Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/03.2TBPNH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
SERVIDÃO NÃO APARENTE
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PINHEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1543º, 1547º, 1548º, 1564º E 1568º DO CC
Sumário: 1. O interessado no reconhecimento do direito a uma servidão de passagem não só deve identificar o posicionamento relativo dos prédios dominante e serviente, evidenciando o encargo para este e o correspectivo benefício para aquele, como também o local e a extensão da pretensa servidão. É pois essencial que, tratando-se de servidão de passagem, se prove que a passagem se desenvolve no sentido do prédio que vai ser servido, assim se formando a utilidade pressuposta pelo direito de servidão. Se o autor não consegue convencer o tribunal da ligação entre determinados prédios, o serviente e o servido, a servidão não pode ser declarada.

2. As servidões não aparentes, ou seja, aquelas que não se revelam por sinais visíveis e permanentes, não podem ser constituídas por usucapião. Sendo a usucapião um título constitutivo não formal da servidão, a omissão de sinais visíveis que fisicamente indiquem o local de passagem entre os prédios só pode dar lugar a uma completa indefinição da concreta extensão e implantação desse local.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... propôs na comarca de Pinhel acção declarativa com processo sumário contra B... e C... e marido D..., pedindo a condenação dos Réus a reconhecer que o Autor tem direito de passagem de pessoas e viaturas pelo acesso sito no prédio da 2ª Ré, de cerca de 3/4 metros de largura, com entrada pela Rua dos Bombeiros Voluntários, freguesia e concelho de Pinhel, bem como que não podem estorvar ou impedir a passagem do Autor por aquele acesso; a demolir a parede que foi edificada na mencionada passagem e a destrancar o portão existente junto à Rua dos Bombeiros Voluntários, abstendo-se da prática de qualquer acto que seja susceptível de perturbar o direito do Autor de fazer uso livre do referenciado acesso; a pagar solidariamente ao Autor a indemnização de € 3.050,00 pelos danos patrimoniais e não patrimoniais ocasionados, bem como a indemnização de € 50 por cada dia de atraso na reposição do estado anterior.

Para tanto alega que há mais de 20 anos não só ele A. como os inquilinos do seu prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e 1º andar, logradouro e cabanal, acedem a esse prédio, de modo público, pacífico e continuado, a pé, de carro e tractor, através de uma passagem de 3-4 metros situada junto ao extremo de um prédio da 2ª Ré pelo portão de entrada para este prédio a partir da via pública, com a consciência de exercitarem um direito próprio; que os 1º e 2ºs RR. fecharam à chave o dito portão e obstruíram a aludida passagem com pedras e blocos de cimento, impedindo a acessibilidade do A. e seus inquilinos; que estes sofreram com isso prejuízos traduzidos na impossibilidade de uso das alfaias arrecadadas no cabanal, bem como do armazenamento de lenha e vides provenientes da sua lavoura, o que também lhe gerou insónias, tensão e irritação.

Contestaram os RR., defendendo-se excepcionalmente com a ilegitimidade activa do A. – entretanto suprida com a intervenção do respectivo cônjuge - e passiva do 1º R., este por nenhuma relação ter com os prédios em causa; com a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição; por impugnação, negando a posse invocada pelos AA., bem como os prejuízos assacados à suposta ofensa que os RR. reputam inexistente porque enquadrada na defesa da integralidade da respectivo prédio. Terminam com a procedência das excepções e improcedência da acção.

O processo seguiu os seus termos, com o conhecimento das excepções e a decisão da respectiva improcedência, e a final foi proferida sentença que, absolvendo da totalidade do pedido o R. B..., veio a condenar os Réus C... e marido D... nos seguintes termos:

"1  Reconheþo que se encontra constituÝda, por usucapiÒo, uma servidÒo de passagem sobre o prÚdio urbano composto por casa de rÚs-do-chÒo e 1║ andar destinada a habitaþÒo, com a superfÝcie coberta de 195 m2, confrontando a norte com parque, sul com o proprietßrio, nascente com parque e poente com estrada camarßria, inscrito na matriz predial da respectiva freguesia sob o artigo 1306.║, e descrito na Conservat¾ria do Registo Predial de Pinhel sob o n.║ 01073/200792, propriedade da segunda ré, C..., com cerca de 3,25 metros de largura, situada num dos extremos de tal prÚdio, com estrada pela Rua dos Bombeiros Voluntßrios, Pinhel, a favor do prÚdio urbano de que os autores sÒo proprietßrios, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Pinhel sob o artigo 1272;

2  Condeno os rÚus a reconhecer que os autores tÛm o direito de servidÒo de passagem no acesso identificado em 1.;

3  Condeno os rÚus C... (à) e marido (à) a absterem-se de estorvar ou impedir a passagem dos autores por aquele acesso;

4  Condeno os rÚus C... (à) e marido (à) a remover do acesso identificado em 1. as pedras e blocos de cimento ali colocados em Novembro de 2002, bem como quaisquer outras construþ§es que ali tenham sido eventualmente realizadas, susceptÝveis de impedir a passagem dos autores, bem como a abrir o portÒo que fecharam em Novembro de 2002, mantendo-o aberto ou apenas fechado no trinco".

Foram ainda estes mesmos RR. condenados no pagamento da quantia de € 25/dia a título de sanção pecuniária compulsória pelo incumprimento da condenação descrita em 4, com absolvição do demais peticionado.

Inconformados, recorreram os 2ºs RR., recurso admitido como apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.

Nas respectivas alegações vêm formuladas as seguintes conclusões delimitadoras do objecto recursivo (art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC):

1 – O A. é dono da nua propriedade do artigo matricial n° 1272 de Pinhel desde 8/10/1971, mas o usufruto que era dos pais só se extinguiu em 6/11/1987.

2 – O pai do A. ali residiu ate morrer em 6/11/87 – Matéria de Excepção alegada nos artigos 30° a 37° da Contestação e nunca posta em causa (por ser a verdade absoluta).

3 – De 6/11/87 a Agosto de 2002 – data em que a Ré fechou o portão – não passaram 15 anos sequer.

4 – Não podiam, pois, os AA. ou seus arrendatários terem passado pelo prédio da Ré por mais de 20 anos se não eram donos do usufruto - La Palice dixit.

5 – Nunca haveria "tempo" para usucapião,

6 – O prédio dos A.A. identificado como o faz o Tribunal é inexistente, pois põe - no a confrontar de Poente com Estrada (entrada) de Nascente com Público (entrada ?) de Norte com os AA. (entrada ?) e de Sul com um tal Micael Matos (?!).

7 – Não consegue também identificar o prédio da Ré embora esta tenha junto documentos autênticos para o efeito – Plantas do Loteamento, da Câmara Municipal.

8 – Por isso, confrontando embora os prédios da Ré e dos AA. ficou uma salsada tal que afinal os AA. têm é direito de servidão sobre outro prédio deles próprios, sobre o público ou sobre o do Micael de Matos .. .

9 – O único sinal visível para "tornar" a servidão aparente é o portão da rua para o prédio da Ré – vide alínea H da matéria assente – e não é definido qualquer sinal entre ambos os prédios ou no prédio da Ré que "indique a passagem".

10 – Ora, o portão da rua para o prédio da Ré é nada mais nada menos que o portão da rua para o prédio da Ré.

11 – Os AA. também não lograram provar que ali teriam passado convictos do exercício de um direito – o animus – último parágrafo de fls. 11 da sentença.

12 - Mas o Tribunal resolveu presumi-lo, quando a fls. 13 da sentença – 6° parágrafo - presumiu a posse de má-fé.

13 - Ou seja: considerou que de má-fé os AA. estavam convencidos do exercício de um direito!

14 – In casu, nem se pode por a questão dos antepossuidores pois que o pai do A. e pai do 1° Réu era dono dos três prédios e só após a sua morte 6/11/87 é que os A.A. reuniram o usufruto à nua propriedade.

15 – Violou ou mal interpretou o Tribunal "a quo" os artigos 1543°, 1547°, 1548°, 1348°, 1287°, 1251°, 1294° a 1297° (antes o 1290°) 1252°, 344°, 1263°, 1260°, 1568° e 1284° do C.C.

16 – A sentença sempre seria nula nos termos do Artigo 668°-l-c) e d) do C.P.C..

Os AA. contra-minutaram, batendo-se pela manutenção do sentenciado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

***

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância e não impugnados por qualquer forma:

1. Os autores são proprietários de uma casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, com a área de 105 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1272.º - alínea A) dos factos assentes;

2. Fazem ainda parte da casa referida em 1. um logradouro com a área de 15 m2 e um cabanal – alínea B) dos factos assentes;

3. A propriedade do prédio referido em 1. adveio aos autores por escritura pública de doação de seus pais, Álvaro Pereira e Lídia Quirino Palha, lavrada no dia 8 de Outubro de 1971 no cartório notarial de Pinhel (fotocópia certificada de escritura de doação de fls.12 da providência cautelar apensa aos presentes autos) – alínea C) dos factos assentes;

4. A doação foi feita por conta da legitíma dos autores (donatários) com reserva de usufruto sucessivo e vitalício dos doadores. (fotocópia certificada de escritura de doação de fls.12 da providência cautelar apensa aos presentes autos) – alínea D) dos factos assentes;

5. O autor A... é irmão do Réu B... e ambos são filhos dos doadores referidos em 3. (certidões de fls. 115 e 116) – alínea E) dos factos assentes;

6. A segunda Ré C... é proprietária do prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e 1º andar destinada a habitação, com a superfície coberta de 195 m2, confrontando a norte com parque, sul com o proprietário, nascente com parque e poente com estrada camarária – alínea F) dos factos assentes;

7. O prédio referido em 6. encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 1306º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Pinhel sob o n.º 01073/200792, e registado a favor da segunda Ré sob a cota C-3 Ap. 01/050894 – alínea G) dos factos assentes;

8. Num dos extremos do prédio referido em F), junto à Rua dos Bombeiros Voluntários (ou Estrada do Vascoveiro) existe um portão a partir do qual se pode aceder ao prédio dos autores referido em 1. – alínea H) dos factos assentes;

9. Os segundos réus fecharam o portão e colocaram umas pedras e uns blocos de cimento no acesso referido em 8. – alínea I) dos factos assentes;

10. Por via dos factos referidos em 9. os autores e os seus inquilinos não podem aceder ao prédio referido em 1. e 2. pelo acesso referido em 8. – alínea J) dos factos assentes;

11. O prédio referido em 1. tem uma entrada com acessibilidade directa para a via pública – alínea L) dos factos assentes;

12. O prédio referido em 1. confronta de nascente com terreno público, poente com Estrada de Vascoveiro, norte com o próprio e sul com Micael de Matos – resposta ao ponto 1 da base instrutória;

13. O prédio referido em 1. confronta de poente com a Estrada Municipal para a qual tem viradas lojas de comércio e entrada – resposta ao ponto 2 da base instrutória;

14. Através de uma das lojas de comércio, a qual se encontra arrendada, os autores têm acesso ao logradouro e cabanal referidos em 2. – resposta ao ponto 3 da base instrutória;

15. O fecho do portão e a colocação das pedras e blocos de cimento referidos em 9 ocorreram em Novembro de 2002 – resposta ao ponto 6 da base instrutória;

16. O portão referido em 9, anteriormente a Novembro de 2002, umas vezes estava aberto e outras estava fechado, apenas ao trinco – resposta ao ponto 7 da base instrutória;

17. Pela entrada referida em 11. apenas podem passar peões – resposta ao ponto 8 da base instrutória;

18. Os autores sempre acederam ao prédio descrito em 1. e 2. pela passagem referida em 8, a qual tem cerca de 3,25 metros de largura – resposta aos pontos 9 e 10 da base instrutória;

19. O que fazem há mais de 20 anos a pé, de carro e de tractor – resposta ao ponto 11 da base instrutória;

20. De forma continuada, pública e sem oposição de ninguém – resposta ao ponto 12 da base instrutória;

21. Os autores têm guardada no cabanal referido em 2 lenha por si utilizada – resposta ao ponto 14 da base instrutória;

22. Os inquilinos dos autores utilizam, desde data não concretamente apurada, a pé ou de carro, a passagem referida em 8 – resposta ao ponto 15 da base instrutória.

*

São por conseguinte quatro as questões do recurso que importa solucionar:

1º - Se a sentença é nula, por força das al.ªs c) e d) do nº 1 do art.º 668 do CPC.

2º - Se decorreu o prazo necessário à usucapião que poderia fundar o reconhecimento da aquisição pelos AA. do direito à servidão de passagem;

3º - Se entre o prédio dos AA. e o prédio da 2ª Ré está suficientemente clarificado o estabelecimento da relação prédio serviente – prédio dominante ou beneficiário da passagem;

4º - Se foi demonstrada a aparência da servidão;

5º - Se era lícito ao tribunal presumir o elemento subjectivo (o animus) na posse dos AA.

1ª Questão: A nulidade da sentença.

Pretendem os apelantes que a sentença padece das nulidades das alíneas c) e d) do nº 1 do art.º 668 do CPC.

No que respeita à nulidade da al.ª c) daquele nº1 do art.º 668 trata-se de vício meramente concernente à estrutura lógico-formal da decisão que não permite que o silogismo incorporado no processo decisório seja apreendido.

Não está aqui coberto o erro de julgamento, pois a oposição entre os fundamentos e a decisão, prevista na norma, não tem que ver com desconformidade da decisão com o quadro legal, a que os apelantes se querem reportar.

No que concerne ao vício da al.ª d), pura e simplesmente, não é apontada qualquer questão cuja pronúncia o tribunal tenha omitido.

Donde a falta de fundamento da conclusão em apreço (16ª).

2ª e 5ª Questões: O prazo para a usucapião e a presunção do animus na posse dos AA.

No que toca à questão do lapso de tempo transcorrido na utilização reiterada pelos Autores da passagem em causa, que a sentença computou em mais de 20 anos e, consequentemente, considerou para a usucapião, ex vi do art.º 1296 do CC, deve observar-se que os apelantes-RR. incorrem desde logo, e salvo o respeito devido, num mal-entendido.

É que a posse de uma servidão não se confunde com a posse do prédio servido, futuro prédio dominante.

Na verdade, diversamente do propugnado pelos apelantes, o prazo para usucapião de uma servidão tem sempre que ser contado desde o início da posse da servidão, mesmo que nessa altura a mesma não fosse titulada de harmonia com o disposto no art.º 1259 nº 1 do CC (nem sequer aí influindo negativamente a falta de título quanto à posse do prédio dominante, designadamente pelo facto de, nessa data, tal possuidor não ter adquirido ainda a respectiva propriedade plena). Com efeito, embora não se conceba a posse de uma servidão sem a posse do prédio dominante, a inexistência de título para a posse deste não impede o início do exercício da posse daquela e a produção dos respectivos efeitos. A falta de título para a posse releva somente para fazer presumir a má-fé do possuidor (art.º 1260, nº 2 do CC) e para aumentar o lapso de tempo necessário à usucapião (art.º 1294 do CC).

Mas para além desta confusão sobre o objecto da posse, não tendo havido impugnação da decisão de facto, vedado está a esta Relação modificar as respostas do tribunal recorrido à base instrutória, nomeadamente as que foram dadas aos nºs 9, 10, 11, 12 e 15 dessa base e que contendem com a matéria de facto que os recorrentes querem ver modificada.

No que respeita à questão da implicação no elemento intelectual da posse dos AA. da respectiva má-fé ( aliás, meramente presumida pela falta de título, nos termos do nº 2 do art.º 1260 do CC, como correctamente, de resto, se discorre na sentença), também as conclusões atinentes (11ª a 14ª) não podem, de maneira alguma, colher.

É que se correcta fosse a tese - proposta pelos recorrentes - de que a má-fé do possuidor seria incompatível com a convicção do exercício do direito correspondente, nunca poderia haver (e indiscutivelmente há: cfr. os art.ºs 1294, 1295, 1296, 1298 e 1299 do CC) usucapião sustentada em posse de má-fé.

A presunção – ilidível - de que o simples detentor ou exercente do poder de facto actua com o animus possidendi – art.º 1252, nº 2 do CC - não depende da respectiva boa-fé, presumida ou mesmo efectiva. Aquele elemento subjectivo corresponde à intenção de actuar como titular do direito correspondente, a qual pode naturalmente coexistir com a não ignorância, quando se adquiriu a posse, de que estava a ser lesado o direito de outrem (art.º 1260, nº 1 do Código).

3ª Questão: A relação entre o prédio dos AA. e o prédio da 2ª Ré-ora apelante.

Tendo presente o princípio da tipicidade que domina os direitos reais, a formulação pelos Autores, em primeira linha, do pedido de reconhecimento do direito de passagem de pessoas e viaturas pelo acesso a que se reportam deve - forçosamente - ser interpretada na acepção de um pedido declarativo de uma servidão, ou seja, de um dos chamados iura in re aliena.

Dispõe-se no art. º 1543 do Código Civil que servidão é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente.

Em aplicação da regra de que o autor deve carrear para a acção todos os elementos constitutivos do direito a que se arroga (art.ºs 264, nº 1 e 467, nº 1, al.ª d) do CPC), o interessado no reconhecimento do direito a uma servidão de passagem não só deve identificar o posicionamento relativo dos prédios dominante e serviente, evidenciando o encargo para este e o correspectivo benefício para aquele, como também o local e a extensão da pretensa servidão.

Para que o encargo da servidão possa ser efectivo deve o proprietário onerado conhecer exactamente onde física e concretamente ele começa e acaba, recaindo sobre o autor o ónus de, com o mínimo de clareza, fornecer esses dados ao processo, sob pena do seu direito não poder ser declarado. É o que se pressupõe no art.º 1564 - como igualmente no art.º 1568 - do CC, quando aí se manda atender ao título para a regulação da extensão e exercício da servidão. Coisa diversa é a a insuficiência do título, problema que é posto na parte final da norma e resolvido nos preceitos subsequentes, mas que obviamente se não coloca perante as servidões constituídas com base em usucapião.

Se o autor não consegue convencer o tribunal da ligação entre determinados prédios, o serviente e o servido, a servidão não pode ser declarada. É pois essencial que, tratando-se de servidão de passagem, se prove que a passagem se desenvolve no sentido do prédio que vai ser servido, assim se formando a utilidade pressuposta pelo direito de servidão. Ora, até neste ponto a acção é deficitária da correspondente matéria porquanto nela não se consegue perceber se e onde o prédio dos AA. (beneficiário da passagem) confronta com o prédio da Ré-apelante (em que se situaria a pretensa passagem). A escassa materialidade plasmada nos factos apurados reveste carácter perfeitamente anódino, uma vez que está confinada ao provado em 8 - segundo o qual " Num dos extremos do prédio referido em F), junto à Rua dos Bombeiros Voluntários (ou Estrada do Vascoveiro") existe um portão a partir do qual se pode aceder ao prédio dos autores referido em 1" – e 18 - segundo qual " Os autores sempre acederam ao prédio ao prédio descrito em 1 e 2 pela passagem referida em 8 …".

Com efeito nem sequer se provou – ou mesmo alegou (inclusivamente após o convite oportunamente feito aos AA. para o aperfeiçoamento da petição) - em que extremo do prédio da apelante-Ré se situava o portão e se a passagem se estendia ou não ao longo desse extremo ou em qualquer outra direcção.

E – cumpre desde já adiantar – tal não podia deixar de suceder. É que sendo a usucapião um título constitutivo não formal da servidão (ao invés do contrato ou do testamento), a omissão da menção de sinais visíveis que físicamente indicassem o local da passagem entre os prédios só podia dar lugar a uma completa indefinição da concreta extensão e implantação desse local.

Pelo que são inteiramente procedentes as conclusões 6ª, 7ª, 8ª e 9ª da apelação.

4ª Questão: Sobre a natureza do título constitutivo da servidão e o respectivo condicionalismo.

Apesar de irremediavelmente comprometido o êxito da acção pelo que dito fica acerca da insuficiência do suporte substantivo do pedido principal, não se deixará sem análise crítica esta outra questão, levantada nas conclusões 9ª e 10ª do recurso, pela circunstância de intimamente se prender com a anteriormente versada.

No nº 1 do art.º 1547 da lei civil diz-se que as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.

Estamos, pois, nesta acção, diante da configuração de uma servidão de passagem.

A fonte da referida servidão, o modo da sua aquisição de que os AA. intentam lançar mão, é a usucapião, com base na posse descrita nos art.ºs 22 a 29 da p.i..

No que respeita à usucapião, o art.º 1548 do CC (tal como o art.º 1293, al.ª a)) prescreve que as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião (nº 1) e que se consideram não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (nº 2).

Entendem os Réus-apelantes que "O único sinal visível para «tornar» a servidão aparente é o portão da rua para o prédio da Ré – vide alínea H da Matéria Assente e não é definido qualquer sinal entre ambos os prédios ou no prédio da «indique a passagem»".

Vejamos.

Na petição reclama-se o reconhecimento do direito dos AA. passarem com pessoas e viaturas por um certo acesso ao cabanal e logradouro do seu prédio, acesso esse que de algum jeito procuram identificar nos art.ºs 16 e 17 respectivos.

No articulado havia sido efectivamente afirmado que tal acesso "é feito (…) através de uma passagem com cerca de 3-4 metros de largura, com entrada pela Rua dos Bombeiros Voluntários (ou Estrada de Vascoveiro) (…) a qual se desenvolve junto a um dos extremos do prédio urbano composto de casa de rés do chão e 1° andar destinada a habitação, até atingir os ditos logradouro e cabanal". Mais afirmam os AA. – vide os art.ºs 28 e 29 da mesma peça processual – que "(…) jamais a passagem por aquele acesso foi proibida ou limitada por quem quer que fosse (…) a tanto também não obstando a existência de um portão na entrada da mesma, junto à Rua dos Bombeiros Voluntários, uma vez que este se encontrava sempre aberto". No entanto, estranhamente, esta mesma formulação inequivocamente negativa"também não obstando" – viria a ser substituída na alínea H da matéria assente por um juízo positivo, e portanto de sentido oposto, sobre o efeito do mencionado portão - mediante o esclarecimento complementar "a partir do qual se pode aceder ao prédio dos AA.".

Quer dizer, aquilo que os AA. consideravam não um elemento caracterizador da pretensa passagem mas um mero factor potencialmente impeditivo e virtualmente obstaculizante da posse, foi definitivamente transformado em sinal identificativo da proclamada passagem. E, assim, se nem os próprios Autores ousaram imputar ao falado portão a natureza de sinal da servidão que reclamam – seguramente por darem de barato que se tratava de um mero portão de entrada da via pública para o prédio urbano da 2ª Ré-ora apelante – não faria sentido que o tribunal viesse a prevalecer-se dessa mesma natureza.

Mas a sentença impugnada parece até ter abdicado por inteiro dos sinais da servidão, como se colhe do teor explicativo contido na única alusão a tal requisito: "Tal passagem, com cerca de 3,25 metros de largura, permitindo aos autores e seus inquilinos aceder ao prédio de que são proprietários, o que aqueles primeiros sempre fizeram, bem como os segundos desde data não concretamente apurada, consubstancia sem qualquer dúvida a existência de um sinal visível de que ali é exercida uma servidão". Ou seja, imputa o sinal visível da servidão ao puro facto de se encontrar assegurado que havia sido criada uma passagem com 3,25 metros de largura num dos extremos do prédio da 2ª Ré.

Importa averiguar o que o legislador quis significar com a exigência dos sinais visíveis e permanentes.

A razão de ser da limitação da aquisição das servidões por usucapião às servidões com sinais visíveis e permanentes é exemplarmente dilucidada por Pires de Lima e Antunes Varela na anotação 2ª ao artigo 1548 do Código: "… continua a entender-se que se torna as mais das vezes difícil distinguir entre as servidões não aparentes e os actos de mera tolerância, consentidos «jure familiaritatis», que não reflectem uma relação possessória capaz de conduzir à usucapião (cfr. D., 41, 2, 41)….Não havendo sinais visíveis e permanentes reveladores da servidão, sendo esta porventura exercida só clandestinamente, a atitude passiva do proprietário pode ser apenas devida à ignorância da prática dos actos constitutivos da servidão".

Ora, na situação descrita na factualidade provada facilmente se constata que tendo ambos os prédios - isto é, o do art.º 1272 de que são donos os AA., e o do artigo 1306 de que é dona a 2ª Ré - pertencido ao mesmo proprietário antes de este os doar a diferentes filhos, a passagem através de um deles pelo possuidor do prédio adjacente teve na sua origem a simples conveniência ou facilidade adveniente dessa circunstância, sem que com isso se buscasse – nem mesmo no plano objectivo - qualquer consolidação de uma específica e segura relação possessória a favor do respectivo utilizador. O substrato fáctico natural, a causa de pedir mais conforme a esta última realidade, seria a que se manifestaria na destinação do pai de família, desde que tivesse ocorrido implantação de sinais de serventia no momento da separação do domínio, nos termos do art.º 1549 do CC.

Todavia – certamente porque não foi isso que se passou - não foi esse o caminho escrutinado pelos AA. para a substanciação da causa de pedir.

Seja como for, não estando excluída a possibilidade de imposição de servidões de passagem sobre os prédios urbanos, tais servidões, quando baseadas, como é o caso, na posse conducente à usucapião, sempre têm de se revelar de modo inequívoco, por sinais visíveis e permanentes existentes em ambos os prédios ou, pelo menos, no prédio onerado que confirmem ou atestem o uso em favor do prédio beneficiário. E dizemos de modo inequívoco porquanto, quando se está perante um prédio urbano, a regra de que se deve partir é a de que as obras visíveis apenas se destinam à funcionalidade ou conforto do próprio prédio onde se integram. A maior exigência do carácter inequívoco dos sinais instalados nos prédios urbanos e, para o que ora interessa, dos sinais de passagem para outro prédio com diferente proprietário, corresponde à natural dificuldade em deduzir com necessária certeza a sua instrumentalização para o acesso a esse outro prédio (representando este, virtualmente, o prédio beneficiário ou dominante).

No caso dos autos é mesmo incontroverso – como se viu, de certa forma, até são os próprios Autores a admiti-lo – que o portão aludido na factualidade provada é o portão que fisicamente resguarda a entrada para o prédio da a partir da via pública (Rua dos Bombeiros Voluntários).

Por conseguinte, nenhum sinal visível e permanente se vislumbra no enunciado fáctico que permita, através de posse usucapível exercida pelos Autores, a génese da almejada servidão de passagem em benefício do prédio urbano destes, correspondente ao artigo 1272 da matriz respectiva.

Pelo que inviabilizada se mostrava a declaração da constituição de uma servidão de passagem em benefício do referido prédio dos AA., com fundamento em usucapião, nos termos realizados na sentença em apreço.

Procede, por consequência, o concluído em 9º e 10º das alegações dos apelantes.

Não havendo facto ilícito praticado pelos RR., ficam sem alicerce todos os pedidos dependentes, nomeadamente os relativos à reposição da passagem e à sanção pecuniária compulsória.

Pelo exposto, julgando procedente a apelação, revogam a sentença, absolvendo os RR. de todos os pedidos formulados.

Custas pelos AA.