Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1566/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: PROCESSO TUTELAR DE MENORES
DIREITO DE VISITA
POR PARTE DOS AVÓS DO MENOR
Data do Acordão: 07/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1887º-A, DO C. CIV. .
Sumário: I – O artº 1887º-A, do C. Civ. deve ser interpretado numa perspectiva restritiva, em que se concebe a sua aplicação às situações em que há uma patente atitude de inviabilização do convívio entre irmãos ou entre avós e netos .

II – A Constituição e a lei ordinária, no que concerne aos aspectos ligados à regulação do exercício do poder paternal em geral e à educação em particular, dão uma manifesta primazia às relações entre pais e filhos, só admitindo a intervenção de terceiros, mesmo familiares, em sua substituição e em situações de patente incapacidade dos progenitores para tais funções.

III – O art.º 1887º-A do C. Civ. representa a necessidade de salvaguarda de relações familiares não estritamente nucleares que poderiam perder-se caso os pais entendessem que os seus filhos não deveriam conviver com os seus irmãos ou avós, isto é, actualmente esse convívio deverá existir, só podendo ser negado caso se verifique uma situação que o justifique .

IV- Cabe no âmbito do poder-dever de educação dos filhos, pertencente aos pais, a gestão do convívio entre irmãos ou entre avós e netos, a qual deve ser pautada por princípios de racionalidade e de equilíbrio, visando-se a salvaguarda dos superiores interesses dos menores .

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra,

I – Relatório

A... e mulher, B..., requereram que fosse regulado um regime de visitas relativamente ao menor, seu neto, C..., pois entendem não deverem estar dependentes dos “humores” da mãe do menor para que possam ter o menor consigo.
Referiram ainda que tendo o seu filho e pai do C... falecido, a mãe do menor passou a trazer-lhes este quase diariamente a sua casa onde permanece algum tempo, meia hora, uma hora, duas horas e raramente três horas e outras vezes até não o leva.
Designada e realizada a conferência a que alude o artigo 175°, ex vi do artigo 210.º da OTM, não foi possível obter qualquer acordo.
Notificados requerentes e requerida para alegarem o que tivessem por conveniente, não o fizeram, limitando-se a juntar aos autos expediente pelo qual se alcança inexistir acordo.
O Ministério Público, no seu parecer, promoveu no sentido do indeferimento do requerido.
Foi proferida sentença que julgou improcedente o pedido de fixação de um regime de visitas a favor dos avós e requerentes A... e B... relativamente ao seu neto C....
Inconformados com tal decisão vieram os requerentes recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações nas quais exibiram as seguintes conclusões:
1- A decisão recorrida omitiu e, consequentemente, não valorizou, certamente por lapso, a matéria constante do alegado em 10.º do requerimento inicial;
2- Toda a matéria assente, por não posta minimamente em causa, permite claramente concluir que a Requerida E... se arroga no direito de decidir o se, o como e sobretudo o quando das visitas do C... aos ora Recorrentes;
3- O que viola frontalmente o disposto no art.° 1887.º-A do CC;
4- Cuja intenção é a de atribuir ao menor mais um espaço de autonomia face aos seus pais e, aos avós, uma tutela jurídica dos seus interesses em se relacionarem com o menor, justificado não só no interesse do menor mas também no interesse destes;
5- Ensina qualquer dicionário da língua portuguesa que “conviver” significa “viver com outrem em intimidade”, “acção ou efeito de conviver, de viver intimamente; sociedade de pessoas que vivem, que comem e bebem juntamente e com familiaridade”;
6- Da factualidade julgada por assente não conseguimos vislumbrar como é que, um menor, acabado de fazer 4 anos de idade, a viver diariamente com a mãe, pode conviver também com os avós nas circunstâncias, sumárias e intermitentes, sem qualquer espaço de diálogo, deixadas descritas ou por qualquer outra forma que não seja visitá-los com regularidade, estar com eles em sua casa, tomar refeições todos juntos, passear juntos..., tudo isto de um modo regular e, sobretudo, por regra, definido;
7- Sendo assim bastante para, por si só, preencher e constituir o fundamento da regulação do “regime de visitas” pretendido;
8- Na sequência da conferência que teve lugar, por iniciativa da Requerida E..., foi apresentada uma proposta de acordo relativamente ao convívio do C... com os ora Recorrentes;
9- À qual os mesmos responderam contrapondo outra em tudo idêntica;
10- Atenta a natureza processual dos autos, impunha-se assim um empenhamento do Senhor Juiz a quo na procura da melhor solução na defesa dos interesses do C..., primordiais até de acordo com o expressamente disposto no art.° 3.° n.° 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova lorque em 26/01/90 Ratificada pela Resol. da Ass. Rep. n.º 20/90 e Decreto do Presidente da República 49/90, de 12/09.;
11- Pelo que, não o tendo feito, se mostram ainda violados os art°s 150.º da OTM e 1410.° do CPC;
12- Deve deste modo a douta decisão ser revogada e mandada substituir por outra que ordene o prosseguimento dos autos, tendo em vista a fundamental defesa dos interesses do menor C....

A recorrida contra-alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1 – Não houve qualquer violação do disposto no art.º 1887-A, pelo que este não se deve aplicar.

2- Não existe errada apreciação da matéria factual tida por assente e, subsequentemente, de erro evidente no julgamento da mesma.

3- Deve a douta sentença apelada ser mantida totalmente, por fazer correcta interpretação e aplicação da lei e dos factos.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO;
Questões a apreciar:

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir as questões suscitadas pelos apelantes, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).
Vejamos as questões que os recorrentes suscitaram e que importará apreciar:
1 – Ampliação da matéria de facto – art.º 10.º do requerimento inicial
2 - Erro de julgamento – aplicabilidade do art.º 1887.º-A do Código Civil
3 – Desrespeito pelos artgs. 1410.º do Cód. de Proc. Civil e 150.º da OTM

III – FUNDAMENTOS

1. De facto

Foram os seguintes os factos dados por provados na sentença recorrida:
1. O menor C... é filho de D... e de E...;
2. O menor C... nasceu em 20/08/2000;
3. O D..., pai do menor, faleceu em 18/11/2001;
4. O D... era filho dos Requerentes, A... e B...;
5. Após a morte do pai do menor a mãe do mesmo passou a levar o menor, quase diariamente, a casa dos avós, aqui requerentes, por períodos de meia hora, uma hora, duas horas e raramente três horas.

2. De direito

Apreciemos as três questões supra elencadas.

1 – Ampliação da matéria de facto – art.º 10.º do requerimento inicial

Sustentam os apelantes que a decisão sobre a matéria de facto omitiu o facto alegado no art.º 10.º do requerimento inicial.
Afigura-se-nos assistir razão aos recorrentes nesta questão.
Com efeito, esse facto – “Outras vezes, por razões que desconhecemos, até não o leva” – está indissociavelmente ligado ao alegado no art.º 9.º desse mesmo requerimento inicial, o qual veio a ser dado como provado (constituindo o ponto 5 do probatório), não se vislumbrando quaisquer razões para que um seja considerado como provado e o outro não.
Assim, ao abrigo do disposto no art.º 712.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Civil, adito à matéria de facto dada como provada o seguinte facto que passará a ter o n.º 6:
“Outras vezes, por razões que desconhecemos, até não o leva”.

2 - Erro de julgamento – aplicabilidade do art.º 1887.º-A do Código Civil

Sustentam os apelantes que a decisão recorrida terá feito incorrecta aplicação do direito aos factos dados por provados, pois que na sua óptica, os descritos sob os n.ºs 5 e 6 da matéria dada por provada – “Após a morte do pai do menor a mãe do mesmo passou a levar o menor, quase diariamente, a casa dos avós, aqui requerentes, por períodos de meia hora, uma hora, duas horas e raramente três horas” e “Outras vezes, por razões que desconhecemos, até não o leva” – não traduzem uma situação de convívio entre avós e neto, razão pela qual, entendem, seria de viabilizar um regime de visitas, ao abrigo do disposto no art.º 1887.º-A, do Código Civil.
A análise da questão aqui em apreço prende-se com a interpretação a dar ao apontado art.º 1887.º-A do Cód. Civil: ou se tem dele uma visão muito ampla, traduzível numa verdadeira limitação ao exercício do poder paternal; ou se entende o mesmo numa perspectiva mais restritiva, em que se concebe a sua aplicação às situações em que há uma patente atitude de inviabilização do convívio entre irmãos ou avós e netos.
Afigura-se-nos que o espírito da lei aponta para esta segunda via interpretativa, desde logo porque é esse o caminho que nos surge como mais consentâneo com a harmonia do sistema de regulação do exercício do poder paternal e de relações familiares patente quer na nossa Constituição, quer na nossa lei ordinária.
Com efeito, o art.º 36.º da nossa Lei Fundamental, que tem por epígrafe “Família, casamento e filiação” e que se encontra inserido no Capítulo respeitante aos “Direitos, liberdades e garantias pessoais” (Capítulo I do Título II) estabelece:
“…
“5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
“6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.”
Por seu turno no art.º 1878.º do Cód. Civil (que tem por epígrafe “Conteúdo do poder paternal”), estabelece-se no seu n.º 1 que “Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.”
No n.º 2 do preceito, complementar do anterior, acrescenta-se ainda que “Os filhos devem obediência aos pais; estes porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida.”
Na sequência destes normativos e no que concerne à concretização desse dever/poder de educar, estipula o n.º 1 do art.º 1885.º que “Cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos.”
A Constituição e a Lei ordinária, no que concerne aos aspectos ligados à regulação do exercício do poder paternal em geral e à educação, em particular, dos filhos, dão uma manifesta primazia às relações entre pais e filhos, só admitindo a intervenção de terceiros, em sua substituição, em situações de patente incapacidade dos progenitores para tais funções, potenciadoras de colocar os menores em perigo (vd. artgs. 1913.º, 1915.º e 1918.º, todos do Cód. Civil).
O art.º 1887.º-A, que foi introduzido no Código Civil pelo Dec.- -Lei n.º 84/95, de 31 de Agosto, representa quanto a nós a necessidade de salvaguarda de relações familiares não estritamente nucleares que poderiam perder-se caso os pais entendessem que os seus filhos não deveriam conviver com os seus irmãos ou avós. Tal desiderato tem por pressuposto a ideia de que esse relacionamento se traduz numa mais-valia para o desenvolvimento psico-social e educacional dos menores e também, correlativamente, numa situação gratificante para os avós. Certo é também que esse princípio não é absoluto, pois que a lei permite que “justificadamente” possam os pais obstar a tal convívio.
Até à introdução de tal preceito legal, só era possível a imposição do convívio entre irmãos ou entre netos e avós nos casos em que se registasse uma situação de perigo para a segurança, saúde, formação moral ou educação da criança, nos termos descritos no art.º 1918.º do Cód. Civil.
Actualmente, como se disse, esse convívio deverá existir, só podendo ser negado caso se verifique uma situação que o justifique.
Todavia, como já referimos supra, o poder/dever de educação dos filhos encontra-se, em princípio, entregue aos cuidados dos progenitores, que serão, à partida, as pessoas mais habilitadas para levarem a cabo tal difícil tarefa.
Ora, cabe no âmbito desse seu poder/dever de educar, a gestão desse convívio entre irmãos ou entre avós e netos, a qual deve ser pautada por princípios de racionalidade e equilíbrio, visando a salvaguarda dos superiores interesses dos menores.
Cabe aqui dar nota de que a expressão convívio, contrariamente ao que é defendido pelos apelantes, não implica necessariamente periodicidade certa, nem mesmo espaço temporal preciso, antes tem na sua base a ideia de regularidade (diferente de periodicidade certa) e de tempo bastante para o estabelecimento de comunicação inter relacional entre os visados (o qual pode variar em função das circunstâncias em que ocorre).
Daqui resulta, face a tudo o que deixámos já exposto, que só em casos em que os pais não permitam a existência desse convívio nos termos expostos (inexistência dum mínimo de regularidade e de tempo para o relacionamento comunicacional entre irmãos ou entre avós e netos), é que será admissível, a quem se sentir lesado com tal impedimento, pedir em Tribunal a concretização desse convívio.
Ora, no caso dos autos, não ficou demonstrada a inexistência desse espaço de convívio, antes se comprovou que “Após a morte do pai do menor a mãe do mesmo passou a levar o menor, quase diariamente, a casa dos avós, aqui requerentes, por períodos de meia hora, uma hora, duas horas e raramente três horas” e “Outras vezes, por razões que desconhecemos, até não o leva”.
Tal factualidade, quanto a nós, não consubstancia a ideia supra avançada de inexistência de convívio entre os avós e o neto, muito pelo contrário. Representa sim a ideia de que os contactos terão eventualmente diminuído, mas no âmbito do poder/dever de educar entregue à mãe, a quem cabe a gestão do relacionamento do seu filho menor com familiares e outros.
Entendemos pois que o tribunal da 1.ª Instância andou bem ao ter considerado inexistir causa de pedir no âmbito da presente acção, pois que não se verificam os pressupostos fácticos bastantes consubstanciadores da aplicação do invocado art.º 1887.º-A do Cód. Civil.
Improcede assim a presente questão.
3 – Desrespeito pelos artgs. 1410.º do Cód. de Proc. Civil e 150.º da OTM

Sustentam os apelantes que o Senhor Juiz do tribunal a quo terá violado o disposto nos artgs. 1410.º do Cód. Proc. Civil e 150.º da OTM, pois que não terá procurado, como deveria, a “melhor solução na defesa dos interesses do C...”.
É certo que o presente processo tutelar comum (art.º 210.º da OTM) é por força do estatuído no art.º 150.º da OTM um processo de jurisdição voluntária, sendo-lhe por isso aplicável o disposto nos artgs. 1409.º a 1411.º do Cód. Proc. Civil.
Ora, no âmbito de tais processos o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, podendo ser proferido um juízo de oportunidade ou conveniência face aos interesses em causa.
Como referia o Professor Alberto dos Reis Processos Especiais, Vol. III, pág. 400 “… o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa.”
É por via disso que o tribunal “pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes” Art.º 1409.º, n.º 2, do Cód. Civil.
A possibilidade de recurso ao princípio da equidade e o inerente reforço do princípio do inquisitório, não constitui no entanto realidade absoluta, pois que a utilização desses princípios não dispensa a prévia apreciação dos pressupostos da acção, a qual deverá ser feita tendo por base critérios de legalidade.
Como se referia no acórdão da Relação de Lisboa de 19/10/1999 In Col. Jur., IV, pág. 129 “O poder inquisitório do Tribunal, neste tipo de jurisdição, é complementar do dever de fundamentação do pedido, que cabe às partes; significa apenas que o juiz não fica sujeito apenas aos factos invocados por estas, na fundamentação da decisão que vier a proferir, podendo utilizar factos que ele próprio capte e descubra.”
Os poderes conferidos ao juiz no âmbito dos processos de jurisdição voluntária não podem ser vistos como forma de suprir as falhas das partes do seu dever de colocarem perante o Tribunal as questões que este deverá apreciar, apresentando as provas que consideram pertinentes para tal fim, trata-se sim de um poder que está para além do que as partes possam apresentar, mas não dum poder que é atribuído em vez desse dever dispositivo das partes.
No caso em apreço, não tendo os apelantes apresentado factos bastantes para sustentar a causa de pedir inerente ao pedido que formularam, não seria exigível que tal omissão fosse suprida pelo Senhor Juiz do Tribunal a quo, até porque a situação descrita no requerimento inicial não era de forma a indiciar a existência de qualquer situação passível de pôr em risco os interesses do menor, o que norteia os processos tutelares cíveis e poderia ser passível de levar a uma intervenção oficiosa do Tribunal.
Desta forma, entende-se que não houve violação dos artgs. 1410.º do CPC e 150.º da OTM, pelo que também nesta questão não assiste razão aos recorrentes.

IV – DECISÃO

Face a todo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, assim se mantendo a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra,