Em consideração da pouca idade da vítima, protege-se a mesma de certas condutas de natureza sexual, que podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade.
A lei presume que a prática de actos sexuais com menor ou em menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do menor.
10) Foi essa a decisão normativo/axiológica do legislador português, pelo que o intérprete e aplicador não pode desobedecer-lhe.
11) A interpretação feita na sentença do art.º 172º do CP não é admissível por ter o tipo legal como crime de dano ou de perigo concreto.
12) Ao invés, trata-se de um crime de perigo abstracto.
13) O perigo é não só em nenhum caso, susceptível de ser exactamente avaliado.
14) Pelo que se discorda da posição afirmada na sentença que “ A questão a decidir é a de saber se tal conversa objectivamente era passível de atentar contra o livre desenvolvimento sexual dos menores mesmo que, como manifestamente foi o caso, em concreto de tal não tenha sido susceptível”;
15) Esquecendo que o tipo legal do artigo 172º do CP foi concebido para tutelar o bem jurídico de um perigo abstracto.
16) O perigo abstracto é um perigo presumido pelo legislador, ficando ao juiz vedada qualquer averiguação sobre a falta de perigosidade do facto. O tipo está redigido de forma a inviabilizar a apreciação negativa do perigo, se ele se funda numa presunção inilidível de perigo, o seu desvalor da acção assenta e basta-se com a mera desobediência.
17) O M.0 Juiz não tinha que aferir se o meio era idóneo a violar o bem jurídico.
18) Deu-se como provado que o arguido actuou sobre menor de 14 anos por meio de conversa obscena. Todavia, não se retira a consequência lógica que é a condenação do arguido.
19) Precisamente porque a incriminação se funda no na perigosidade geral da acção.
20) Crimes de perigo abstracto serão aqueles em que o perigo não constitui elemento típico, de forma que o juiz não tem que investigar se na situação concreta se verificou um perigo ou um dano para o bem jurídico.
21) Pura e simplesmente, a conversa obscena encetada pelo arguido com os menores, nomeadamente o convite para irem com ele para trás das dunas, “para aprender o que era tesão” nunca devia ter ocorrido .
22) A sentença viola o disposto no art.º 172º/2 alínea b) do Código Penal.
3- Respondeu o arguido pelo infundado do recurso, no que obteve a concordância do Ex.mo Procurador - Geral Adjunto .
4- Colheram-se os vistos e realizou-se a audiência.
Cumpre apreciar e decidir!
II-
1- Decisão da matéria de facto –
A) Factos provados
1) No dia 28/07/2004 a hora não concretamente apurada mas já depois do almoço, na Praia da Barra, mais concretamente na Praia Velha, nesta comarca o menor B..., na altura com 13 anos de idade e o seu amigo, também menor, D..., encontravam-se a jogar à bola junto a um passadiço de madeira ali existente.
2) A certa altura o arguido que se encontrava no passadiço existente junto do molho sul, na Praia da Barra, chamou os dois menores para que estes fossem junto dele o que aqueles acederam, convencidos de que o mesmo pretendia alguma informação.
3) O arguido iniciou então conversa com os menores designadamente o B... perguntando-lhe se era dali e que idade tinha.
4) No decorrer da conversa o arguido perguntou-lhe se já “tocava ao bicho” querendo com isto dizer se ele já se masturbava e se queria ir com ele para trás das dunas para aprender o que era “tesão” -, ao que este respondeu negativamente, virando as costas ao arguido.
5) Os dois menores correram então para junto dos avós que se encontravam no areal e aí chegaram a sorrir.
6) No mesmo dia, momentos depois o arguido começou a meter conversa com o menor C... de 12 anos que passava pelo referido passadiço de madeira.
7) No decorrer da conversa cujo conteúdo não foi possível apurar o menor percebeu que entre as palavras que foram ditas o arguido referiu a palavra “piça”, cujo significado não percebeu.
8) Entretanto a avó do B... alertada pelo neto e pelo D... da situação descrita ao aperceber-se que o arguido se encontrava a abordar o referido C... parecendo não o deixar seguir o seu caminho, pediu-lhes para ir buscar o menor C... o que estes fizeram, levando-o para junto da mãe dele.
9) O arguido agiu com o propósito de manter conversação de cariz sexual com o menores sendo seu intuito satisfazer impulsos libidinosos, apesar de saber que o B... e C... eram menores de 14 anos de idade.
10) Agiu livre, deliberada e conscientemente.
11) É reformado recebendo cerca de 350€ de reforma.
12) Tem 80 anos de idade, vive com a esposa que é doméstica e está doente.
13) Não tem antecedentes criminais.
B) Factos não provados
- Não se provou que a abordagem do menor C... tivesse ocorrido às 14h20m e que no decorrer da conversa com este menor o arguido lhe tivesse dito “mostra lá a pichota” e se queria ir com ele para as dunas da praia; que com a conversa tida com os menores o arguido atentasse contra o livre desenvolvimento da personalidade e sexualidade destes; que o menor C... atenta a sua idade tivesse perfeita consciência das palavras que lhe foram dirigidas e que o arguido pretendesse que aquele o acompanhasse para as dunas da praia com intuito de satisfazer os seus impulsos libidinosos; que o menor C... tivesse consciência do alarme social que o abuso sexual de crianças tem provocado através das noticias diariamente veiculadas pelos media; que tal consciência lhe tenha provocado um medo enorme acrescido em face da insistência com que o demandado o tentava “arrastar” para as dunas da praia e que desde então o menor tenha receio de ser abordado por um homem desconhecido o que lhe provoca forte angústia.
2- O recorrente invoca a presença [na sentença] do vício enunciado na alínea b) do n.º2 do art.º 410º do Código de Processo Penal [ contradição entre a fundamentação e a decisão ] e erro [de direito] no enquadramento jurídico dos factos provados .

3- Apreciação –
3.1- Pretende ver o recorrente o indicado vício de contradição [previsto na alínea b) do n.º2 do art.º 410º do CPP] entre o que foi decidido em sede factual e o que foi decidido em sede de direito.
Contudo, o referido vício há-de ser encontrado internamente na decisão da matéria de facto.
Os vícios enunciados no n.º2 do art.º 410º do Código de Processo Penal são vícios reportados à decisão de facto -, v.g., contradição entre os factos provados, contradição entre os factos não provados, contradição entre factos provados e factos não provados, ou contradição entre uns ou outros e a fundamentação [da decisão de facto].
Eventual dissonância entre a decisão de facto e a decisão de direito configura erro de direito.
3.2.1- O arguido vinha acusado da prática do tipo de abuso sexual de crianças, na previsão da alínea b) do n.º3 do art.º 172º do Código Penal.
Além do mais, refere o invocado segmento legal que comete o crime de abuso sexual de crianças quem « Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa obscena (...)».
“Actuar sobre menor” refere Figueiredo Dias que significa satisfazer com ele ou através dele, por meio de processos de características sexuais, impulsos ou interesses de relevo (...). A utilização da palavra «sobre» prescinde de contactos corporais entre o agente e a vítima. Basta que o menor seja o destinatário e receptor da conversa obscena ( Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal , 1º, 547.).
O tipo exige que a conversa seja obscena. Refere o mesmo autor( Ob. cit., pág. 544) que «conversa obscena» é aquela que tenha uma natureza e uma intensidade pesada e baixamente sexuais, de tal modo que ela se revele instrumento idóneo para prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual.
A nosso ver, a única dificuldade séria que o caso poderá oferecer é a de se saber se a conversa do arguido com os menores foi ou não obscena. Ultrapassada que seja esta dificuldade, o caso parece-nos de fácil resolução, já que se trata dum crime de perigo abstracto.
A sentença afirma que se tratou “duma conversa de cariz sexual e teor obsceno” . E assim também nós a reputamos quanto ao menor B....
Quanto ao C... não pode falar-se de conversa obscena, já que apenas se sabe que o arguido nela usou a expressão «piça», o que só nos permite sobre ela formular um juízo de grosseria ou de boçalidade.
Mas o mesmo já não pode dizer-se da conhecida conversa que teve com o menor B.... Para o demonstrar socorrer-nos-emos do conceito de «acto sexual de relevo».
Refere Maia Gonçalves( Código Penal Português, 16ª ed., pág. 572) que acto sexual é aquele que tem uma relação objectiva com o sexo e em que há por parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais. E será um acto sexual de relevo quando revista certa gravidade. No grupo destes actos o autor inclui, entre outros, o coito oral e a masturbação.
No caso, a acção do arguido sobre o menor constituiu não só num apelo à ideia de masturbação, mas também num convite a participar, às escondidas de terceiros, em actos de exibição de órgãos sexuais e de excitação genésica, incluindo a masturbação, sem excluir a possibilidade da ocorrência de outros actos sexuais de maior relevo e gravidade.
Não nos parece, pois, que a exibição em lugar público dos órgãos sexuais e a sua excitação não constitua uma obscenidade. E sendo-o, obscena é a conversa que constitua uma proposta da sua concretização.
Como já se disse, o tipo é de crime de perigo abstracto, o que significa que a lei antecipou a tutela penal para situações de simples perigo no livre desenvolvimento, quer no aspecto fisiológico quer no psíquico, dos menores na esfera sexual. Perigo que a lei tem por presumido nas conversas obscenas com os menores de 14 anos .
E é aqui que nos parece ter claudicado, sem deixar de ser brilhante, o raciocínio expresso na sentença.
É que tratando-se dum crime de perigo abstracto, e concluindo-se que a conversa foi obscena, o tipo prescinde do efeito da conversa sobre o menor agente passivo da mesma, presumindo inilidivelmente a presença desse perigo. Não pode, pois, o julgador pôr em crise a presunção legal de perigo, desobedecendo-lhe com base em considerandos sobre as condições sociais hodiernas. Como refere o Prof. Figueiredo Dias, tal não lho permite a opção normativa do legislador( ob., cit., pág. 542).
Sendo obscena a conversa do arguido; agindo este livre e conscientemente [ com o intuito de satisfazer impulsos libidinosos]; e sabendo que o fazia sobre menores de 14 anos -, encontram-se presentes os elementos do tipo.
Assim, não é por “se viver numa sociedade e num tempo em que se valoriza o sexo, o prazer pelo prazer, oferecendo-se desde muito cedo a crianças informações de índole sexual impróprias à sua idade, por se permitir que crianças tenham fácil contacto com pornografia existente em quiosques, por na televisão se evidenciarem comportamentos desviantes de carácter sexual apresentados como correctos, nem se ignorar a existência de conversas deste jaez entre os jovens, mesmo nas escolas”, que pode ter-se por justificado o comportamento do arguido. Não é por a sociedade se revelar permissiva a desvios que prejudiquem a liberdade de auto/conformação sexual do menor de 14 anos de idade que o tipo legal de crime fica afastado.
Nem sequer está em causa a atitude do B... quer no momento do facto quer no seu comportamento diário.
Nem o pouco que a sociedade haja feito para garantir o normal crescimento das suas crianças, justifica um «fechar de olhos» à actuação do arguido , consabido que se trata de crime de perigo abstracto .
O afirmado “ oceano de investidas sociais” que diariamente atenta contra o saudável desenvolvimento da personalidade e maturidade sexual dos menores de 14 anos não pode justificar o acto do arguido .
O raciocínio desenvolvido na sentença ditaria também que no caso de condução em estado de embriaguez ( cfr. art.º 292º do CP) o tribunal absolvesse o condutor embriagado que lhe demonstrasse ter, embora ébrio, mantido uma condução de mestria e serem diariamente aos milhares os condutores embriagados nas estradas portuguesas.
Nem se trata de mera questão de moralidade pois é o próprio tribunal a considerar a conversa como obscena. Ora, antes do mais, “conversa obscena” é um conceito legal.
3.2.2- Chegados que somos à conclusão da prática do crime , há que proceder à determinação concreta da respectiva pena.
Temos para nós que era nesta sede que as considerações tecidas na sentença para «branquear» a conduta do arguido teriam o adequado cabimento.
Com a aplicação da pena a lei visa a protecção dos bens jurídicos violados e a reintegração do agente na sociedade.
A determinação da pena é feita dentro dos limites definidos na lei em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
A sua determinação concreta é feita dentro dos limites definidos na lei ( 1 mês a 3 anos de prisão) , em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O dolo do arguido foi o directo e reprovável o motivo que o determinou já que provado ficou o seu propósito de satisfação dos seus impulsos libidinosos.
Contudo, é diminuto o grau de ilicitude do facto face aos termos da conversa tida com o menor [ o B...] e à inexistência de consequências mais ou menos gravosas para este.
Por seu lado, o arguido não tem antecedentes criminais e já à data dos factos tinha 79 anos de idade [ nascera a 21/7/1925] . Vive com a mulher, doente e doméstica, duma pensão de reforma de €350. Daqui também se possa presumir que seja pessoa de modesta ou até humilde condição social.
Temos, assim, por certo que uma leve censura o fará ponderar futuros comportamentos similares, acabando por evitá-los.
Fixa-se, assim, a pena em 80 dias de prisão, convertida em igual tempo de multa, à taxa diária de €2,5.
3.2.3- Os pais do menor C... deduziram, em seu nome, um pedido de indemnização por danos morais, no valor de €500.
Contudo, o sujeito passivo da conduta criminosa foi o menor B... e não o seu filho, pelo que também não se provaram os restantes factos que alegaram na petição do pedido indemnizatório.
Ora, não se provando os factos que sustentavam o pedido, este terá de ser improcedente.
III-
Decisão
Termos em que se condena o arguido, pela prática dum crime de abuso sexual na pessoa do menor B..., na previsão do art.º 172º/3 alínea b) do Código Penal, em 80 ( oitenta) dias de prisão convertidos em igual tempo de multa, à taxa diária de €2,5 ( dois euros e cinquenta cêntimos).
No mais confirma-se o decidido .
O arguido pagará as custas devidas na 1ª e na 2ª instância, que globalmente se fixam em 6 UCs .

Coimbra,