Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
256/05.2GCAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Data do Acordão: 06/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 152º, N.º 2, DO C. PENAL
Sumário: I- No tipo do ilícito previsto no art.º 152º, n.º 2, do CP se ubicam uma pluralidade de bens jurídicos como sejam as ameaças, as coacções, as agressões, as injúrias.

II- Trata-se de um crime de maus tratos físicos ou psíquicos, o que afasta as meras ofensas à integridade física. Necessário se torna, pois, que se reitere o comportamento, em determinado período de tempo, admitindo-se que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças do acto de molestar o cônjuge ou equiparado.

III- Tal crime basta-se com a consolidação no estado vivencial da vítima de um estado de compressão na sua liberdade pessoal e de um apoucamento da dignidade que a um qualquer ser humano é devida.

Decisão Texto Integral: Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

I. – Relatório.
Desavindo com a decisão prolatada no processo supra identificado, que na procedência da acusação do produzida pelo Ministério Público contra o arguido, A... , com os sinais identificadores constantes de fls. 62, o condenou, como autor material, na forma consumada, de 1 (um) crime de maus tratos e infracção de regras de segurança, previsto e punido no artigo 152º, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal na pena de 14 (catorze) meses de prisão, cuja execução lhe viria a ser suspensa pelo período de 2 (dois) anos, ao abrigo do disposto no artigo 50º,do Código Penal; e ainda:
(Relativamente à parte cível) a pagar à demandante B... , a quantia € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais; e a pagar ao demandante “Hospital C... ”, a quantia € 50,30 (cinquenta euros e trinta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal vencidos desde o dia 25-12-2005, e vincendos até integral pagamento, recorre o arguido, tendo despedido a motivação com a sequente síntese conclusiva:
«A) O presente recurso tem como fundamento a discordância do arguido quanto à qualificação jurídica dos comportamentos que lhe vinham imputados – e pelos quais, aliás, acabou condenado -, a medida concreta da pena que lhe foi aplicada, designadamente, o período de suspensão que lhe foi determinado e o montante indemnizatório que foi arbitrado pelo Tribunal recorrido.
B) O arguido entende que os factos que fundamentaram a respectiva acusação eram insuficientes para lhe imputar o crime consignado no artigo 152.º, n.º 2 do Código Penal,
C) Entende que os factos que foram dados como provados pelo Tribunal recorrido são insuficientes para o condenar pela prática do crime de maus tratos e infracção de regras de segurança,
D) Entende que o Tribunal recorrido deveria tê-lo absolvido da acusação que foi formulada contra si em Novembro de 2005 ou, pelo menos, alterado a qualificação jurídica dos mesmos.
E) Considera que em sede de inquérito e em sede de audiência de discussão e julgamento apenas resultaram provados – quando muito – factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de ofensas à integridade simples, previsto e punido no artigo 143.º do Código Penal,
F) Que não resultou demonstrada a reiteração e habitualidade dos comportamentos imputados ao arguido pela acusação e necessários à sua condenação pelo crime que se encontra consignado no artigo 152.º, n.º 2 do Código Penal,
G) Entende que o Ministério Público nem sequer deveria ter deduzido acusação J} por comportamentos anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio,
H) Que o Tribunal recorrido nunca o deveria ter condenado por esses comportamentos;
I) Que ao fazê-lo o Ministério Público agiu sem legitimidade uma vez que na altura em que foram praticados esses comportamentos o respectivo crime era de natureza semi-pública e carecia de queixa do ofendido,
J) E que o Tribunal recorrido ao proferir semelhante condenação violou o princípio da irretroactividade da Lei Penal.
K) O arguido considera excessivo o período de suspensão de execução da respectiva pena de prisão na medida em que todos os pressupostos consignados para o efeito no artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal se encontram reunidos, lhe são favoráveis, se encontra em marcha a respectiva partilha de bens e vai deixar de viver na mesma casa que a ofendida a muito breve trecho.
L) Considera ainda excessivo o valor da indemnização em que acabou condenado a título de indemnização por danos morais.
M) Saliente-se que o arguido tem uma situação económica bastante deficitária e que a precariedade da mesma ficou demonstrada em sede de audiência de discussão e julgamento.
Nestes termos,
E nos mais de Direito que V.Ex.ª(s) douta e superiormente suprirão, deve o presente . recurso ser considerado provido, com todas as consequências legais. E o recorrente . dispensado – por agora – do pagamento da respectiva taxa de justiça na medida em . que requereu oportunamente o beneficio da protecção jurídica nas modalidades de apoio judiciário consignadas no artigo 16.º, n.º 1, alíneas a) e e) da Lei n.º 34/2004, de . 29 de Julho».
Na comarca o Ministério Público alentou resposta de que se respinga o sequente extracto:
[…]
IV- Ora, dispõe o art. 152º do Cód. Penal que quem infligir ao cônjuge (…) maus tratos físicos ou psíquicos (nº 2) é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Tal normativo penaliza a violência doméstica e/ou familiar, a qual consiste, segundo a definição apresentada pelo Conselho da Europa, no «acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade I de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade» {Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, BMJ 335-5).
Ou seja, qualquer conduta que, por acção, ou omissão, inflija, reiteradamente, sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicas, de modo directo ou indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou qualquer outro meio), a qualquer pessoa que seja seu cônjuge ou companheiro.
Com efeito, dispõe o art. 152º do Cód. Penal que é punido com uma pena de 1 a 5 anos de prisão, quem infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou tratar cruelmente o respectivo cônjuge ou a pessoa que, com ela, conviva em situação análoga à dos cônjuges.
Trata-se de um tipo legal de crime que, para se concretizar, pressupõe uma reiteração das condutas que integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes: ofensa à integridade física simples, ameaça, coacção, injúria, difamação.
V – Segundo se expende no Acórdão de 05/11/2003, do Tribunal da Relação do Porto, In www.dqsi.pt , “De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime as condutas que integram o tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, enquanto, eventualmente, integradoras de um tipo de crime, para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre o cônjuge:”.
Ou seja, entre o crime de maus tratos e os crimes que o podem integrar (nomeadamente o de ofensa à integridade física simples e o de injúrias, como no caso “sub judice”) estabelece-se uma relação de concurso parente, só se aplicando a pena cominada pelo art. 152º, nº2, do Cód. Penal, deixando de ter qualquer relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.
Unidade de acção típica não pode ser excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes integrem, ou não, outros tipos legais de crime.
Com efeito, o crime de maus tratos a cônjuge vem descrito na lei como consistindo numa pluralidade indeterminada de actos parciais, ou seja, numa realização repetida do tipo (cfr. HANS HEINRICH, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S A, pags.998-999 e MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, previsto e punido 546-547).
Segundo dispõe o art. 19º, nº2 do Cód. Proc. Penal, existem crimes que se consumam através de actos sucessivos ou reiterados, mas que são um só crime, não se podendo concluir pela existência de vários crimes, mas sim pela existência de múltiplas formas de executar ou praticar o crime.
Será a consideração global dos vários actos (que, desacompanhados de certas circunstâncias e considerados em particular, consistem em crimes efectivos e punidos enquanto tal) que nos levam a concluir e a punir determinada conduta como crime de maus-tratos a cônjuge.
Ainda na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/07/2002, In www.dQsLpt, o art. 152°, n01 e 2 do Cód. Penal “inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade humana, compreendendo a ratio deste normativo, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos (por exemplo humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc)…”.
Segundo entendeu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 08/01/1997), para a verificação do crime de maus tratos não basta uma acção isolada, mas também não se exige uma habitualidade. Praticando, assim, tal ilícito “… o arguido que, durante os anos de 1993, 94 e 95, agrediu o seu cônjuge, com palavras torpes e batendo-lhe com as mãos”. (Como se pode ver no caso em apreço, o arguido vinha desde, pelo menos Outubro de 1999 até 2005, maltratando a sua companheira, umas vezes, através de ofensas corporais, outras por meio de insultos).
E em relação ao art. 152º do Cód. Penal, que, no seu nº 2, pune a actuação de quem infligir ao cônjuge maus tratos físicos e morais, devendo configurar tal crime uma única agressão, desde que a sua gravidade intrínseca as pudesse qualificar como tal, ou seja, qualifica-se como crime de maus tratos as condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser consideradas como tal.
Não são todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do art. 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, isto é, que traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança, desnecessária, da parte do agente.
Ainda segundo o Ac. do ST J de 04/02/2004. «… O bem jurídico protegido pelo crime de maus tratos a cônjuge é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge (…) – Os maus tratos físicos consistem em actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente ofensas corporais, enquanto os maus tratos psíquicos consistem em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros (...)”
VI- Tendo por referência os factos dado como provados na douta decisão judicial (Fundamentos), afigura-se-nos que, com o seu comportamento, o arguido preencheu os elementos, objectivo e subjectivo, do crime de maus tratos a cônjuge, previsto e punido pelo art. 152º do Cód. Penal. .
Contudo e na esteira do que atrás já se referiu, perfilhamos inteiramente o entendimento propugnado na douta sentença sob recurso, pois que a conduta do arguido, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo a que ora se alude, constante da decisão judicial em causa, deve ser considerada na sua globalidade, ou seja, como violadora da dignidade pessoal da ofendida, enquanto sua cônjuge, e da respectiva saúde, considerada nas suas várias vertentes: moral, física, mental e psíquica.
Acresce que, a não se considerar que os factos ocorridos a 19 de Abril de 2005 integram também o ilícito do art. 152º do Cód. Penal, – como pretende o recorrente – então nem mesmo aquele (crime de maus tratos) se mostraria preenchido, justamente por falta do requisito da pluralidade ou reiteração dos comportamentos do agente para com a vitima.
Tudo para concluir que o crime de ofensas corporais levado a cabo pelo arguido, na pessoa da sua mulher, nas circunstâncias em referência, é um dos múltiplos actos em que o crime de maus tratos a cônjuge, praticado pelo mesmo, se concretizou.
Tendo aquele crime de ofensas corporais perdido, assim, a sua autonomia, por que integrador daqueloutro crime, pelo qual o arguido, a final e sem censura, veio a ser condenado.
Do mesmo modo, a circunstância de o arguido insultar a sua mulher, apelidando-a de “puta”, deve ser analisado e conjugado com todos os outros factos dado como provados, inclusive o que atrás se referiu, a fim de o enquadrar num crime mais vasto que é o de maus tratos a cônjuge.
Veja-se ainda a este propósito o que vem referido, de forma sábia, no Acórdão da Relação de Coimbra, de 29/01/2003, http://www.dgsi.pt/trc. “I – Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos I a cônjuge.
II -0 que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.”
Ora, no caso sub Júdice, o arguido praticou os factos descritos e dado como provados na douta sentença, no recato do lar que partilhava com a ofendida, de forma permanente e diversificada, provocando um clima de terror e de pânico constante, da parte da vítima e demais familiares.
VII – Acresce que, em nosso entendimento, não foi excessiva a pena aplicada ao arguido, tendo em conta o tipo legal de crime, a natureza do mesmo, a sua gravidade e modo de execução e ainda a personalidade revelada pelo agente.
Ora, dispõe o art. 71º, nº 1 do Cód. Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O nº2 do mesmo artigo estipula que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime” depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
c) as condições pessoais do agente e a sua situação económica;
d) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequenciais do crime;
e) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. .
Como refere Germano Marques da Silva (DPP, VoI. III/130) a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena.
O referido art. 71º, nº 2 indica as circunstâncias comuns que determinam a agravação ou atenuação da pena concreta dentro dos limites da penalidade. Esta indicação é feita a título exemplificativo sem indicar quais as circunstâncias agravantes e quais as atenuantes.
O valor de cada circunstância só pode determinar-se perante cada facto concreto.
A circunstância indicada na al. a) do nº 2 do art. 71º engloba todas as circunstâncias relativas ao facto ilícito.
Importa atender logo ao grau de ilicitude do facto, à maior ou menor gravidade do ilícito considerando-se o modo de execução (quando não constitui elemento essencial do crime), a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.
Vejamos o caso concreto: Na presente situação, estamos perante factos típicos que tutelam o bem jurídico saúde física, psíquica e mental.
Quando os factos ocorreram, o arguido estava casado com a ofendida.
Os factos praticados denotam um grau médio de culpa por parte do agente.
O comportamento ilícito do recorrente é sentido pela comunidade como sinal de desprezo pela dignidade humana.
As exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a natureza dos ilícitos em causa.
A violência no seio familiar, quase sempre silenciada, é um dos grandes flagelos da nossa sociedade. Só uma cultura interiorizada de respeito pela dignidade humana poderá criar as condições de harmonia tão desejadas.
Face ao exposto, afigura-se-nos não ser desajustada a pena aplicada ao arguido, antes pelo contrário».
Já nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto, emitiu douto parecer de que se pede vénia para deixar transcrito o excerto sequente:
«O recorrente requer que as alegações sejam produzidas por escrito.
Todavia, atendendo a que o recurso não se restringe a matéria de direito, pois, invoca insuficiência da matéria de facto para o preenchimento do Ilícito por que foi condenado – cfr. als. c ) e f ) das conclusões – quer-nos aparecer, que não pode ser deferida a pretensão do arguido (n.º 4 do art. 411.º do Código de Processo Penal) devendo, consequentemente, e após o exame preliminar a que se reporta o art. 417.º, 3, do Código de Processo Penal prosseguir o processo, designando-se data para julgamento (art. 421.ºCódigo de Processo Penal ), desde já se referindo que se ,acompanha a bem estruturada Resposta apresentada pelo Ministério Público à Motivação do recurso e do mesmo modo a opinar-se pela improcedência do mesmo».
Para a decisão que se requesta ao tribunal de recurso impõe-se a disquisição das sequentes questões:
- Qualificação jurídico-penal dos factos dados como adquiridos na decisão;
- Individualização Judicial da pena – Suspensão da execução da medida da pena imposta;
- Quantum Indemnizatório atribuído à demandante civil B...

II. – Fundamentação.
II.A. – De Facto.
Considerou o tribunal adquirida para a decisão proferida a sequente facticidade:
«1. O arguido e B... celebraram casamento em 22 de Junho de 1975.
2. Desde tal data até hoje partilham habitação e partilharam mesa leito até há cerca de três anos.
3. Desde Outubro de 1999 até hoje, o arguido maltrata física e psiquicamente a B....
4. Na verdade, na constância do matrimónio, desde a data supra aludida, o arguido vem agredindo corporalmente a B..., desferindo-lhe murros, pontapés e bofetadas e insulta-a apelidando-a de “puta”, deste modo, criando um clima de violência, medo e terror no seio da família.
5. Assim, nomeadamente, no dia 19 de Abril de 2005, cerca das 22hOO, no interior da residência de ambos, sita na Rua ....., Aveiro, o arguido dirigiu-se a B... e, após uma breve discussão entre ambos, desferiu-lhe um murro no lado direito da face.
6. Como consequência directa e necessária da conduta supra descrita, resultaram para a B... dores e hematoma na região malar direita, os quais determinaram um período de doença de oito dias, sem incapacidade para o trabalho geral ou profissional.
7. O arguido sabia e quis agir da forma supra descrita, com o propósito concretizado de molestar física e psicologicamente, de forma reiterada e persistente, a B..., sua esposa.
8. Mais sabia serem as suas condutas proibidas e punidas por lei, o que quis.
9. Em virtude de tais ferimentos, a ofendida teve de receber tratamento hospitalar e padeceu de fortes dores, que se fizeram sentir até ao momento da cura total e sentia grande dificuldade ao mastigar, pelo que durante alguns dias teve de ingerir os alimentos passados e também líquidos.
10. Além disso, ao falar sentia muitas dores, o que muito a atormentava.
11. Devido ao facto de as referidas lesões se localizarem na face, e enquanto não desapareceram as marcas, facilmente eram notadas por aqueles com quem se cruzava, o que também lhe trazia além de um enorme desgosto, um não menor embaraço, já que não poucas pessoas a interpelavam sobre a causa daquele seu estado.
12. Por isso, a ofendida, nesse período limitou as suas saídas ao estritamente necessário.
13. Desde o início das agressões, já em 1999, e até aos dias de hoje que a ofendida vive absolutamente aterrorizada, temendo sempre, ela sua integridade física pois, nunca sabe se e quando poderá vir a ser novamente agredida, pelo que anda sempre em constante sobressalto com receio que o arguido concretize os seus intentos.
14. Daí que a ofendida seja uma pessoa triste, angustiada e amargurada, desgostosa com a sua situação familiar e, acima de tudo, muito receosa do que o arguido possa atentar contra si.
15. Em virtude da agressão descrita em 5., a ofendida, no dia 20/04/2005, deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital C..., em A veiro, tendo-lhe, então, sido prestada assistência médica cujos encargos ascenderam a € 50,30 (cinquenta euros e trinta cêntimos).
16. O arguido não tem antecedentes criminais.
17. O arguido está desempregado há cerca de 30 meses e a receber o respectivo subsídio o qual deixou de lhe ser pago em Outubro último. Vive na casa que foi a de morada da família onde reside igualmente a ofendida e um filho do casal.
18. O arguido tem como habilitações literárias a 4ª Classe e no meio social em que se insere existe dele uma imagem positiva.
19. Arguido e ofendida encontram-se divorciados e partilham a habitação porque não existe acordo quanto à divisão do património do casal.
Não resultaram provados outros factos com interesse para a decisão da causa, nomeadamente:
a) Que até hoje o arguido e a ofendida partilhem mesa e leito.
b) Que ainda hoje, a ofendida sinta dores na face direita e isso seja sequela do episódio ocorrido em 19-04-2005.
c) Que da agressão ocorrida no dia 19-04-2005 tenha resultado a deterioração da prótese dentária que a ofendida usava e que a reparação da mesma tenha custado E 264,00 (duzentos e sessenta e quatro euros).
d) Que a ofendida tema pela própria vida.
Motivação.
A convicção do tribunal assentou nos seguintes elementos de prova.
Relativamente aos factos descritos em 1. e 2., o Tribunal teve em conta o teor da certidão de fls. 9 e relatório do IRS de fls. 145/147, factos que também foram confirmados quer pelo arguido, quer pela ofendida.
Quanto à existência das agressões físicas e verbais descritas nos pontos 3. e 4., o Tribunal teve em consideração o conjunto da prova produzida, designadamente:
a) Que o casal passou a viver um clima de permanente conflito desde 1999 (altura em que faleceu a sogra do arguido que vivia com o casal e tinha alguma influência apaziguadora sobre o mesmo) resultou provado em face das próprias declarações do arguido o qual, atribuindo embora a responsabilidade por tal clima à ofendida, admite que existiam conflitos.
Por outro lado, tal facto também resulta do relatório do IRS a fls. 145/147 no qual se refere tal circunstância e se menciona, inclusivamente, que tais conflitos são conhecidos no meio social a que o casal pertence.
Finalmente, as testemunhas D... e E... (irmão e cunhada do arguido) referiram que, embora não tenham conhecimento da existência de agressões, sabem que a relação do casal era conflituosa principalmente desde o falecimento da mãe da ofendida.
b) Que nesse período ocorreram frequentes agressões físicas e insultos levados a cabo pelo arguido na pessoa da ofendida resultou provado em face das declarações prestadas pela ofendida a qual referiu de forma clara e até circunstanciada a forma como tais agressões e insultos ocorreram. Além disso, o Tribunal teve em consideração o depoimento sentido e convincente da testemunha F... (filho do casal e que ainda hoje vive na companhia dos pais) e que foi no sentido de que o pai e a mãe discutiam muito, já antes de a avó falecer mas que os conflitos se agravaram a partir do momento em que a mesma faleceu. Afirma esta testemunha que assistiu a várias agressões físicas por parte do pai em relação à mãe (murros, empurrões e chapadas), sendo que em diversas ocasiões as agressões não se concretizaram porque estava presente conseguiu evitá-las e que o pai, muitas vezes chamava “puta” à mãe.
Finalmente, foi importante o depoimento da testemunha G... (filha do casal) a qual casou em 1996 e saiu de casa dos pais nessa altura mas, mesmo assim, afirmou que o casal sempre discutiu muito e que, mesmo depois de sair de casa muitas vezes a mãe se queixava que o pai a agredia, muito embora nunca tenha presenciado qualquer agressão física. Acrescentou que, muitas vezes ouviu o pai chamar a mãe de “puta”.
No que se refere à agressão física ocorrida em 19-04-2005, o Tribunal teve em consideração as declarações do próprio arguido o qual, negando embora ter dado um murro à ofendida diz que existiu um desentendimento entre ambos e que a ofendida o tentou agredir, tendo o mesmo sido empurrado e caído e, como a ofendida pretendesse agredi-lo mais, colocou a mão na face da mesma. Ora, além de existir prova de que o arguido efectivamente agrediu a ofendida com um murro, a verdade é que as lesões que apresentava não são compatíveis com uma agressão/defesa do tipo da que é descrita pelo arguido.
As declarações da ofendida são muito claras e convincentes quanto à existência da agressão e forma como foi levada a cabo pelo arguido, versão apoiada no depoimento da testemunha H... (amiga da arguida), a quem a ofendida telefonou a chorar após a agressão e que diz ter ouvido o arguido dizer “cala-te senão ainda levas mais”.
Finalmente, a filha do casal, G... afirmou em julgamento que naquela noite a testemunha H...telefonou para sua casa dizendo que o pai tinha agredido a mãe e que estava muito preocupada, razão pela qual se dirigiu à casa dos pais onde encontrou a mãe a chorar e com a face ferida tendo-a acompanhado ao hospital.
Quanto às consequências da agressão, as mesmas resultaram provadas em face do relatório pericial de fls. 52/54.
Que o arguido actuou com consciência e vontade de ofender a sua esposa física e psicologicamente resulta da própria natureza das suas condutas conjugada com as regras da experiência comum e que nos levam a concluir que quem actua da forma que o arguido actuou não pode senão ter aquela consciência e vontade.
Os factos descritos em 9. a 14. resultaram provados com base nas declarações prestadas em julgamento pela demandante/ofendida, conjugadas com os depoimentos das testemunhas F..., H...e G....
Relativamente à assistência hospitalar e respectivos custos, o Tribunal teve em conta as declarações da ofendida e o teor do documento de fls. 87.
A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do teor do CRC de fls. 133.
Os factos descritos em 17. a 19. resultaram provados com base nas declarações do arguido e relatório do IRS de fls. 145/147.
No que toca aos factos não provados.
Que até hoje o arguido e a ofendida partilhem mesa e leito não resultou provado uma vez que os próprios afirmam que apenas residem na mesma casa porque não existe acordo quanto à divisão do património do casal mas que não existe qualquer convivência, fazendo ambos vidas completamente separadas.
Que a ofendida ainda hoje sinta dores não resultou provado desde logo porque do relatório pericial constante dos autos consta que a ofendida após o período de doença ficou sem quaisquer sequelas.
Quanto a ter a pró tese dentária da ofendida ficado danificada em virtude do murro que o arguido lhe desferiu na face, não resultou provado na medida em que, apesar de tal ser referido pela ofendida e algumas testemunhas a verdade é que não consta dos autos nenhum documento médico que comprove tal facto e se efectivamente a mesma tivesse sido reparada e tal reparação tivesse custado o que a ofendida diz ter custado, fácil seria juntar aos autos o respectivo documento.
Finalmente, não resultou provado que a ofendida tenha medo que o arguido atente contra a sua vida. Por uma lado porque as ofensas nunca foram de gravidade tal que o fizesse supor e a própria ofendida não refere tal receio de forma a merecer o convencimento do Tribunal».

II.B. – De Direito.
II.B.1 – Qualificação jurídico-penal dos factos dados como adquiridos na decisão.
Seguindo de perto a monografia “El delito de Malos Tratos en el Ambiente Familiar – Aspectos Fundamentales de la Tipicidad”, de Elena Núñez Castaño, Tirant lo Blanch, 2002, o bem jurídico protegido pelo tipo de ilicito previsto no artigo 153º do Código Penal espanhol – similar ao preceito incriminador do ordenamento penal indígena –, e na esteira de Muñoz Conde, é o mesmo que nas lesões; “esto es, la salud, en la que se incluye tanto la integridad física como la psíquica”; ainda assim, e independentemente disso, “como consecuencia de la agresión de que se trate, se comprometan otros bienes jurídicos de muy diversa calidad”.
Es, por tanto, en el âmbito de lesiones donde tiene que analizarse Ia ratio legis de su tipificación autónoma. Las razones que apoyan esta postura son varias. En primer lugar, aunque ciertamente no se ala más decisiva, una formalista que es la de orden estrictamente sistemático: la ubicación del art. 153 dentro deI Título dedicado a las Iesiones, sobre todo desde la base de ]a función sistemática, que desde antiguo se há otorgado al bienjurídico, como critério organizador de los tipos penales. […]si atendemos a la razón de ser de este precepto, podemos mantener que si algo se pretende especificamente es incriminar la violencia (en principio solo física y ahora también psíquica) habitual en el ámbito familiar, es decir, la existencia de un hábito de violencia». [1]
“Na realidade o delito de violências habituais no âmbito familiar encerra uma estreita relação com numerosas figuras delitivas do Código Penal. De um modo geral, encontra-se vinculado a todas aquelas descrições típicas que perseguem a tutela da integridade pessoal do ser humano em algumas das suas facetas: a sua dimensão física (lesões e maus tratos corporais), psíquica (ameaças e coacções) ou moral (injúrias, vexações injustas, torturas e demais delitos contra a integridade moral). Todas estas vertentes se encontram tão intimamente ligadas que se torna muito difícil delimitá-las, tanto do ponto vista fáctico como jurídico […]”.
Neste tipo de ilicito se ubicam uma pluralidade de bens jurídicos como sejam as ameaças, as coacções, as agressões sexuais, injúrias.
Em sentido similar atina a nossa doutrina e vai a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal. Assim em recente aresto ditou, este tribunal, que: “[…] dispõe o art. 152º do Código Penal que quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às do cônjuge, maus tratos físicos ou psíquicos (nº 2) é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art. 144º do mesmo diploma (nº 1).
Este normativo penaliza a violência na família que suscita maiores preocupações, não tendo sequer escapado à atenção do Conselho da Europa, que cedo a caracterizou como “acto ou comissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade” (Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna – 33ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais, BMJ 335-5).
Releva aqui de forma especial o tratar-se de um crime de maus-tratos físicos ou psíquicos, o que afasta as meras ofensas à integridade física. Necessário se torna, pois, que se reitere o comportamento, em determinado período de tempo, admitindo-se que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado.
Entendeu o ST J, face ao art. 153º do Código Penal de 1982, que: «3) – Para a verificação do crime de maus-tratos previsto e punido pelo art. 153º do Código Penal de 82, não basta uma acção isolada, mas também, não se exige uma habitualidade. 4) Assim, pratica tal ilícito o arguido que, durante os anos de 1993, 94 e 95, agrediu o seu cônjuge, com palavras torpes e batendo-lhe com as mãos» (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 8.1.97, proc. nº 934/96).
E em relação ao art. 152º do Código Penal de 1995, que «(1 – O art. 152º do Código Penal, no seu nº 2, pune a actuação de quem redacção teve como propósito a eliminação de algumas dúvidas que doutrinariamente tinham surgido na interpretação do art. 153º do Código Penal de 1982, e que conduziram a ter-se discutido se, ao crime de maus tratos a cônjuge, fazia ou não parte do tipo uma certa habitualidade ou repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral do ( consorte ofendido, embora, a final se tivesse fixado a jurisprudência no sentido de que, mesmo com a redacção de 1982, a referida figura criminal se poderia verificar com . única agressão, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse fazer qualificar como tal. 2) – a actual redacção, por consequência, mais não significa, no caso concreto, do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma s6 vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. 3) – Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido art. 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente” […]E decidiu-se no Ac. do ST J de 5.2.04 (Proc. nº. 2857/03-3), confirmado em Plenário das Secções Criminais) que “3) – o bem jurídico protegido pelo crime de maus tratos a cônjuge é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge. 4) – Os maus tratos físicos consistem em actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente ofensas corporais, enquanto os maus tratos psíquicos consistem em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros. 5) – Em regra, o tipo de crime exige uma reiteração da conduta delituosa, só em casos excepcionais bastando um só acto, se ele for em casos excepcionais bastando um só acto, se ele for suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima. 6) – Diversamente do que se verificava na versão originária do Código Penal/82, não é agora elemento constitutivo do crime «a malvadez ou egoísmo», donde resulta que a prática de actos por um dos cônjuges que atinjam de forma grave a dignidade do outro, ainda que não revelem essas características de personalidade \do cônjuge ofensor, integram o tipo de crime […]” [2]
“Poder-se-ão definir os maus tratos como toda a acção, conduta ou comportamento agressivo que, através de distintas formas de expressão, produzem dano ou menoscabam determinados bens jurídicos das pessoas agredidas (vida, integridade física ou psíquica, liberdade, honra, integridade moral, etc.). Dever-se-á distinguir entre maus tratos físicos, quer dizer, qualquer agressão ou acto de acometimento físico que provoque lesão ou doença (hematomas, feridas, fracturas, queimaduras, etc.); abuso sexual, quer dizer, qualquer contacto sexual realizado a partir de uma posição de poder ou autoridade relativamente à vítima; maus tratos psíquicos, ou o que é o mesmo, qualquer acto ou conduta intencionais que produzam desvalorização, sofrimento ou agressão psicológica (insultos, vexações, crueldade mental, etc.), o que situa a vítima num clima de angústia que destrói o seu equilibrio emocional. Assim, o terror psíquico persiste sob a forma de ameaça, espionagem e de interrogatórios. Este tipo de violência baseia-se no abuso emocional, com o denominador comum da vexação, exigências de obediência por parte do agressor, desprezo, burlas verbais (insultos e gestos), intimidação, humilhações em público, manipulações, abandono físico e económico, sexualidade vexatória, etc.” [3]
Por violência física há-de entender-se toda e qualquer manifestação agressiva ou de maltrato (golpes, contusões, empurrões bruscos, bofetadas, pontapés, etc.) qualquer que seja a sua gravidade. Deverá tratar-se sempre de um ataque, ainda que dissimulado, e independentemente das marcas os sinais físicos que esse ataque possa deixar. A mesma similitude é exigida para a violência física, ou seja, toda a violência exercida sobre a vivência psicológica de uma pessoa e que “de maneira mais ou menos relevante, incida sobre a psico do afectado, colocando directamente em perigo a sua saúde mental” [4]
Delineado o quadro conceptual em que haveremos de integrar a facticidade adquirida pelo tribunal a quo, recenseemos seus os pontos salientes para a qualificação jurídico-penal. Assim: “ Desde Outubro de 1999 até hoje, o arguido maltrata física e psiquicamente a B...; […] “na constância do matrimónio, desde a data supra aludida, o arguido vem agredindo corporalmente a B..., desferindo-lhe murros, pontapés e bofetadas e insulta-a apelidando-a de “puta”, deste modo, criando um clima de violência, medo e terror no seio da família”; […] “no dia 19 de Abril de 2005, cerca das 22hOO, no interior da residência de ambos, sita na Rua......, Aveiro, o arguido dirigiu-se a B... e, após uma breve discussão entre ambos, desferiu-lhe um murro no lado direito da face”; […] “Como consequência directa e necessária da conduta supra descrita, resultaram para a B... dores e hematoma na região malar direita”; […] “o arguido sabia e quis agir da forma supra descrita, com o propósito concretizado de molestar física e psicologicamente, de forma reiterada e persistente, a B..., sua esposa”; “mais sabia serem as suas condutas proibidas e punidas por lei, o que quis”; “Em virtude de tais ferimentos, a ofendida teve de receber tratamento hospitalar e padeceu de fortes dores, que se fizeram sentir até ao momento da cura total e sentia grande dificuldade ao mastigar, pelo que durante alguns dias teve de ingerir os alimentos passados e também líquidos”; “devido ao facto de as referidas lesões se localizarem na face, e enquanto não desapareceram as marcas, facilmente eram notadas por aqueles com quem se cruzava, o que também lhe trazia além de um enorme desgosto, um não menor embaraço, já que não poucas pessoas a interpelavam sobre a causa daquele seu estado”; “por isso, a ofendida, nesse período limitou as suas saídas ao estritamente necessário”; “desde o início das agressões, já em 1999, e até aos dias de hoje que a ofendida vive absolutamente aterrorizada, temendo sempre, ela sua integridade física pois, nunca sabe se e quando poderá vir a ser novamente agredida, pelo que anda sempre em constante sobressalto com receio que o arguido concretize os seus intentos”; “daí que a ofendida seja uma pessoa triste, angustiada e amargurada, desgostosa com a sua situação familiar e, acima de tudo, muito receosa do que o arguido possa atentar contra si”.
Este o núcleo fáctico cardeal que permite obter uma qualificação jurídico-penal inequívoca na previsão normativa por que havia sido incriminado.
O arguido desde, pelo menos 1999, que vem exercendo sobre a sua companheira de vida familiar acções de feição física e psicológica compressoras da liberdade e da dignidade que é devida a qualquer pessoa humana e que deve merecer, se possível, um respeito adido quando se trata de uma convivência estreita consubstanciada numa escolha de vida comum. As expressões injuriosas com que apodava, o clima de constrangimento e temor decorrente das acções violentas que sobre a ofendida exercia e a sujeição psicológica que desse estado de vivência incutia no espírito e na forma de vida da companheira conferem um quadro factual capaz de suportar a incriminação que lhe foi assacada no libelo acusatório.
Como se vincou supra o crime de maus tratos basta-se com a consolidação no estado vivencial da vitima de um estado de compressão na sua liberdade pessoal e de um apoucamento e menoscabo da dignidade que a qualquer ser humano é devida. Este estado de aviltamento e desdoiro pessoal há-de ser consequência de uma reiteração de condutas, comportamentos e acções violentas, traduzidas, normalmente, em agressões, injúrias e vexames que conjugados evidenciam uma carência de solidariedade e respeito interpessoal no seio de um ambiente que tende para a concertação e a convivência propiciadoras de um suporte cultural são e susceptível de propinar um veio educador arrimado com os valores prevalentes da sociedade.
A matéria de facto adquirida, porque evidenciadora de uma actuação violentadora da personalidade da ofendida e da sua vivência pessoal e familiar, por parte do arguido, configura-se como integradora da previsão normativa contida no nº 2 do artigo 152º do Código Penal.
Não merece, pois, censura a qualificação jurídico-penal operada pela decisão sob impugnação.
Com esta asserção fica prejudicada a eventual ilegitimidade do Ministério Público para accionamento da acção penal, como defende o recorrente nos itens G) a J) das conclusões.
II.B.2. – Individualização Judicial da pena – Suspensão da execução da medida da pena imposta.

De forma genérica o arguido considera excessivo período fixado para a suspensão da pena.
Estima que, porque “se encontra em marcha a respectiva partilha de bens e vai deixar de viver na mesma casa que a ofendida a muito breve trecho”, deveria o período da suspensão ser reduzido (não diz a quanto, dado que o período fixado é no escalão imediato ao mínimo).
Em recente acórdão do nosso mais Alto tribunal escreveu-se que: “I – Na suspensão da execução da pena, não estão em causa considerações de culpa, mas apenas de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
II – Perante um prognóstico favorável nos termos do artº 50º nº 1 do Código Penal, que faz concluir pela suspensão da execução da pena, são considerações de prevenção especial que determinam a socialização do arguido em liberdade, por assim se lograr alcançar a finalidade reeducativa e pedagógica, pela ameaça da pena, e ser adequada e suficiente às finalidades da punição.
III – Daí que se compreenda que o período de duração da suspensão da execução da pena de prisão, ao integrar o âmbito desta autêntica pena de substituição, e, circunscrever-se no desígnio global da política criminal do instituto em questão, não seja determinado, proporcionalmente, pela medida da pena de prisão aplicada.
IV – O critério de proporcionalidade entre a pena de prisão aplicada e o período temporal da suspensão da execução da pena, não tem qualquer fundamento legal, nem reclama qualquer discussão doutrinal.
V – A fixação do período de suspensão, temporal e legalmente balizada por um mínimo e um máximo, decorre discricionariamente do poder-dever vinculado do tribunal, aquando da fundamentação da aplicação da suspensão da execução da pena, na modalidade que for considerada mais conveniente.
VI – O período da suspensão é o limite temporal considerado adequado para concretização – eficácia – da socialização em liberdade, de forma a que o condenado mostre à sociedade que se encontra redimido e respeitador dos valores jurídico-criminais, e, que não estava carente de socialização de forma a ser privado de liberdade, bastando a ameaça da pena aplicada, e legitimando na sua integração comunitária a validade da pena de substituição.
VII – O período de suspensão concretamente fixado pode ainda ser alargado em caso de falta de cumprimento das condições da suspensão, com o fundamento constante do artigo 55º do Código Penal e nos termos aludidos na sua alínea d), alargamento esse justificado com nova oportunidade de o condenado se afirmar através de uma conduta que factores ocasionais podem ter vindo perturbar ou desviar” [5]
A suspensão da pena não tem a que estar ajustada a critérios de culpabilidade, mas tão só a critérios de prevenção especial e geral.
Ainda que o arguido esteja em fase de dissolução final do vínculo matrimonial, com a partilha de bens e a saída de casa (comum), o facto é que isso não o impedirá de procurar molestar a ofendida e revisitá-la ainda que não vinculado legalmente. É, pois, avisado e necessário interpor algum tempo de ameaça de uma sanção penal de modo a evitar futuras situações intrusivas na vida pessoal da ofendida.
O período não é excessivo, antes se poderá revelar exíguo. Não podendo ser alargado, por não requestado, mantém-se.
II.B.3. – Quantum Indemnizatório atribuído à demandante civil B....
Nos termos do art.º 377º n.º 1 do Cód. Proc. Penal a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado.
A prática de um ilícito criminal pode justificar a formulação junto dos Tribunais de pedidos diferentes, um de natureza criminal e outro de natureza civil, este no intuito de que os prejudicados pelo crime sejam indemnizados pelas consequências materiais e morais advindas da prática daquele ilícito. [6]
No nosso ordenamento jurídico, a efectivação desse pedido de natureza civil tem de ser feito, em princípio, pela via da adesão obrigatória da acção civil à acção penal, de acordo com o disposto no artigo 71º, do Cód. de Proc. Penal, embora essa reparação mantenha uma natureza civil, conforme dispõe o artigo 129º do Cód. Penal.
Esta remissão que o referido artigo 129º do Cód. Penal faz para a lei civil com vista à reparação de perdas e danos emergentes do crime só pode significar que apenas está contemplada nesta remissão a responsabilidade civil extracontratual, prevista no artigo 483º, n.º1 do Cód. Civil (em conjugação com os artigos 562º e segs. do mesmo diploma), excluindo, assim, a responsabilidade contratual e a responsabilidade por factos lícitos, nos casos previstos na lei, já que o facto ilícito criminal, fundamento do pedido cível enxertado no processo penal, não é por si fonte geradora de responsabilidade contratual, nem, como é óbvio, constitui um acto lícito. [7]
Esta remissão implica que a indemnização a pedir no processo penal tem necessariamente como causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também os pressupostos da responsabilidade criminal.
Esta autonomia entre as duas responsabilidades permite que o Tribunal possa absolver o arguido da responsabilidade criminal que sobre ele pendia, mas conhecer da sua responsabilidade civil e condená-lo se for caso disso.
“Dispõe o art.º. 483º do Cód. Civil que: - "Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
De acordo com o preceituado naquele comando legal, o direito ao peticionado ressarcimento e a consequente assunção da obrigação de indemnizar reconduz-se à verificação dos seguintes pressupostos: a) a ocorrência de um facto ilícito, acção humana que lese interesses directamente protegidos (violação dos direitos de outrem) ou interesses indirectamente protegidos (disposição legal destinada a proteger interesses alheios); a verificação de um comportamento culposo isto é, que o lesante, pela sua capacidade e, em face das circunstâncias concretas da situação, pudesse e devesse ter agido de outro modo, tornando-se, ainda, necessário averiguar se existiu ou não um nexo psicológico entre o facto e a vontade do lesante (sob a forma de dolo ou mera culpa), tendo como paradigma o padrão do homem médio (art.º 487º Cód. Civil); a existência de um nexo de causalidade que coloca a exigência de que uma causa seja em concreto, como em abstracto (pela sua natureza geral), apropriada a produzir determinado efeito típico; e, finalmente, a verificação de um dano ou prejuízo perda sofrido pelo lesado reflectido na sua situação patrimonial (dano material) ou insusceptível de avaliação pecuniária, mostrando-se digna de satisfação (dano moral);
Quanto aos danos não patrimoniais, assumem tal natureza aqueles "prejuízos" (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio e de reputação, os complexos de ordem estética) que não sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma compensação que uma indemnização [8]
Ainda no que concerne aos danos não patrimoniais, dispõe o art.º. 496º, n.º. 1 do mesmo código que, "(...) na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito". Tal significa que, a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso) e não à luz de critérios subjectivos, devendo o dano ser de tal modo grave que justifique a tutela da ordem jurídica.
Para que possa surdir ou manar a obrigação de indemnizar decorrente de um facto ilícito, lesivo da saúde e da dignidade da pessoa humana, em termos substanciais bastará que se verifiquem os pressupostos que a lei civil requer para que se gere a necessidade do Direito reparar o dano que foi ocasionado na esfera jurídica, ético-moral ou patrimonial, do lesado.
O legislador português, a partir da entrada em vigor do novo ordenamento jurídico-processual penal, substituiu o princípio mitigado de adesão, para dedução do pedido cível decorrente de danos ocasionados por virtude da prática de um ilícito de natureza penal, que vigorava no anterior ordenamento jurídico-processual, pelo princípio da adesão pleno da dedução de pedido resultante de uma acção ilícita típica no processo penal instaurado para apurar a responsabilidade jurídico-penal do autor da acção lesiva, bem como daqueles para quem a responsabilidade civil houvesse sido transferida – cfr, art. 71º do CPP.

Apresentando-se como valores ou bens jurídicos de pendor primacialmente personalísticos não deixam, porém, de ser categorias socialmente referenciáveis, porquanto atinam com outros valores da pessoa humana, como a dignidade, o respeito, a autonomia, a identidade pessoal e a autorepresentação.
“Para a fixação do montante indemnizatório, manda a lei (cf. n.º 3 do mesmo preceito) que se usem juízos de equidade, tendo em consideração, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º do Código Civil, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, não devendo esquecer-se, ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões adoptados na jurisprudência, ou as flutuações do valor da moeda (35).
É consabido que os danos não patrimoniais não são reparáveis — atenta a sua natureza — com a atribuição ao lesado de determinada quantia em dinheiro; todavia, de entre as duas doutrinas que sobre a matéria se perfilavam — ressarcibilidade e não ressarcibilidade deste tipo de danos —, optou a nossa lei pela primeira, no entendimento de que a prestação pecuniária, além de constituir para o lesante uma sanção, tem a virtualidade de contribuir para atenuar, minorar e de algum modo compensar os danos sofridos pelo lesado.
Ora, face à manifesta impossibilidade de apagar-reparar o dano, visa-se atenuar um mal consumado, possibilitando à lesada, com o recebimento de uma quantia em dinheiro, a satisfação de utilidades e prazeres que de algum modo o compensem do mal sofrido.
Esta natureza compensatória da indemnização a arbitrar pressupõe, como acima se disse, que se tenha em conta a gravidade do dano causado — a intensidade e duração da dor física ou psíquica, ou dos sentimentos negativos provocados —, sob pena de se pôr em causa a sua seriedade e o respeito devido a quem o sofreu.
Vem a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores afirmando, uniformemente, que a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser simbólica, devendo antes ser de montante que viabilize o fim a que se destina, a saber, atenuar a dor sofrida pela lesada» [9] .
A reiteração com que o arguido violentou a dignidade da ofendida, deixando-a acabrunhada e angustiada perante as demais pessoas que com ela conviviam, a sujeição da ofendida a uma pressão pessoal e social constante e aviltante, a falta de autonomia pessoal e a humilhação a que era sujeita de cada vez que o arguido a ofendia corporal e psiquicamente são vectores de aferição do quantum indemnizatório que conferem justeza à atribuição da indemnização fixada pelo tribunal a quo.
Em nosso juízo, o quantum indemnizatur fixado pelo tribunal fixou-se abaixo do que seria adequado à luz dos princípios rectores que regem para a fixação de uma indemnização por este tipo práticas anti-sociais e anti-humanas. Daí que à míngua de um quantitativo mais ajustado se tenha por bastante o que foi fixado pelo tribunal.

III. – Decisão.
Na confluência com o argumentado, decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:
-Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido A... e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão sob impugnação;
- Condenar o arguido nas custas, fixando a taxa de Justiça em dez (10) Uc’s.

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[1] Cfr. Op. loc. cit. pag. 73.
[2] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.04.2006; proferido no processo nº 658/06; in Col. de Juris. Ano XIV. Tomo II/2006, pág. 167..
[3] Cfr. op. loc. cit. pag. 107 a 109.
[4] Cfr. op. loc. cit. pag. 122.
[5] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2007; proferido no processo nº 07P797, in www.stj.pt .
[6] M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, pág. 71 e ss.
[7] Assento n.º7/99, de 17 de Junho de 1999, in DR Iª Série-A, de 03/08/1999.
[8] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5ª ed., pág. 561..
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.05.2007; proferido no processo nº 1231/07.