Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
341/03.5TATNV-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
SUSPENSÃO DA PENA
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA.
Legislação Nacional: ARTIGOS 371.º-A DO C.P.P.; E 2.º, N.º 4 E 50.º, N.º 5 DO C.P..
Sumário: I. - Da harmonização dos arts. 2º, nº 4 do C. Penal e 371º-A do C. Processo Penal – resulta que:
- Se a parte da pena aplicada na sentença transitada e já cumprida, ultrapassa o limite máximo da pena prevista na lei nova, deve o tribunal da condenação, oficiosamente, declarar a imediata cessação da execução da pena e dos seus efeitos;
- Nos demais casos, sempre que a lei penal mais favorável não tenha determinado a cessação da execução da pena, há lugar ao funcionamento do disposto no art. 371º-A, do C. Processo Penal, cabendo a iniciativa ao condenado, desde que verificados os demais pressupostos.
II. – Não resultando a fixação do prazo de suspensão da execução de uma pena de prisão de um capricho ou de um cálculo aleatório efectuado pelo tribunal de condenação, por ser resultante da análise global dos elementos disponíveis relevantes e que conduziram aquele tribunal à formulação da prognose favorável que constitui a base do instituto da suspensão da execução da pena de prisão a ponderação da aplicação do regime mais favorável não pode passar apenas pela singela operação de comparação entre a pena aplicada e a que resulta do novo regime.
III. – Importará sempre que o tribunal averigúe, em concreto, e em audiência reaberta para o efeito, se a pena deverá ser suspensa na sua execução pelo período da pena de prisão, como prescreve a lei nova, ou de acordo com os critérios legais, haverá que optar pela pena suspensa, com as mesmas condicionantes, pela pena suspensa com outras condicionantes, ou mesmo optar por outra pena de substituição.
Decisão Texto Integral: 8

I. RELATÓRIO
No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Torres Novas, as arguidas … e …, com os demais sinais nos autos, por acórdão de 3 de Agosto de 2005, já transitado, foram condenadas, a primeira, como autora material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena, especialmente atenuada, de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos sujeita a regime de prova, à não frequência de locais suspeitos de consumo e tráfico de droga e ao exercício de trabalho remunerado regular, e a segunda, como autora material de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, a), do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, condicionada às mesmas circunstâncias.
Em 8 de Fevereiro de 2008 (fls. 181 a 184 do recurso) a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância promoveu que, atento o disposto no art. 2º, nº 4, do C. Penal, na redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, fosse proferida decisão a adequar o período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida …, declarando-se reduzido o período de três anos fixado na sentença para o período de um ano e seis meses de prisão, correspondente à prisão aplicada.
A 18 de Fevereiro de 2008 o Mmo. Juiz proferiu o seguinte despacho, que se transcreve:
“ (…).
Fls. 3.182 a 3.184: Vem o Ministério Público, no requerimento que juntou aos autos, solicitar a reabertura da audiência de julgamento nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei nº 48/2007, de 29-8, de forma a que seja proferida nova sentença que aplique o regime da suspensão da pena de prisão aplicada à arguida … nos presentes autos, que se encontra previsto no artigo 50º, nº 5, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007, de 4-9.
Pretende assim o Ministério Público, nessa nova sentença a proferir que seja reduzido o prazo de 3 anos da suspensão da pena de prisão, que foi determinado nos autos, para o de 1 ano e 6 meses, que corresponderá à pena de prisão que foi aqui aplicada à arguida …. Sustenta esta pretensão no facto da nova redacção daquele artigo 50º, nº 5, do Código Penal, introduzida pela Lei nº 59/2007, ser mais favorável ao arguido, que a redacção anterior.
Contudo, determina aquele artigo 370º-A, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida por aquela Lei nº 48/2007, que: Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.
Resulta assim da redacção desta norma que a possibilidade de solicitar a reabertura da audiência de julgamento para que o Tribunal aplique o regime mais favorável que tenha entrado em vigor depois de ter sido efectuado o julgamento, de ter sido proferida sentença, e desta ter transitado em julgado, encontra-se reservada em exclusivo ao arguido condenado. Consequentemente, o pedido de reabertura da audiência consiste numa faculdade que lhe está reservada em exclusivo, podendo ele optar pela sua dedução ou não, e só ele tem legitimidade para o vir apresentar.
Verifica-se assim que qualquer outro sujeito processual, designadamente o Ministério Público não tem legitimidade, nem a faculdade de vir pedir a reabertura da audiência de julgamento para efeito de aplicação do regime que se mostre mais favorável, e para a alteração da decisão final proferida nos autos, ainda que já transitada em julgado.
Por outro lado, e da análise do disposto na Lei não se vislumbra que o Juiz possa ordenar a reabertura da audiência de forma oficiosa. Na verdade, o artigo 2º, nº 4, do Código Penal, não pode ser interpretado de forma isolada conforme faz o Ministério Público. Terá sim o mesmo de ser interpretado em conjugação com o artigo 371º-A, do Código de Processo Penal. Consequentemente, se já foi proferida sentença nos autos e a mesma já transitou em julgado, apenas será possível aplicar uma lei que tenha entrado em vigor posteriormente e se mostre mais favorável ao arguido, caso sejam reunidas as condições previstas no artigo 371º-A, do Código de Processo Penal. Caso não estejam reunidas as condições desta última norma, o Tribunal não poderá aplicar ao arguido essa nova Lei que se mostre mais favorável ao mesmo, nos termos do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, na medida em que tem de respeitar o caso julgado.
Em conformidade, respeitamos a interpretação que o Ministério Público faz da Lei, mas manifestamente não a subscrevemos. Logo consideramos que legalmente o Juiz não pode oficiosamente ordenar a reabertura da audiência para aplicar ao arguido a Lei que tenha entretanto entrado em vigor e se mostre mais favorável, se a decisão proferida no processo já transitou em julgado, como acontece no caso concreto.
Consequentemente, e por todo o exposto indefere-se o pedido do Ministério Público para ser reaberta a audiência de julgamento nos presentes autos, nos termos do artigo 371º-A, do Código de processo Penal, e ser proferida nova sentença com as alterações por si indicadas, na medida em que ele não tem legitimidade para o fazer.
Notifique.
Por outro lado, resulta do relatório de acompanhamento da arguida … elaborado pela DGRS, e junto a fls. 3.189 e 3.180, que a mesma não tem vindo culposamente a cumprir parcialmente o plano de readaptação que lhe foi imposto nos presentes autos com condição para a suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada. Designadamente, a arguida não tem comparecido de forma regular às entrevistas que lhe são marcadas pela DGRS. Além disso, tem mantido uma atitude de falta de colaboração e interesse, não obstante as advertências que lhe foram feitas, revelando ausência de interiorização da medida a que se encontra sujeita.
Tendo em conta este incumprimento parcial culposo dos deveres constantes do plano de readaptação por parte da arguida, verifica-se estarem reunidos os requisitos para aplicar ao caso concreto o disposto no artigo 55º, do Código Penal, designadamente as medidas previstas nas alíneas a) e b), desse artigo 55º, nº 1, ou seja uma solene advertência e a exigência de garantias de cumprimento pontual do plano e das regras nele contidas.
Deste modo, irá designar-se data para o arguido comparecer neste Tribunal para se aplicar as referidas medidas. Para além disso, nessa ocasião deverá ainda o arguido ser ouvido sobre o seu incumprimento parcial do plano de readaptação, a fim de justificar essa omissão, nos termos do nº 2, do artigo 495º, do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 48/2007.
Tendo em conta o disposto na mesma norma deverá igualmente ser convocada para estar presente nessa diligência de audição da arguida, a técnica da DGRS que tem procedido ao acompanhamento da aplicação do plano de readaptação ao mesmo.
Para a aplicação destas medidas e para a audição da arguida L… em relação àquele incumprimento, designa-se o próximo dia 5 de Março de 2008, pelas 11 horas.
Notifique a arguida, o seu defensor, a técnica da DGRS que tem efectuado o acompanhamento do plano e o Ministério Público. O arguido deverá ser notificado por carta registada.
(…)”.
Inconformada com a decisão dela recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1.ª – A norma do n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, é mais favorável ao condenado se dela resultar um período de suspensão mais curto.
2.ª – A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao condenado, mesmo no caso de haver condenação transitada em julgado, decorre actualmente dos artigos 29.º, n.º 4, in fine da Constituição da República Portuguesa e 2.º, n.º 4 do Código Penal, na redacção conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
3.ª – O Ministério Público, enquanto garante da legalidade democrática e da igualdade dos cidadãos perante a lei, tem legitimidade para requerer a aplicação do regime penal mais favorável ao condenado, ao abrigo dos artigos 219.º, n.º 1 da CRP, 1.º do EMP e 5.º, n.º 1 da LOFTJ.
4.ª – O artigo 371.º-A do CPP, introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto não constitui obstáculo quer à apreciação oficiosa, quer à aplicação a requerimento do Ministério Público, do regime mais favorável ao condenado, podendo mesmo a sua aplicabilidade imediata aos processos iniciados anteriormente à sua vigência ser afastada por recurso ao disposto no artigo 5.º, maxime n.º 2, alínea a) do CPP.
5.ª – Ao negar legitimidade ao Ministério Público para requerer a aplicação ao condenado do regime penal mais favorável, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 50.º, n.º 5 e 2.º, n.º 4 do CP, 29.º, n.º 4, in fine, 13.º, 18.º, n.º 2, 219.º, n.º 1 da CRP, 1.º do EMP e 5.º, n.º 1 da LOFTJ.
6.ª – Inexistindo qualquer elemento de facto relevante para a prolação de decisão – em benefício do condenado – no sentido de adequar o período de duração da suspensão de execução da pena de prisão ao vertido no n.º 5 do artigo 50.º do CP ex vi artigo 2.º, n.º 4 do mesmo Código, que não conste já da sentença condenatória, reabrir a audiência revelar-se-ia acto inútil em face do teor do artigo 369.º, n.º 2 ex vi artigo 371.º, ambos do CPP.
7.ª – Pelo exposto, deverá esse Venerando Tribunal proferir decisão em que determine a redução do prazo de suspensão da execução da pena de prisão de 3 anos para 1 ano e 6 meses, por ser o correspondente à pena de prisão aplicada, de harmonia com o artigo 50.º, n.º 5 ex vi artigo 2.º, n.º 4 do CP.
8.ª – Caso V.ªs Ex.ªs assim não o entendam, deverá esse Venerando Tribunal revogar o despacho recorrido e ordenar a sua substituição por outro que, dê cumprimento ao preceituado no artigo 50.º, n.º 5 do CP ex vi artigo 2.º, n.º 4 do mesmo diploma reduzindo oficiosamente o período de suspensão de execução da pena de 3 anos para 1 ano e 6 meses e consequentemente determine a junção aos autos do C.R.C. da arguida e de informação sobre a existência de processos pendentes contra a mesma em ordem a declarar a eventual extinção da pena.
(…)”.
O Mmo. Juiz recorrido sustentou o seu despacho.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando a argumentação da Digna Magistrada recorrente, se pronunciou pelo provimento do recurso.
Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido a condenada … concluindo, em síntese, que a aplicação da Lei Nova é a que a favorece por o prazo de suspensão da execução da pena não poder ultrapassar um ano e seis meses, que perfilha o entendimento da Digna Magistrada recorrente quanto á necessidade de ser revisto o prazo de suspensão da pena, fazendo-se com a sua alteração, Justiça.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna magistrada recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o Ministério Público, face à alteração da lei penal, tem ou não legitimidade para requerer a aplicação da Lei Nova, no pressuposto de que a mesma é mais favorável ao condenado, nos casos de sentença já transitada em julgado.
1. Dispõe o nº 4 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
Dando execução a este imperativo constitucional, o art. 2º, nº 2, do C. Penal, regendo para os casos de descriminalização, estabelece que, o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
Já no que respeita à aplicação retroactiva da lei nova mais favorável, rege o nº 4 do mesmo artigo que, na sua primitiva redacção estabelece que, quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.
Esta ressalva final que, estabelecendo a intangibilidade do caso julgado, tornava a lei ordinária mais restritiva do que o texto constitucional, deu azo a críticas doutrinárias e jurisprudenciais. Assim, pronunciaram-se pela prevalência da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao caso julgado, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, 4ª Edição Revista, 496), e pronunciaram-se pela inconstitucionalidade da ressalva os Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 330), e o Prof. Taipa de Carvalho (Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, PUC, 2003, 239 e ss.). Já o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, 189 e ss., se pronunciou em sentido oposto. E também o Tribunal Constitucional (Ac. nº 169/2002, de 17/04/2002, DR II, de 16 de Maio de 2002) se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade do nº 4 do art. 2º do C. Penal, mas não em toda a sua extensão.
Na Proposta de Lei nº 98/X, que deu origem à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, no segmento da Exposição de Motivos, ponto 3 lê-se, «No Título I da Parte Geral, referente à lei penal, reforça-se a aplicação retroactiva da lei mais favorável, em cumprimento do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição. Assim, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessarão a execução e os efeitos penais quando o arguido já tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei posterior (artigo 2.º, n.º 4). Esta solução é materialmente análoga à contemplada no nº 2 do artigo 2.º para a hipótese de a lei nova descriminadora ou despenalizante e a sua efectivação prescinde de uma reponderação da responsabilidade do agente do crime à luz do novo regime sancionatório mais favorável.».
Com o propósito de por termo à questão, a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, alterou o preceito, dispondo agora o nº 4, do art. 2º, do C. Penal que, quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.
A sucessão de leis penais determinou portanto, duas alterações sensíveis. A primeira consiste na eliminação do segmento, «salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado» constante da primitiva redacção, sendo agora claro que o caso julgado não constitui óbice à aplicação da lei penal mais favorável.
A segunda consiste no aditamento da segunda parte da actual redacção isto é, do segmento, «se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.». Aqui, o legislador prevê expressamente uma situação em que a lei nova é, em qualquer caso, mais favorável ao condenado.
2. A alteração da lei penal determinou a adequação da lei processual penal ao novo regime instituído, tanto mais que este, como acabámos de ver, apenas previu uma situação em que é patente ser a lei penal nova mais favorável e para a qual estabeleceu, sem mais, a cessação da execução da pena.
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X, que deu origem à Lei nº 48/2008, de 29 de Agosto a qual, como é sabido, corporiza a mais recente reforma do C. Processo Penal, a respeito da harmonização da lei processual com o novo regime substantivo da aplicação da lei penal mais favorável escreveu-se que, «Por fim prescreve-se a abertura de audiência para aplicar novo regime mais favorável ao condenado sempre que a lei penal mais favorável não tenha determinado a cessação da execução da pena (art. 271º-A). Esta solução é preferível à utilização espúria do recurso extraordinário de revisão ou à subversão dos critérios de competência funcional (que resultaria da atribuição de competência para julgar segundo a nova lei ao tribunal de execução de penas).».
Vindo a Lei nº 48/2008, de 29 de Agosto, a aditar ao C. Processo Penal o art. 371º-A, com a seguinte redacção:
Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”.
São, portanto, pressupostos de aplicação da norma em questão:
- A existência de uma sentença condenatória transitada em julgado;
- A existência de uma pena em execução [fica limitada a sua aplicação aos casos em que ainda pode ser atenuada ou eliminada a compressão de direitos];
- O impulso processual do condenado [com a excepção que já deixamos anotada, relativa à parte final do nº 4, do art. 2º, do C. Penal, na redacção actual, o legislador optou por deixar nas mãos do condenado a avaliação sobre se a lei penal nova lhe é, ou não, mais favorável];
- A verificação de uma sucessão de leis penais, e a possibilidade de a aplicação da lei penal nova trazer ao condenado um benefício.
3. Da harmonização dos dois preceitos legais – arts. 2º, nº 4, do C. Penal e 371º-A, do C. Processo Penal – resulta que:
- Se a parte da pena aplicada na sentença transitada e já cumprida, ultrapassa o limite máximo da pena prevista na lei nova, deve o tribunal da condenação, oficiosamente, declarar a imediata cessação da execução da pena e dos seus efeitos;
- Nos demais casos portanto, sempre que a lei penal mais favorável não tenha determinado a cessação da execução da pena, há lugar ao funcionamento do disposto no art. 371º-A, do C. Processo Penal, cabendo a iniciativa ao condenado, e desde que verificados os demais pressupostos.
Não ignoramos o entendimento que vem sendo seguido segundo o qual, quando o regime mais favorável resulta automaticamente da lei nova, não dependendo por isso, de qualquer juízo de ponderação por parte do julgador, a sua aplicação pode ser feita por mero despacho, sem necessidade de recorrer à reabertura da audiência de julgamento.
E em tese, nada temos a obstar a que a solução expressamente prevista para os casos em que se impõe a declaração imediata da cessação da execução da pena, seja alargada a todos os outros em que seja inequívoca e objectiva a qualidade de concretamente mais favorável da lei penal nova.
Questão diferente é no entanto, a de saber se nessa situação se encontra a em apreço no presente recurso.
Revertamos pois para a questão sub judice.
4. Como ponto prévio, começaremos por dizer que, como nota a Digna Magistrada recorrente, não requereu a mesma a reabertura da audiência de julgamento para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, pois entende que «a prolação da decisão de adequação da duração do período de suspensão ao vertido no actual nº 5 do artigo 50º do CP ex vi artigo 2º, nº 4, do CP – única questão ora em causa – não claudica qualquer elemento de facto – uma vez que a decisão de substituir a pena de prisão aplicada pela suspensão da mesma e o juízo de prognose favorável ao arguido ínsito nessa decisão não é retractável, na medida em que se encontra a coberto do caso julgado penal (…)».
Posto isto.
A arguida … foi condenada, por acórdão de 3 de Agosto de 2005, transitado a 10 de Janeiro de 2006 (fls. 21 dos autos), como autora material de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, a), do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, sujeita a regime de prova e condicionada à não frequência de locais suspeitos de consumo e tráfico de droga e ao exercício de trabalho remunerado regular.
Na data em que foi proferida a decisão condenatória, e relativamente à suspensão da execução da pena de prisão, o nº 5, do art. 50º, do C. Penal dispunha que, o período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.
Com a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o preceito passou a ter a seguinte redacção:
O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.”.
Na determinação do que seja exactamente o regime concretamente mais favorável ao agente «deve aceitar-se que o juízo complexivo de maior ou menor favor não deve resultar apenas, em princípio, da contemplação isolada de um elemento do tipo legal ou da sanção, mas da totalidade do regime a que o caso se submete. Como seguro é que o sopeso da gravidade dos dois regimes não pode fazer-se só na consideração abstracta da lei, mas tem de ser feito depois de conexionada aquela consideração com as circunstâncias concretas do caso.» (Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, 191).
Pois bem, a fixação do prazo de suspensão da execução da pena de prisão imposta à arguida … não resulta de um capricho ou de um cálculo aleatório efectuado pelo tribunal colectivo que a condenou. O prazo encontrado resultou também da análise global dos elementos disponíveis relevantes e que conduziram aquele tribunal à formulação da prognose favorável ou seja, na base da fixação do prazo estavam as razões de prevenção especial de socialização que, como é sabido, constituem a base do instituto da suspensão da execução da pena de prisão.
Por isso, o confronto dos dois regimes que se sucederam não pode passar apenas pela singela operação de comparação entre uma pena e 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sujeita a regime de prova e condicionada à observância de determinadas regras de conduta, e uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses, sujeita também a regime de prova e às mesmas condições pois o prazo da suspensão e as condições estabelecidas são apenas alguns dos elementos a considerar. Se assim fosse estaríamos a fragmentar os dois regimes legais que se sucederam, atendendo exclusivamente aos prazos da suspensão, para depois se concluir que a última pena, em abstracto, é mais favorável.
Porém, posto que a pena de prisão ficará em qualquer caso, suspensa na sua execução, o que se impõe averiguar é se o tribunal da condenação, colocado perante a lei nova – em que o período de suspensão da pena de prisão, corresponde à duração desta, sem poder ser inferior a um ano – teria, de acordo com os critérios legais, optado pela pena suspensa, com as mesmas condicionantes, optado pela pena suspensa com outras condicionantes, ou teria mesmo optado por outra pena de substituição.
Só depois de feita esta operação, é que o tribunal estaria em condições de efectuar, em concreto, a comparação de regimes e verificar qual deles é o mais favorável.
Por outro lado, muito embora não seja a situação dos autos [a recorrida veio manifestar o seu apoio à iniciativa do Ministério Público], casos há em que apenas o condenado sabe se lhe convém ou não o novo regime por este, efectivamente, o favorecer, o que desaconselha que o Ministério Público o substitua nesse juízo.
Assim, e citando o Acórdão desta Relação de 24/09/2008 (Proc. nº 256/03.7GBTNV, in http://www.dgsi.pt), que se debruçou sobre questão idêntica, «o juízo sobre qual dos regimes é em concreto o mais favorável para o condenado não prescinde duma prévia reavaliação das condições impostas à suspensão, pelo que a sua aplicação em abstracto, como pretende o recorrente, violaria o preceito por si invocado, a saber, o art.º 2º/4 do Código Penal no qual se faz apela a ponderação em concreto e não em abstracto. Fazê-lo sem a reavaliação dessas condicionantes seria não acatar o preceito.».
Em conclusão, improcede o recurso.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, e em consequência, confirmam o despacho recorrido.