Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
120/06.8JAGRD
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: DOCUMENTAÇÃO DA AUDIÊNCIA
FALHAS DE GRAVAÇÃO
PRAZO DE ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 07/01/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 145º,5 DO CPC, 107º, 5 E 123º DO CPP
Sumário: 1. O recorrente não tem a obrigação de tomar conhecimento da falha da gravação logo que recebe as cassetes
2. Convicto que a gravação não tinha falhas, bem poderia ele decidir-se por ouvi-la no tempo estritamente necessário à entrega atempada da motivação do recurso, ou seja, nos últimos dias para a apresentação do recurso sem que nisto possa apontar-se-lhe qualquer falta de zelo ou violação do dever de diligência.
3. Daí que não se lhe possa exigir o pagamento da multa a que se refere o art.º 145º/5 do Código do Processo Civil, quando, tendo sido entregues cassetes no dia 2/1/2008 (em férias judiciais), o mesmo reagiu invocando uma irregularidade no dia 8/1/2008,
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra
I – Relatório
1- O arguido A... foi condenado neste processo na pena única de 5 anos de prisão por prática de crimes de incêndio, pena que lhe foi suspensa na sua execução por igual período de tempo.
O acórdão condenatório é de 6/12/2007 (cfr. fls. 552 e ss).
A 17/12/2007 o arguido, numa manifestação do seu propósito em recorrer da decisão de facto, solicitou a entrega de cópia das gravações da prova produzida oralmente em audiência (cfr. fls. 575).
Esta entrega foi feita a 2/1/2008 (cfr. fls. 576).
A 8/1/2008 o arguido deu conhecimento ao tribunal da falta na gravação das cassetes 1 e 2 e do lado B da cassete n.º3. E, alegando a impossibilidade de apresentar a respectiva motivação do recurso face à detectada falha, invocou a nulidade prevista no art.º 363º do Código de Processo Penal.
A 15/1/2008 a secretaria judicial confirmou no processo a referida falha nas gravações (cfr. fls. 583).
Em reunião do colectivo, documentada na acta de fls. 597, o tribunal considerou a omissão das gravações como mera irregularidade e decidiu que “ (…) Tendo as cópias das cassetes sido entregues ao arguido no dia 2/1/2008 (em férias judiciais), tendo o mesmo invocado a irregularidade no dia 8/1/2008, ou seja, no primeiro dia útil subsequente ao termo do prazo para arguição da irregularidade (que é de 3 dias), não tendo liquidado e pago a multa devida, conclui-se que a secretaria deve proceder à liquidação da multa devida (com referência ao valor da taxa de justiça devida para interposição do recurso), sob pena do arguido perder o direito a praticar o acto (requerer a inquirição das testemunhas cujos depoimentos não ficaram registados) – cfr. art.º 145º/6 do Código do Processo Civil”.
A liquidação foi efectuada como consta de fls. 600.
Contudo, o arguido reclamou pedindo a aclaração do despacho (cfr. fls. 602/605) pois que o art.º 363º do CPP refere expressamente que a falta da documentação das declarações orais configura uma nulidade processual; deixando antever que na sua óptica a invocara em tempo e consequentemente não estaria sujeito a multa, sendo errada a ordem da sua liquidação.
Este pedido de aclaração provocou a prolação de novo despacho obtido em reunião do colectivo documentada a fls. 614. Por este novo despacho o colectivo dos juízes afirmou que “ (…) tal despacho é perfeitamente compreensível e a sua alteração, nos termos requeridos, determinaria a sua alteração substancial.
Mais se adiante que, como resulta da acta da audiência, a documentação das declarações prestadas em audiência foi devidamente determinada, sendo que mais resulta dessa mesma acta as «voltas» a que cada testemunha prestou o seu depoimento, pelo que nenhuma nulidade se pode concluir ter ocorrido.
Problema completamente diferente é a existência de problemas técnicos, a que o tribunal colectivo é alheio, que implicam a infeliz circunstância de a aparelhagem não ter registado os diversos depoimentos.
Nestes termos, indefere-se o requerido, mantendo-se o decidido a fls. 597/598.
2- É deste despacho que vem interposto o presente recurso no qual o arguido conclui –
a) O colectivo não conheceu da invocada nulidade decorrente da deficiente gravação, com fundamento em que a sua invocação não fora atempada;
b) Nulidade expressamente cominada no art.º 363º do CPP;
c) Julgaram mal os juízes ao ter a falta da gravação como mera irregularidade sujeita ao regime de arguição do art.º 123º do Código de Processo Penal;
d) Antes tratando-se duma nulidade invocável nos termos do art.º 120º do Código de Processo Penal;
e) O direito a ver reapreciada a prova em recurso é um direito previsto no art.º 431º do Código de Processo Penal e constitucionalmente consagrado no art.º 32º da Constituição da República Portuguesa;
f) Tendo a falta de gravação sido atempadamente invocada.
3- Respondeu-lhe o magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido no sentido do seu improvimento. Mas em sentido oposto manifesta-se o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer de fls. 636/637.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II – Apreciação –
A questão que directamente se suscita no recurso não é a da anulação parcial do julgamento face à falha de gravação de parte dos depoimentos que impedem o arguido de recorrer da decisão de facto; antes a de se saber se o arguido alegou ou não fora do prazo normal a apontada falha nas gravações.
1.1- O arguido cometeu o lapso processual de não ter interposto desde logo recurso do despacho de fls. 7/598, na observância da máxima de ouro – «das nulidades reclama-se; dos despachos recorre-se». Errou ao apresentar uma reclamação em vez dum recurso. Mas o tribunal ao voltar a afirmar no despacho ora recorrido o que dissera no anterior “actualizou” a sua decisão tornando-a recorrível.
1.2- O arguido qualifica de nulidade processual a constatada falha na gravação dalguns depoimentos estribando-se no art.º363º do Código de Processo Penal São deste diploma todos os preceitos cuja origem se não indique.. Mas o colectivo dos juízes qualifica-a de mera irregularidade para daqui retirar as suas ilações quanto à sua tardia invocação.
O art.º 363º [na actual redacção aqui aplicável] estatui que «As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade».
Deste preceito o colectivo dos juízes faz uma interpretação subtil deixando a entender que se a falha for de imputar directamente ao juiz tratar-se-á duma nulidade processual; mas se for de imputar ao funcionário que manobrou a aparelhagem ou a deficiência técnica desta, então tratar-se-á de mera regularidade. E daqui parte para a ter por tardia a sua invocação. Mas é óbvio que tal subtil diferenciação não resulta da letra do preceito nem da exposição de motivos que precedeu a última alteração legislativa ao Código de Processo Penal.
Mas nem vale a pena aqui tomar partido sobre tal interpretação já que a questão colocada –, saber se o arguido deve pagar multa por alegação tardia –, se resolve a contento do arguido mesmo sem tomar partido sobre a qualificação da detectada falha na gravação [como nulidade ou como irregularidade] mesmo dando-se “de barato” a qualificação feita pelo tribunal. Vejamos –
1.3- Para se decidir pela necessidade do pagamento da multa [a que se reporta o n.º5 do art.º 145º do CPC para que remete o art.º 107/5 do CPP], o tribunal partiu da premissa de que se trata duma irregularidade processual; e desta outra de que o arguido deveria dela conhecer logo que lhe foram entregues as cassetes com a gravação.
Com estas premissas e a redacção do art.º 123º do CPP sobre o prazo de arguição das irregularidades, o colectivo chega à conclusão que a mesma foi invocada fora do prazo normal. Ou seja, tendo-lhe sido as cassetes entregues a 2/1/2003 e como tinha três dias para invocar a irregularidade, deveria invocar a falha na gravação até 7/1/2008 [5 e 6 foram, respectivamente, sábado e domingo]. Como a invocou a 8/1/2008 teria de pagar a multa a que se reportam o art.º 145º/5 do Código do Processo Civil para não ver definitivamente sanada tal irregularidade. Esta a posição do tribunal recorrido.
O art.º 123º estatui que «Qualquer irregularidade só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto, ou se a este não tiver assistido nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em alguma acto nele praticado».
Como nenhum dos que estiveram presentes na audiência em que se fez a gravação se apercebera da falha, o tribunal remeteu para os três dias seguintes à entrega das cassetes o prazo para a arguição da dita falha.
O preceito tem o seu correspondente no direito processual civil no art.º 205º do CPC segundo o qual “o prazo para a arguição se conta a partir do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”. Esta ressalva tem-na o Tribunal Constitucional por aplicável ao processo penal, sob pena de inconstitucionalidade do art.º 123º Ac do TC de 24/3/2004 .
Ora o arguido ao dar conhecimento ao tribunal da falha verificada não é claro quanto ao dia em que dela tomou conhecimento. Assim, em benefício da dúvida, ter-se-á de partir do pressuposto que dela tomou conhecimento no dia em que a comunicou.
Afirmar que o arguido tinha a obrigação de tomar conhecimento da falha da gravação logo que recebera as cassetes, é um juízo que não tem apoio em qualquer preceito legal.
O arguido tinha o prazo de 30 dias para interpor o recurso da decisão de facto, prazo cuja contagem se iniciou a 6/12/2008 com o depósito do acórdão na secretaria judicial e se suspendeu entre 17/12/2008 e 2/1/2008 [data do pedido da entrega das cópias da gravação e a data da entrega]. Ou seja, o prazo normal do recurso ia até 21/1/2008.
Ora estando o mandatário do arguido na sua boa fé, ou seja, convicto como todos que a gravação não tinha falhas, bem poderia ele decidir-se por ouvi-la no tempo estritamente necessário à entrega atempada da motivação do recurso, ou seja, nos últimos dias para a apresentação do recurso sem que nisto possa apontar-se-lhe qualquer falta de zelo ou violação do dever de diligência.
Daí que somos em concluir que a apontada falha foi atempadamente invocada sem que possa exigir-se ao alegante o pagamento da multa a que se refere o art.º 145º/5 do Código do Processo Civil.
O raciocínio exposto não implica da nossa parte qualquer compromisso com a qualificação como “irregularidade processual” da detectada falha na gravação. Apenas raciocinámos na base deste pressuposto para demonstrar que mesmo assim é despropositada a exigência do pagamento da multa.
III – Decisão –
Termos em que se tem por inexigível o pagamento da multa prevista no art.º 145º/5 do Código do Processo Civil a que se refere o despacho de fls. 597/598 e se revoga o despacho recorrido na parte em que renova tal exigência.
Coimbra,