Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5975/04.8TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: CONTRATO DE CHEQUE BANCÁRIO
DIREITOS E DEVERES DOS CONTRATANTES
Data do Acordão: 12/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS. 1º, 2º E 3º DA LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES
Sumário: I – Um cheque configura uma ordem dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado) para que pague, ao primeiro ou a terceira pessoa, determinada quantia nele inscrita e por conta dos fundos disponíveis no banco sacado.

II – Como ressalta da leitura do artº 3º da LU sobre Cheques, na base da emissão de um cheque estão fundamentalmente duas relações jurídicas distintas: uma relação de provisão e um contrato ou convenção de cheque.

III – Sendo o contrato de cheque um contrato bilateral/sinalagmático, dele emergem direitos e deveres recíprocos para as partes que o celebrem.

IV – No que concerne ao cliente/sacador pode dizer-se que o principal direito que adquire com a celebração de tal contrato se traduz na possibilidade que passou a ter de emitir cheques sobre os fundos de que dispõe depositados no banco, tendo o banco ficado vinculado a pagá-los.

V – No que concerne aos deveres, o cliente/sacador está obrigado, para além de ter fundos disponíveis e suficientes para pagar os cheques emitidos, a verificar regularmente o estado da sua conta, a zelar pela boa guarda, ordem e conservação da sua caderneta de cheques e bem assim a avisar imediatamente o banco no caso do seu extravio ou perda.

VI – Quanto ao banco, no que respeita aos seus deveres laterais ou colaterais emergente deste tipo de contrato, há que salientar, entre muitos outros, o dever de fiscalização e de conferência da assinatura; o dever de rescindir o contrato de cheque em caso de utilização indevida destes; o dever de observar a revogação do cheque; o dever de esclarecer um terceiro que reclame informações sobre essa revogação; o dever de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados; o dever de, em regra, não pagar o cheque para levar em conta; o dever de informar o cliente sobre o destino e tratamento do cheque.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. Os autores, A... e sua mulher B..., intentaram contra o réu, C..., a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário, pedindo a condenação do último a pagar-lhes:
a) O valor do cheque de 35.000,00 €, acrescido de juros desde a data do seu pagamento indevido;
b) As despesas de distrate e inerentes a este, no valor de 9.505,55 €, acrescido de juros desde a data em que foram efectuadas;
c) As despesas com a nova escritura, certidão das finanças, de registo de nova hipoteca e nova licença de construção, no valor de 469,45 €, acrescido de juros desde a data em que foram efectuadas;
d) A quantia de 20.000,00 €, a título de danos morais, desde a data da citação, acrescida de juros até integral e efectivo pagamento.
Para o efeito e, em síntese, alegara, o seguinte:
Serem contitulares de uma conta bancária à ordem no Banco/réu, com o qual, aliás, celebraram contrato de mútuo com hipoteca, mediante o qual lhes foi concedido o capital total de 125.000,00 € para construção de um imóvel.
O montante desse empréstimo seria, todavia, disponibilizado por tranches que seriam creditadas naquela sua conta, tendo-lhe sido, até à altura abaixo indicada, creditadas 3 tranches, uma no valor de 25.000,00 €, outra no valor de 15.000,00 € e a última no valor de 35.000,00 €, esta no dia 26.06.2003.
Os AA exercem a actividade comercial de restauração.
No dia 26/7/2003, a sua filha Joana dirigiu-se a um talho onde, normalmente, se abastecem, levando consigo um cheque para pagamento de compras que aí haviam efectuado. No entanto, nesse dia, por diversas circunstâncias, sua filha acabou por não efectuar o referido pagamento, tendo ficado com o cheque em seu poder, o qual veio, entretanto, a desaparecer.
Dias depois o autor deslocou-se à agência do Banco/réu, onde tinha aquela sua conta, com o objectivo de solicitar um extracto da mesma, vindo a ser então aí surpreendido ao verificar que a referida conta se encontrava sem provisão, em consequência de lhe ter sido descontado o sobredito cheque, titulando a importância de € 35.000,00.
Cheque esse que fora depositado na conta de um outro cliente do réu, na mesma agência bancária, e que era totalmente desconhecido dos AA.
O referido cheque, quando desapareceu da posse daquela sua filha, tinha apenas nele aposto a assinatura da A./mulher, sendo que quando foi depositado na dita conta o mesmo encontrava-se totalmente preenchido à revelia dos AA., e em condições que fariam desconfiar da legitimidade de quem o apresentou a desconto.
Porém, apesar de tal, e não obstante o referido cheque titular uma importância superior ao saldo disponível (€ 30.062,42) que os AA. tinham na referida conta, o réu procedeu ao seu pagamento, sem que, todavia, previamente os tivesse alertado de tal.
O pagamento do aludido cheque, em tais condições, foi indevido e abusivo por parte do réu, e só foi possível devido à falta de cuidado e de zelo do mesmo.
Situação essa que acarretou aos AA. danos de natureza patrimonial e não patrimonial - cuja ressarcibilidade reclamam do R. nos termos que acima se deixaram exarados -, pelos quais o R. deve ser exclusivamente responsabilizado devido à sua aludida conduta culposa.

2. O réu contestou, contraditando, no essencial, a versão dos factos aduzida pelos AA, negando qualquer responsabilidade culposa no pagamento do aludido cheque, o qual imputa inteiramente à conduta imprevidente dos últimos.
Pelo que terminou pedindo a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.

3. No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da instância, após o que se procedeu à condensação da matéria de facto, que se fixou após ter sido objecto de censura das partes.

4. Procedeu-se à realização do julgamento – com a gravação da audiência.

5. Seguiu-se a prolação da sentença, que, a final, julgou a acção improcedente, absolvendo o réu do pedido.

6. Não se tendo conformado com tal sentença, os AA. dela interpuseram recurso, o qual foi recebido como apelação.

7. Os AA concluíram as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
“1. As testemunhas NUNO DIAS, FERNANDO SEBASTIAO e RAMIRO SOUSA, as quais mereceram toda a credibilidade por parte do Tribunal a quo, relataram factos que não constam da matéria dada como provada, nem foram devidamente valorados.

2. Não obstante desconhecerem os AA., e mesmo sabendo a finalidade do crédito e as suas condições para a disponibilização do mesmo, os decisores mandaram pagar o cheque em causa com base numa alegada «relação de confiança».

3. Ao menosprezar as particularidades do dito cheque, a insuficiência de provisão, o facto de Bresson Louis nada ter a ver com construção civil e, ainda, do crédito dos AA. se destinar unicamente à construção da habitação dos mesmos, o Banco apelado não se muniu dos especiais cuidados que a situação impunha, assumindo por sua conta o risco do seu pagamento.

4. De igual modo, o Banco também não comunicou aos AA. tal operação, limitando-se apenas a verificar a conformidade da assinatura do sacador.

5. A autorização de pagamento do cheque foi dada por RUI REIS e RAMIRO SOUSA, nenhum deles gestor de conta dos AA., sendo o segundo o gestor de Bresson Louis, cliente de risco, sem movimento bancário de expressão e em mora, que se encontra em parte incerta.

6. Bresson Louis não era credor dos AA., nem legítimo titular do cheque, inexistindo qualquer relação pessoal ou comercial entre ambos que justificasse o pagamento ao primeiro da quantia nele aposta.

7. Os AA. só tomaram conhecimento do extravio/furto do cheque a 03.08/2003, altura em que já nada poderiam fazer, em virtude do mesmo ter sido pago pelo Banco a 30.07.2003, à revelia dos primeiros.

8. O cheque desapareceu em circunstâncias não concretamente apuradas, pelo que, inexistem factos que permitam concluir por um eventual comportamento culposo dos AA.

9. Cabia ao Banco provar que o pagamento do cheque foi devido a culpa exclusiva dos AA., o que não logrou fazer, não lhe bastando a prova da verificação da conformidade da assinatura no mesmo para que se possa concluir pela inexistência de culpa sua, e impondo-se um especial dever de cuidado sobretudo a quem autorizou o pagamento.

10. Nos termos da alínea d) do n.° 1 do art.° 15.° do Código de Conduta elaborado pela Associação Portuguesa de Bancos impunha-se ao Banco apelado informar os AA., quer da execução, quer do resultado da operação que iria efectuar, bem como informar da ocorrência de dificuldades especiais ou da inviabilidade dessa execução ou de quaisquer factos ou circunstâncias do seu conhecimento susceptíveis de justificar a revogação da ordem correspondente.

11. Só através da prova de que não teve culpa no seu procedimento, e de que o pagamento foi devido a comportamento exclusivamente culposo dos AA., é que o Banco poderia afastar a presunção consignada no n.° 1 do art.° 799.° do C.C. que sobre ele impende, o que não fez.

12. Não valorando convenientemente a prova da culpa, que atribui aos apelantes em vez de a atribuir ao apelado, a douta sentença recorrida violou o art.° 487.°/2 do C.C., aplicável ao caso ex vi do art.° 799.°/2 do mesmo código.

13. Desprezando a presunção de culpa do apelado, advinda do art.° 799.°/1 do C.C., a douta sentença recorrida também violou esta disposição legal.

14. Face ao circunstancialismo referido nas conclusões 3, 4, 5 e 6, o Banco não usou da devida diligência, a qual deve ser aferida, não à de um qualquer observador de médio interesse e de média diligência, mas sim à de um examinador atento e previdente pelo maior grau de atenção e de prudência que a profissionalidade do serviço permite esperar.

15. Pelo que, com o seu comportamento, o Banco violou os deveres legais e contratuais que lhe incumbia observar, só ele devendo responder pelos danos causados.

16. À data da apresentação do cheque, os AA. não dispunham de crédito líquido e exigível que suportasse o seu pagamento, pelo que, ao fazê-lo o Banco violou o art.° 3.° da Lei Uniforme do Cheque.

17. A alegada «relação de confiança” entre o Banco e os AA., não se encontra consagrada na Lei Uniforme Relativa ao Cheque.

18. Tal relação insere-se nos usos instaurados na banca, os quais não constituem fonte de Direito, não podendo derrogar ou modificar a Lei, pelo que, a decisão em pagar o cheque não deve ser superior à mesma.

19. Em suma, a decisão recorrida violou os artigos 487.° e 799.° do C.C., o art.° 3.° da Lei Uniforme Relativa ao Cheque e a alínea d) do n.° 1 do art.° 15.° do Código de Conduta elaborado pela Associação Portuguesa de Bancos.


8. O R. contra-alegou, pugnando, desde logo, pela rejeição do recurso, na parte referente à impugnação da decisão da matéria de facto – por não ter sido observado o ritualismo legal previsto no artº 690-A do CPC -, e, a final, pela improcedência total do recurso.

9. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.

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II- Fundamentação
1. De facto
Pelo tribunal da 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (e segundo a ordem de descrição ali feita):
A) Os AA são clientes do Banco Réu e, nessa qualidade, são contitulares da conta bancária à ordem nº 3947406.10.001, domiciliada no Balcão 92, na agência da Moagem, em Leiria.
B) Os AA acordaram com o Réu a celebração de um contrato de mútuo com hipoteca, mediante o qual este lhes concedia o capital total de 125.000,00 € para a construção de um imóvel.
C) Os montantes do empréstimo a que se refere o contrato referido na antecedente alínea eram efectuados por tranches que seriam creditadas na conta dos AA.
D) No cumprimento do acordo celebrado, no dia 09-04-2003, foi creditada a primeira tranche no valor de 25.000,00 €.
E) De igual modo, no dia 23-04-2003, voltou a ser creditada uma segunda tranche com a quantia de 15.000,00 €.
F) E, no dia 26-06-2003, uma terceira tranche foi creditada no valor de 35.000,00 €.
G) O cheque com o número 6514147937, sacado sobre a conta referida em A), foi depositado em 29-07-2003, com todos os espaços preenchidos, na conta de Bresson Hervé Louis, na agência do Réu onde os AA têm conta aberta.
H) Esse cheque, com o valor aposto de 35.000,00 €, foi pago pelo Réu no dia 30-07-2003.
I) Aquando do pagamento desse cheque de 35.000,00 €, os AA dispunham na sua conta bancária o valor de 30.062,42 €.
J)Ao ser pago o cheque, a conta bancária dos AA ficou sem provisão e com um valor negativo de 4.937,58 €.
L) Anteriormente, em 29-07-2002, e num momento em que, por lapso, o autor marido emitiu um cheque que veio a ser devolvido por falta de provisão, a Ré contactou com os AA, através de carta registada com aviso de recepção, junta a fls 35, e na qual expunha essa situação.
M) Na sequência do pagamento do cheque aludido na alínea G), os AA pagaram ao Réu, os chamados “negócios de cobertura”, designadamente juros, imposto de selo, despesas de emissão de distrate e o IVA relativo a estas e utilização de depósitos à ordem, seus juros e IVA, tudo no valor de 9.505,55 €.
N) Os AA, por causa do pagamento do cheque, perderam toda a confiança no Réu.
O) Os AA exercem como profissão a actividade de restauração, tendo um estabelecimento comercial aberto ao público, sito no lugar dos Andreus, Barreira, denominado “Os Abóboras”.
P) O cheque nº 6514147937, junto aos autos, tem a assinatura da autora.
Q) Em 04-08-2003, o autor deslocou-se ao Banco Réu para efectuar um depósito.
R) Aproveitou essa ocasião para solicitar um extracto da conta supra citada.
S) Ao consultar o extracto verificou que a mesma se encontrava sem provisão.
T) O cheque foi preenchido com diferentes tipos de letra.
U) Os locais onde constam “a utilizar em EUROS”, “Local de Emissão”, “Ano”, “Mês” e “Dia”, foram preenchidos com um determinado tipo de caligrafia.
V) O local onde consta “à ordem de “ e onde figura o nome de Bresson Hervé Georges Louis foi preenchido com um segundo tipo de caligrafia.
X )O local onde consta a quantia de Euros”, foi preenchido com um terceiro tipo de caligrafia.
Z) A assinatura do sacador foi efectuada com tinta preta.
AA) O cheque foi preenchido com duas tonalidades de linha azul, isto é, foram utilizadas duas canetas com tinta azul diferente.
BB) O Réu, ao pagar o cheque e uma vez que o mesmo se encontrava assinado pela titular da conta bancária, não deu especial relevo aos diversos tipos de caligrafia e tonalidades que o referido cheque apresentava nos locais referidos em U) a Z).
CC) Os AA fecharam a conta no banco Réu e celebraram um novo contrato de mútuo com hipoteca na Caixa de Crédito Agrícola.
DD) Com a formalização deste contrato, os AA suportaram despesas notariais, no valor de 225,88 €; despesas com certidão de teor das finanças, no valor de 4,13€; e despesas com o registo de nova hipoteca, no valor de 160,00 €.
EE) Para além destas, tiveram os AA ainda custos com a emissão de nova licença de construção, pelo facto de a antiga ter entretanto caducado sem que os AA tivessem tido possibilidade de concluir a obra dentro do prazo nela estipulado, e que importou em 79,44 €.
FF) Os AA andam num estado de grande depressão, angústia, ansiedade e stress.
GG) Já, na altura, e pelo menos desde 2002, o autor se encontrava submetido a tratamento médico e com consultas de neurologia.
HH) O autor tem insónias.
II) Ao pagar o cheque, o Banco Réu confirmou que a assinatura de quem o emitiu coincidia com aquela que constava dos seus registos como titular da conta sacada.
JJ) É frequente, na prática bancária, que a letra de preenchimento dos cheques não seja a mesma do titular da conta e da pessoa que o subscreve.
LL) Os AA não comunicaram ao Banco Réu, antes de este proceder ao pagamento do cheque o seu extravio ou roubo.
MM) O Banco Réu havia concedido aos AA um crédito na quantia total de 125.000,00 €, o qual deveria ser lançado na conta dos AA em tranches periódicas durante o prazo de 1 ano.
NN) À altura os AA apenas tinham utilizado do montante total referido em MM), duas tranches no valor global de 75.000,00 €.
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2. De direito
2.1 Delimitação do objecto do recurso
Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs 690, nº 1, e 684, nº 3, do CPC), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – finé - do artº 660 do CPC).
Vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
2.1.1 Ora, compulsando as conclusões do recurso verifica-se que as questões que importa aqui apreciar são, essencialmente, as seguintes:
a) Da impugnação da decisão da matéria de facto.
b) Da responsabilização do Banco/réu pelo pagamento do cheque em causa (isto é, saber se o procedeu, ou não, indevidamente ao pagamento do referido cheque e, em caso afirmativo, das consequências daí advenientes em termos de indemnização pelos alegados danos reclamados pelos AA).
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2.2 Quanto à 1ª questão
Da impugnação da decisão da matéria de facto.
De forma, a nosso ver, não muito clara, e, salvo sempre o devido respeito, algo ortodoxa, é possível extrair-se que os AA se insurgem contra a decisão da matéria de facto, e nomeadamente por alegada incorrecta valoração da prova produzida sobre a mesma.
Deixou-se já acima exarado que houve lugar à gravação da audiência de julgamento, e, consequentemente, da prova.
Como é sabido, com a nova reforma ao Código de Processo Civil/95, pretendeu-se, além do mais, instituir a garantia de um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

Para o efeito, após o estabelecimento da possibilidade da gravação da prova e da consequente possibilidade da matéria de facto poder ser alterada em recurso (nos termos do disposto no artº 712 do CPC), foi, com tal reforma, acrescentado o artº 690-A do CPC, que determinou que, sob pena de rejeição, o recorrente que impugne aquela matéria deverá especificar os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que levam a decisão diversa da recorrida, sendo que quando estes últimos (vg os depoimentos) tenham sido registados em gravação deve a indicação deles deve ser feita por referência ao assinalado em acta.
Tanto o argumento histórico, como o sistemático, impõem que tal especificação deverá obrigatoriamente constar das conclusões do recurso, sendo certo que, como acima já se deixou exarado, é por elas que se afere e delimita o objecto do recurso (vidé ainda, a propósito, e entre outros, Ac. do STJ de 5/2/2004, in “www.dgsi.pt/jstj”).
Tal como vem sendo dominantemente entendido, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto deve ser feita por referência expressa (havendo-a) aos pontos concretos da base instrutória, de cuja resposta se discorda, sendo que a falta dessa indicação não impõe, antes da rejeição liminar da impugnação, o prévio convite ao recorrente para proceder à especificação de tais pontos (vidé ainda, por todos, e no sentido defendido, Ac. do STJ de 06/10/2005, in “Rec. Agravo nº 1336/04, 2ª sec.”; Acs. do STJ de 11/10/2005, de 20/3/2003 e de 9/7/2003 in “www.dgsi.pt/jstje Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª ed., pág. 466” e Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 466”).
Ora, compulsando as conclusões do recurso verifica-se que os AA se limitaram a afirmar que “as testemunhas NUNO DIAS, FERNANDO SEBASTIAO e RAMIRO SOUSA, as quais mereceram toda a credibilidade por parte do Tribunal a quo, relataram factos que não constam da matéria dada como provada, nem foram devidamente valorados”.
Torna-se, assim, claro que os apelantes não impugnaram a decisão da matéria de facto nos termos exigidos pelo artigo 690-A do CPC, e nomeadamente não especificando sequer ali os pontos concretos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados.

Porém, mesmo que porventura se considerasse bastar que essa indicação seja feita na parte das alegações que precede as conclusões do recurso, compulsando essa parte motivatória do recurso verifica-se que essa indicação é ali feita de forma avulsa e sem qualquer referência aos pontos concretos da base instrutória, sendo certo ainda que a grande generalidade desses factos, que alegam não terem sido tomados em conta pelo tribunal e que deveriam ser dados como provados, não fazem parte da base instrutória e nem sequer constam da matéria factual alegada nos correspondente articulados, sendo certo ainda que, em relação aos mesmos, não foi sequer oportunamente observada a situação prevista na parte final do nº 3 do artº 264 do CPC.

Termos, pois, em que face ao exposto, e à luz dos normativos legais supra citados, se decide rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto, improcedendo, assim, nessa parte, o recurso, pelo que se mantém a matéria de facto fixada pelo tribunal da 1ª instância, dado não se vislumbrarem razões para, à luz do artº 712 do CPC, este tribunal a alterar oficiosamente

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2.3 Quanto à 2ª questão
2.3.1 Da responsabilização do Banco/réu pelo pagamento do cheque em causa.
Face à forma como os autores configuraram a presente acção e estruturaram o seu pedido final, tal questão passa por saber se o Banco/réu pagou ou não indevidamente o aludido cheque, por forma a poder ser depois responsabilizado pelo pagamento do mesmo e pelos danos que os primeiros alegam ter sofrido por causa do seu pagamento.
Os apelantes entendem que sim, e na sentença recorrida entendeu-se que não.
Apreciemos.
2.3.2 Numa visão funcional, mas não estritamente rigorosa, diremos que o cheque surge-nos como um meio de pagamento privilegiado (que permite dispensar directamente o recurso ao numerário).
Numa linguagem comum, pode dizer-se que o cheque configura uma ordem dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado), para que pague, ao primeiro ou a terceira pessoa, determinada quantia nele inscrita, e por conta dos fundos disponíveis nesse banco.
Numa definição mais jurídica e completa, que se apresenta consensual, e que resulta de uma leitura articulada dos artigos 1º e 2º da Lei Uniforme sobre Cheques (doravante designada por LU), pode-se dizer que o cheque é um título cambiário de crédito, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, no sentido de pagar à vista a soma ou a quantia nele inscrita (cfr., por todos, F. Correia e A. Caeiro, in “RDE, 1978, pág. 457”).
Muito haveria a dizer sobre cada um dos conceitos que compõem tal definição (e que integram o chamado direito de cheque externo ou abstracto), mas não iremos fazê-lo por tal não ser reclamado para a resolução do caso em apreço.
E para tal interessa centrar a nossa atenção noutra direcção, ou seja, no chamado direito de cheque interno ou causal, que nos reconduz a uma realidade mais próxima do direito bancário.
Tal como ressalta da leitura do artº 3º da LU, na base da emissão de um cheque estão fundamentalmente duas relações jurídicas distintas: uma relação de provisão e um contrato ou convenção de cheque.
Podemos dizer que a relação de provisão se caracteriza pela disponibilização a favor do emitente de certos fundos que se conservam no banco, ou seja, essa relação pressupõe a existência, junto do banco, de fundos de que o sacador ou o emitente possa dispor, e que pode traduzir-se sob as mais diversas formas, tais como da existência de um depósito, de uma abertura de crédito, de uma conta corrente, de um desconto, etc.
O Contrato ou convenção de cheque traduz-se num acordo através do qual o banco acede, comprometendo-se ao seu pagamento, a que o seu cliente (titular de um direito de crédito sobre a provisão) mobilize os fundos que estão à sua disposição, por meio da emissão de cheques.
A provisão surge, assim, não apenas como um requisito interno típico do cheque, mas também como um pressuposto do seu normal desempenho, já que, fundamentalmente, o mesmo surge funcionalmente, como já referimos, como um meio de pagamento. Na verdade, quando o apresentador do cheque se dirige ao banco para proceder à cobrança do mesmo deve existir provisão, ou seja, o banco deve assegurar o direito de crédito do sacador, disponibilizando para o efeito os fundos necessários ao pagamento do cheque.
Todavia, a falta de provisão não torna o cheque inválido (cfr. artº 3º da LU), muito embora, como é sabido, essa irregularidade possa fazer incorrer o seu sacador em responsabilidade criminal ou/e civil (como salvaguarda, além do mais, da tutela da confiança na circulação dos títulos – cambiários -, em geral, e da protecção da boa fé do seu adquirente, em particular).
Daí que se diga que a relação de provisão surja, nuclearmente, como uma condição económica do cheque, e não mais do que isso.
Na verdade, não basta a existência de uma relação de provisão, para que o cheque possa ser pago, sendo necessário algo mais para que o banco fique obrigado ao seu pagamento. E esse “algo mais” é nada mais nada menos a existência de um contrato ou convenção de cheque de que acima falámos.
Contrato esse que, como resulta da noção já acima exarada, se traduz num acordo pelo qual o banco, vinculando-se ao respectivo pagamento, acede a que o cliente (titular da provisão) mobilize os fundos à sua disposição, através da emissão de cheques.
Sem esse acordo o cheque continua também a ser válido (cfr. artº 3º da LU), enquanto título, mas sem ele o banco não fica obrigado ao seu pagamento. E daí dizer-se que enquanto a relação de provisão aparece como uma condição económica do cheque, já o referido contrato de cheque surge, agora, como uma condição jurídica do mesmo, ou seja, é que dá juridicidade àquela relação de provisão, pois só com ele, repete-se, o banco fica vinculado a pagar o cheque.
Trata-se, assim, de um contrato que se caracteriza, além do mais, por ser autónomo (que portanto não se confunde com a relação de provisão, pois pode estabelecer-se esta relação sem que necessariamente se convencione a utilização de cheques), que assenta também nos princípios da boa fé e da tutela da confiança, que se situa dentro do universo dos negócios bancários, que é bilateral ou sinalagmático (por estabelecer um conjunto de direitos e deveres recíprocos para as partes que o outorgam), sendo a sua celebração feita frequentemente de forma tácita, e que se consubstancia mediante a requisição pelo cliente de um ou mais livros de cheques (ou mesmo através de simples cheques avulsos) e com a entrega deles pelo banco (donde, dada a frequente ausência de negociações preliminares, haver também quem o caracterize como sendo um contrato de adesão).
Sendo, como supra deixámos exarado, um contrato bilateral/sinalagmático, do contrato de cheque emergem, assim, direitos e deveres recíprocos para as partes que o celebram.
No que concerne ao cliente/sacador, pode dizer-se que o principal direito que adquire pela celebração de tal contrato traduz-se, como naturalmente resulta do que atrás se deixou expresso, na possibilidade que passou a ter de emitir cheques sobre os fundos de que dispõe, sabendo que o banco ficou vinculado a pagá-los, ou seja, ficou com o direito de mobilizar os fundos existentes à sua disposição no banco, através da emissão de cheques.
No que concerne aos deveres, o cliente/sacador ficou com tal contrato obrigado, para além de ter fundos disponíveis e suficientes para pagar os cheques emitidos, a verificar regulamente o estado da sua conta, e a zelar pela sua boa guarda, ordem e conservação da sua caderneta de cheques, e bem assim ainda, no caso do seu extravio ou perda, a avisar imediatamente o banco. Resulta, assim, de tal um especial dever de vigilância e zelo que onera o cliente, e que, no fundo, se traduz numa prestação de facto, que deverá ser cumprida pontualmente.
Quanto ao banco, e no que concerne aos seus direitos, o principal é o de lançar em conta o pagamento dos cheques.
No que concerne aos deveres, há que distinguir entre os principais e os laterais:
Entre os primeiros ressalta, desde logo, o dever do pagamento dos cheques emitidos pelo cliente sacador (especialmente daqueles que tenham provisão).
No que diz respeito aos deveres laterais ou colaterais haverá que salientar, entre muitos outros, o dever de fiscalização e de conferência da assinatura; o dever de rescindir o contrato de cheque (em caso de utilização indevida); o dever de observar a revogação do cheque; o dever de esclarecer um terceiro que reclame informações sobre essa revogação; o dever de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados; o dever de, em regra, não pagar o cheque para levar em conta; o dever de informar o cliente sobre o destino e tratamento do cheque, e especialmente sobre a pessoa do apresentador, etc.
Tudo isto, para chegar à conclusão de que terá que ser, pois, à luz do contrato de cheque que a problemática da responsabilidade pelo pagamento de cheques terá que ser analisada, e nomeadamente no que diz respeito à questão de saber se um cheque foi ou não indevidamente pago.
Na verdade, essa problemática tem a ver com a questão de saber se alguma das partes incumpriu aquele contrato, violando os deveres a que, segundo ele, ficou adstrita.
Tal conduz-nos, pois, ao instituto da responsabilidade civil contratual, e aos seus princípios gerais, e nomeadamente à imputação culposa de tal incumprimento, ou seja, da violação culposa de algum daqueles deveres (cfr. artº 798 do CC).
Vidé, sobre a problemática que temos vindo a abordar, entre muitos outros, Ac. da RC de 26/4/1989, in “CJ, Ano XIV, T2 – 72”; Ac. do STJ de 10/11/93, in “CJ, Ano I, T1 – 130”; Ac. do STJ de 9/11/2000, in “CJ, Acs. do STJ, Ano VIII, T3 – 108”; Ac. da RLx de 28/4/2005, in “CJ, Ano XXX, T2 – 114”; Ac. da RE de 13/12/1990, in CJ, Ano XV, T5 – 265”; Sofia Galvão, in “Contrato de Cheque, Lex, Lisboa 1992, págs. 20 e ss” – e cujo pensamento seguimos de perto -; José Maria Pires, in “O Direito Bancário, 2º Vol. pág. 333 e ss”; Correia Gomes, in “A Responsabilidade Civil dos Bancos Pelo Pagamento de Cheques Falsos ou Falsificados, págs. 12 e ss”; Pedro Fuzeta da Ponte, in “Da Responsabilidade dos Bancos Decorrente do Pagamento de Cheques com Assinaturas Falsificadas, Revista da Banca, nº 31, págs. 61/81”; Moitinho de Almeida, in “Responsabilidade Civil dos Bancos pelo Pagamento de Cheques Falsificados, pág. 151” e F. Correia e A. Caeiro, in “RDE, 1978, pág. 457”.
2.3.3 Enquadrada, juridicamente, a questão, debrucemo-nos, agora, mais de perto, sobre o caso em apreço.
Grosso modo, os autores assentaram a sua pretensão de serem ressarcidos pelos danos que o Banco/réu lhes terá causado pelo facto de ter pago indevidamente o sobredito cheque que foi sacado sobre a conta bancária que tinham no referido banco. E indevidamente porque se tratou de um cheque extraviado ou que lhes foi furtado e que quando foi apresentado a pagamento se encontrava falsificado (em todos os seus dizeres, com a excepção da assinatura nele aposta pelo punho da autora – encontrando-se, na altura, em branco quanto ao demais), e que o réu, por falta de cuidado e de zelo, não detectou, como devia, e ainda porque procedeu ao seu pagamento sem terem no banco (na sua conta á ordem) fundos (dinheiro) disponíveis suficientes para proceder integralmente ao seu pagamento, e sem que ao menos sequer os tivesse informado previamente de tal.
Compulsando a matéria factual dada como assente, resulta, desde logo, que os autores não só não lograram provar, tal como haviam alegado, que o aludido cheque foi extraviado ou lhes foi furtado (cfr. respostas totalmente negativas aos quesitos 1º a 3º, 5º a 8º e 11º-A a 13º e resposta restritiva ao quesito 4º), como inclusive não lograram sequer demonstrar que o mesmo se encontrasse falsificado quando foi apresentado a depósito (noutra conta de um terceiro) na banco/réu (cfr. al. G) dos factos assentes da selecção da matéria de facto e respostas ao quesitos 4º, 12º e 29º). Na verdade, e no que concerne à alegada falsificação do referido cheque, resulta da matéria de facto dada como assente que o mesmo quando foi depositado numa outra conta no banco/réu (a favor de um terceiro) o mesmo apresentava-se completamente preenchido, tendo ficado provado ainda que a assinatura nele aposta era da própria autora. O facto de os demais espaços se encontrarem preenchidos com diferente tipos de letra, e dois tipos de tonalidade de linha azul (cfr. als. T) a AA) da descrição dos factos assentes), tal não é só por si suficiente para concluir pela sua falsificação, e tanto mais que é da experiência comum, e, sobretudo (tal como ficou provado), resulta da experiência da prática bancária acontecer muitas da vezes o cheque ser preenchido por pessoa diferente daquela que o assinou ou subscreveu (cfr. al. LL.) da descrição dos factos assentes).
Logo, não logrando os autores ter feito prova (tal como lhes competia, nos termos do artº 342, nº 1, do CC) do alegado extravio/furto do cheque e da sua falsificação, a responsabilidade do banco/réu poderia somente ser questionada por ter pago o cheque na sua totalidade, quando a conta à ordem dos autores se apresentava então a descoberto (sem provisão) no montante de € 4.937,58, e que resultava do facto de o referido cheque titular então a importância de € 35.000,00, quando os autores apenas dispunham nessa conta da importância de € 30,062,42. (cfr. als. H) a J) da descrição dos factos assentes).
Mas será que tal será suficiente para, no caso em apreço, responsabilizar (culposamente) o banco/réu por incumprimento contratual, ou seja, por ter pago o cheque para além do montante da provisão que existia na conta dos AA sobre a qual foi emitido?
Vejamos.
Convém antes sublinhar, que aquilo que se vai expressar, no que concerne à sobredita vexata quaestio, obviamente só faz sentido quando estão em causa (como sucede no caso em apreço) cheques de montante superior a 150,00 € - pois até esse montante o banco está actualmente, em princípio, sempre obrigado a pagá-los, não obstante a sua falta ou insuficiência de provisão, tal como decorre do artº 8 do Regime Jurídico do Cheque Sem Provisão, consagrado pelo DL nº 454/91 de 28/12, na redacção actual introduzida pelo artº 1 da Lei n º 48/05 de 29/8, sendo que na altura dos factos aqui em discussão esse montante situava-se em apenas esc. 12.500$00/€ 62,35, na alteração que então fora introduzida pelo DL nº 316/97 de 19/11 -, ou então cheques cuja emissão não se deve a violação dos deveres a que o banco está, de forma expressa, legalmente obrigado - pois caso contrário o banco também está aí obrigado a pagar tais cheques - (cfr. artº 9 de tal Regime).
Abordando o cenário atrás colocado, ou seja, de não existir provisão na conta do cheque emitido pelo sacador ou de a existir ela se mostrar, todavia, insuficiente, Sofia Galvão (in “Ob. cit. págs. 47/48) escreve a tal propósito: “Pois, bem, nem sempre tal facto deve fundar, de per si, uma recusa de pagamento. Pode defender-se a existência de um dever de pagamento, mesmo em caso de falta de cobertura. Basta pensar que se pode tratar de um cliente que apresente garantias suficientes (e, exemplificando, escreveu em nota de rodapé - nº 143, pág. 48 -, «imagine-se, por exemplo, que é titular de um depósito de títulos no mesmo Banco»), ou que o sobressaque necessário é irrisório, ou que – atendendo à “historia” da conta – a falta de provisão é de pouca dura, ou ainda que o Cliente, por qualquer razão atendível, deve merecer crédito”. Depois, mais á frente - a págs. 53/54, quando discorre sobre os direitos do Banco e mais especificamente sobre o que é que o Contrato de Cheque permite, e nomeadamente do direito que, a tal propósito, o Banco tem de lançamento em débito de conta do sacador do cheque que pagou -, volta a escrever “Acentue-se, de resto, que o lançamento não supõe, necessariamente e como se viu, a existência de cobertura na conta de sacador. O Banco tem o direito de lançar cheques não cobertos, embora, em regra, não esteja obrigado a fazê-lo”. Aliás, em sentido idêntico foi o acórdão desta Relação, acima citado, de 26/4/1989 (in “CJ, Ano XIV, T2 – 72/74”) ao defender que sendo o sacador/depositante uma pessoa de bom crédito não há culpa do banco que efectuou o pagamento para além da quantia depositada à sua ordem, e sobretudo quando tal pagamento tenha sido efectuada apenas com a intenção de cumprir e não com um intuito de fazer uma liberalidade ao accipiens.
Posto isto, e reportando-nos ao caso em apreço, se tivermos em conta:
Por um lado, e como já deixámos expresso, que não ficou provado que o aludido cheque tivesse sido extraviado/furtado ou falsificado e não havendo sequer razões, face ao que supra se deixou exarado, para supor que o mesmo o tivesse sido;
Por outro, que entre os AA/sacadores e o Banco/réu havia antes sido celebrado um contrato de mútuo, garantido por hipoteca, na sequência do qual o último lhes “concedeu” o capital total de € 125.000,00 (com vista ao financiamento da construção de um imóvel), a ser utilizado faseadamente (ou sejam por tranches), sendo que na altura do depósito do referido cheque ainda se encontrava a crédito dos autores (ou seja, por utilizar) o montante € 50.000,00 (já que apenas havia sido utilizada a importância total de € 75.000,00). Donde ressalta uma relação não só de confiança então existente entre os AA e o Réu, como também de garantia concedida pelos primeiros ao último.
Por outro, que do total da importância titulada pelo cheque (€ 35.000,00), apenas ficava a descoberto, por falta de fundos disponíveis, a quantia de € 4.937,42 (pois na conta à ordem os AA dispunham então de 30,062,42);
Por outro ainda, que o cheque em causa foi depositado – e não logo levantada a sua importância – na mesma agência do Banco/réu (numa conta de terceiro, ao qual veio, um dia depois a ser pago) onde os autores tinham a sua própria conta (o que transmite, desde logo, uma ideia de maior segurança e de legalidade, ou seja, de que tudo estaria conforme, reforçada ainda pelo facto de referido cheque se apresentar cruzado, o que, desde logo, nos termos do disposto nos artºs 37 e 38 da LU, faz com que, com vista a eliminar os riscos do seu uso, o mesmo só possa ser pago a um banqueiro ou imediatamente a alguém cliente do banco sacado e que nele tenha uma conta);
E por fim ainda, os princípios de tutela da confiança (subjacentes no trânsito dos títulos cambiários) e da protecção da boa fé (do adquirente) de que acima falámos, é-se, assim, levado a concluir que a referida conduta (no que concerne ao pagamento do dito cheque, sem que estivesse dotado de provisão suficiente) não só não se mostra passível de qualquer censura, como inclusive será licita (por ser aceitável à luz dos factos e dos princípios que supra deixámos enunciados), ou seja, não representando tal qualquer violação culposa do aludido contrato ou convenção de cheque celebrado entre os AA e o Banco/réu, e especialmente dos deveres a que, por ele, o Réu ficou vinculado.
Mas à mesma solução chegaríamos, a nosso ver, caso porventura fosse de aceitar (e já vimos que tal não resulta da matéria factual que foi apurada) que o referido cheque foi objecto de extravio/furto e que foi falsificado por quem o apresentou ao Banco/réu para depósito e posterior pagamento.
Se não vejamos.
Já vimos que o referido cheque se encontrava assinado pela autora, contitular da conta a que dizia respeito, o que o réu (através dos seus funcionários), aliás, conferiu, confirmando que essa assinatura coincidia com aquela que constava dos seus registos como sendo de um dos contitulares da conta sacada (cfr. al. II) da descrição dos factos assentes). Dever esse que, em termos do dever de fiscalização a que os bancos ficam vinculados, é prevalecentemente considerado como sendo verdadeiramente essencial, havendo mesmo quem o apelide de “dever absoluto” (vidé Sofia Galvão in “Ob. cit. pág. 68”). E percebe-se que, assim seja, porque é por tal assinatura que, desde logo, se afere da regularidade da emissão do cheque e da legitimidade do seu portador. E tanto mais que como é sabido, e resulta da experiência comum e, sobretudo, da prática bancária, que muita das vezes os restantes dizeres (em termos de preenchimento) são nele apostos por pessoas diferentes daquela que o assina ou o subscreve (cfr., a esse propósito, os factos provados insertos na als. BB) e JJ)).
E daí que não seja relevante, só por si, e face aos demais elementos factuais supra referidos, o facto de os demais dizeres apostos no cheque se apresentarem com uma caligrafia e com tonalidades de tinta diferentes daquele com que se apresentava a assinatura da contitular da conta.
Por tudo isso, em conjugação com aquilo que supra já se deixou referido aquando da específica abordagem relacionada com a responsabilidade do Banco pelo pagamento de um cheque que se encontrava dotado de insuficiente provisão, não se vislumbram razões que objectivamente então justificassem que o Banco/réu tivesse, previamente ao pagamento do cheque, contactado os AA, comunicando-lhes a situação, e mais ainda quando no comércio bancário hodierno o negócio dos cheques se apresenta como “negócio de massas”, envolvendo milhares ou milhões de títulos (defendendo, em termos mais radicais, a inexistência do chamado “dever de contacto” prévio pelo banco ao cliente, a quem apelida de “nada jurídico”, vidé o acima citado Ac. da RLx de 28/4/2005, in “CJ, Ano XXX, T2, págs. 114 e 120”). E tal não é contrariado sequer pelo facto de ter ficado provado (cfr. al. L)) de numa situação anterior, ocorrida em 29/7/2002, o réu ter contactado, por carta, os AA para regularizarem situação decorrente de um cheque sem provisão emitido, por lapso, pelo autor, já que para além de no caso se estar (pelo menos é isso que se infere do documento junto a fls. 35) perante uma situação de total falta de provisão (em que o pedido ali feito era precisamente para regularizarem a situação), na altura ainda não havia sido celebrado o contrato de mútuo, com garantia de hipoteca, de que atrás démos conta, e que alterou substancialmente o relacionamento entre ambos, quer em termos de confiança, quer em termos de crédito e segurança do mesmo.
Não vislumbramos, assim, também na hipótese que temos vindo a abordar, e face à matéria factual que foi possível dar como provada, que o Banco/réu possa ser culposamente responsabilizado pelo pagamento do referido cheque, e consequentemente pelos alegados danos sofridos pelos AA e cuja indemnização estes daquele reclamam.
Mas, já o mesmo não se poderia dizer do comportamento dos AA.
É que, em tal hipótese, de extravio/furto do aludido cheque (e subsequente falsificação do mesmo), sabe-se que o mesmo foi depositado no dia 29/7/2003 na agência do R., numa conta de um terceiro, e pago depois no dia seguinte (30/7/2003).
E ficaríamos a saber que, em tal hipótese, o cheque quando se extraviou ou foi furtado, já se encontrava assinado, o que revelava, desde logo, uma clara falta de zelo e cuidado por parte dos autores, sabendo-se, dada a natureza do titulo cambiário que representa, que com tal assinatura o cheque poderia, como vimos, ser preenchido e movimentado sem quaisquer entraves de ordem jurídica. Ou seja, ter assinado o dito cheque, e guardá-lo nesse estado (desconhecendo-se por quantos dias), tal configurava, assim, uma situação extremamente perigosa e reveladora de grande imprevidência.
Por outro lado, ficaríamos sem saber não só a data (concreta ou aproximada) da ocorrência de tal extravio/furto, como também a data concreta em que os autores teriam tomado conhecimento dessa situação. É que os AA não lograram provar, como lhes competia, nenhum dos factos e das correspondentes datas que, a tal propósito, haviam alegado, e nem sequer que deram conhecimento ao réu da ocorrência do alegado extravio, como então se impunha e estavam obrigados, por forma a obstar ao pagamento do dito cheque (cfr. respostas negativas aos quesitos 1º a 3º, 5º a 8º e 11º-A a 13º).
Logo, mesmo só perante tal matéria de facto, era então possível concluir que os AA não só não cumpriram, nomeadamente, os especiais deveres de vigilância e de guarda do cheque em causa, tal como também violaram os deveres de cuidado e diligência a que estavam obrigados e bem assim ainda o dever de comunicação, o mais breve possível, ao banco da situação de extravio/furto.
Ora, perante tal acção/omissão dos AA, e de acordo ainda com a chamada “teoria das esferas” ou das aéreas de competência (vidé Sofia Galvão, in “Ob. cit. pág. 69”), o pagamento do referido cheque, e bem assim dos danos que tal lhes terá causado, ficaria então a dever-se (exclusivamente) à conduta culposa (negligente) dos autores.
Termos, pois, em que Banco/réu teria, também por aí, de ser desresponsabilizado pelo pagamento do referido cheque e dos danos daí decorrentes para os autores.
Assim, por tudo o exposto, ter-se-á de julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
***
III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª instância.
Custas pelos apelantes.

Coimbra, 2007/12/19