Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1689/23.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: DIREITOS ATINENTES À MATERNIDADE
TRATAMENTO DIFERENCIADO
DISCRIMINAÇÃO EM RAZÃO DO SEXO
Data do Acordão: 01/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30.º, N.ºS 1 E 4, 35.º-A, N.º 1, 40.º, N.ºS 1, 2 E 11, E 41.º, N.º 2, DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: O tratamento diferenciado de trabalhadora por razões ligadas ao exercício de direitos atinentes à maternidade é de qualificar como conduta de discriminação em razão do sexo.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

                   Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

                   RELATÓRIO

                  A..., E.P.E., arguida nos presentes autos de contraordenação, não se conformando com a decisão de fls. 98, que remeteu para a proposta de decisão de fls. 75 a 96, da Diretora do Centro Local do Lis da Autoridade para as Condições de Trabalho, que lhe aplicou a coima de €15.300,00, pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos nºs 1 e 3 do art.º 30º , n.º 1 do art.º 35.º-A, nos n.ºs 1, 2 e 11 do art.º 40.º e n.º 2 do art.º 41.º, todos do Código do Trabalho, veio da mesma interpor recurso de impugnação judicial para este Tribunal, concluindo, pedindo, a final, que o presente recurso de impugnação judicial seja julgado procedente.

                   Realizou-se audiência de julgamento.

                  Foi proferida sentença que decidiu julgar procedente a impugnação judicial apresentada, revogando-se a decisão administrativa recorrida da Diretora do Centro Local do Lis da Autoridade para as Condições de Trabalho e absolvendo-se a Arguida “A..., E.P.E.” da prática da contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos art.ºs 30.º, n.ºs 1 e 4, n.º 1 do art.º 35.º-A, nos n.ºs 1, 2 e 11 do art.º 40.º e n.º 2 do art.º 41.º, todos do Código do Trabalho e, consequentemente, da coima de € 15.300,00.

                   Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões que se reproduzem:

                  “1º Da leitura crítica da matéria de facto julgada como provada apreciada na sua globalidade resulta que o motivo para a não contratação da candidata AA para a vaga no quadro do pessoal do A..., E.P.E., foi a circunstância de ela, devido à sua vontade de exercer os seus direitos relativos à maternidade, não ter disponibilidade imediata para iniciar a prestação laboral de forma efetiva no início de maio 2022 (cfr. com particular interesse os factos julgados provados nos pontos nºs 11 e 12).

                   2º Essa matéria factual também resulta do e-mail, datado de 27/04/2022, enviado pela a testemunha BB, diretor de recursos humanos do A..., E.P.E., à candidata AA (cfr. a matéria de fato julgada como provada no ponto nº 13) bem como do ponto nº 23 desses mesmos factos provados.

                  3º Da matéria dada como provada nos citados pontos 11º, 12º e 23º perpassa que na abordagem para contratação da colaboradora AA (graduada em 1º lugar), o A..., E.P.E., assumiu uma postura ostensivamente discriminatório consubstanciada na circunstância de, antes de mais, se ter assegurado da sua situação maternal e só avançar com os procedimentos atinentes à contratação depois de ela se ter comprometido a iniciar funções efetivas no início de maio (cfr. facto julgados provados os nºs 3º a 8º) com prejuízo para o exercício dos seus direito enquanto mãe.

                  4º Em tais circunstâncias, a obtenção desse compromisso prévio à decisão de contratação consubstancia uma discriminação em função do sexo, uma vez que a candidata foi colocada na contingência/necessidade de aceitar não exercer os direitos atinentes à licença parental sob pena de, fazendo-o, não ser contratada, como acabou por o não ser, quando, em decisão contrária à que inicialmente havia tomado, optou por exercer os direitos parentais conferidos por lei.

                  5º A premência de movimentar a colaboradora CC para outro serviço e a necessidade imperiosa de que a pessoa a contratar iniciasse efetivas funções no início do maio são circunstâncias que não contendem com a prática do ilícito relevando apenas ao nível da determinação da medida da coima.

                  6º Tais circunstâncias consubstanciam os problemas do dia a dia de um qualquer empregador que tem de gerir um quadro de pessoal alargado na ordem das centenas de pessoas, como é do domínio público ser o caso do A..., E.P.E.

                  7º No imediato, o A..., E.P.E., resolveu todos esses problemas fazendo coisa nenhuma, ou seja, nem movimentou internamente a colaboradora CC nem contratou qualquer pessoal para os seus quadros (cfr. facto julgados provados os nºs 3º a 8º)!...

                  8º A circunstâncias do procedimento para ordenação da lista de pessoas como reserva de recrutamento no qual a candidata AA obteve o primeiro lugar ter caducado em 30 de março de 2022 nunca foi invocada pelo A..., E.P.E., para fundamentar a decisão de não contratação (cfr. ponto nº 12 da matéria de facto julgada provada).

                  9º A primeira e única vez que o A..., E.P.E., fez alusão à caducidade da lista de recrutamento no âmbito dos procedimentos desenvolvidos com vista à contratação de AA foi no e-mail que lhe endereçou em 27 de abril de 2022 não para fundamentar a sua não contratação, mas sim para a convidar a candidatar-se à nova reserva de recrutamento (cfr. ponto 14 al. c) da matéria de facto julgada provada).

                  10º A circunstância das diligências encetadas pelo A..., E.P.E., terem sido desenvolvidas antes 30 de março de 2022 (cfr. ponto 3 a 8 da matéria de facto julgada provada) e que prosseguiram depois dessa data (cfr. ponto 9 a 11 da matéria de facto julgada provada), apontam no sentido de que, no entendimento do A..., E.P.E., a caducidade da lista de candidatos não era impeditiva da contratação de AA.

                  11º Estava na livre disponibilidade do A..., E.P.E., tomar a decisão de contratar. Porém, depois de ter tomado essa decisão (como resulta da matéria de facto julgada provada que tomou) não lhe é lícito deixar de contratar com fundamento em que a candidata, por causa do exercício da licença de maternidade, não tinha disponibilidade para iniciar de imediato a prestação laboral.

                   12º É facto que a vaga que candidata AA iria ocupar não foi preenchida. Porém, para a consumação do ilícito não é necessário haver preterição de um candidato a favor de outro. A simples “(…) restrição de acesso de candidato a emprego” em razão do sexo é bastante para estarmos perante uma discriminação em função do sexo, tal como vem prevista no art.º 30º, nº 1, do Código do Trabalho.

                  13º O Tribunal violou o art.º 30º, nº 1, do Código do Trabalho.

                   14º O Tribunal entendeu que para ocorrer violação do art.º 30º, nº 1, do Código do Trabalho era necessário que a candidata AA tivesse sido preterida no preenchimento da vaga que era suposto ser preenchida.

                  15º O recorrente entende que a simples “(…) restrição de acesso de candidato a emprego” em razão do sexo é bastante para estarmos perante uma discriminação em função do sexo.

                  Pelo exposto, com os fundamentos indicados e com os demais que V. Exas. por forma sábia suprirão, requer-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene o A..., E.P.E., nos termos da decisão proferida pela Autoridade para as Condições no Trabalho. Porém, como sempre, V. Exas decidirão como for de JUSTIÇA.”

                   A arguida apresentou resposta, que por despacho de fls. 56 foi determinado o seu desentranhamento por extemporaneidade.

                  O Exmº Procurador-Geral Ajunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que deve proceder o presente recurso.

                   Não houve resposta a este parecer.

                   O recurso foi admitido.

                   Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                   OBJETO DO RECURSO

                   É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 33.º, número 1 e 50.º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09) e, subsidiariamente, dos artigos 412.º e 420.º, número 1, alínea c) do Código de Processo Penal.

                   A questão a decidir é a seguinte:

                  -Saber se a arguida cometeu a contraordenação de que foi absolvida na sentença recorrida.

                   FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

                   O Tribunal de 1ª instância fixou a matéria de facto da seguinte forma:

                   “1 - Factos Provados

                  O Tribunal considera provados os seguintes factos com exclusão da matéria de direito, dos juízos de valor e dos factos conclusivos, repetitivos ou irrelevantes constantes das peças processuais juntas aos autos com relevância para a decisão final destes autos:

                  1.º - No dia 17/05/2022, pelas 14:30 horas, foi realizada visita inspetiva à sede e instalações da Arguida, pela Sr.ª Inspetora do Trabalho, DD, tendo sido seu interlocutor o Dr. BB, Diretor de Recursos Humanos da Arguida.

                  2.º - Por deliberação de 15/07/2020 do Conselho de Administração do A... foi aberto um procedimento concursal para ordenação de uma lista de pessoas como reserva de recrutamento para as funções de técnico superior na Arguida e no qual a candidata AA obteve o primeiro lugar da classificação para o exercício do cargo de técnico superior de recursos humanos.

                   3.º - Em 27/01/2022 o Dr. BB contactou telefonicamente a candidata AA para aferir da sua disponibilidade para iniciar funções em 01/03/2022.

                   4.º - A candidata AA manifestou interesse em iniciar funções e informou que se encontrava grávida, com data prevista para o parto no início de abril de 2022.

                  5.º - O Dr. BB informou-a que pretendia saber da disponibilidade da candidata, não sendo certa a sua admissão na medida em que a mesma dependia também da transferência de uma outra trabalhadora para outro serviço.

                   6.º - Em 17/02/2022 a candidata contactou telefonicamente o Dr. BB, o qual informou não ter mais informação quanto ao momento da admissão, mas que esta, a ocorrer, poderia não ter lugar em 01/03/2022.

                  7.º - Em 28/03/2022 o Dr. BB contactou a candidata questionando-a quanto à sua disponibilidade para iniciar funções no dia 01/05/2022.

                  8.º - A candidata solicitou um dia para pensar, tendo informado o Dr. BB, no dia 29/03/2022, que tinha disponibilidade e interesse para iniciar funções na data pretendida.

                  9.º - Em 06/04/2022 a candidata foi contactada pela Arguida, via email, remetido por EE, tendo-lhe sido solicitados documentos para instruir o seu processo de admissão, tendo a candidata ficado de se deslocar à sede/instalações da Arguida no dia 11/04/2022.

                  10.º - Em 07/04/2022, na sequência de deslocação da candidata à Segurança Social da Marinha Grande com vista a requerer o subsídio parental, foi a mesma informada que a licença parental exclusiva da mãe terminaria em 05/05/2022.

                  11.º - Aquando da sua deslocação, em 11/04/2022 à sede/instalações da Arguida para proceder à entrega de documentos, a candidata informou o Dr. BB que não poderia iniciar funções no dia 01/05/2022 porque ainda estaria a gozar a licença parental exclusiva da mãe, mas que o poderia fazer logo no dia 05/05/2022, indo trabalhar uma semana, a que se seguiria o gozo da restante licença parental (de três meses).

                  12.º- O Dr. BB informou a candidata que o pressuposto para a sua contratação tinha assentado na sua disponibilidade anteriormente demonstrada quanto à data de 02/05/2022 para início efetivo de funções e que assim sendo, a contratação não poderia concretizar-se.

                  13.º- Nesse dia 11/04/2022 a candidata preencheu, a pedido dos Recursos Humanos da Arguida, a documentação necessária ao processo de admissão, bem como entregou cópia do requerimento entregue na Segurança Social para efeitos de subsídio parental.

                   14.º - A candidata AA voltou a ser contactada pelo Dr. BB no dia 27/04/2022, através de email, no qual refere, além do mais, o seguinte: “(…) Face à indisponibilidade manifestada por V.ª Ex.ª, aliás, em contradição com o anteriormente indicado, tornou-se impossível o preenchimento dos condicionalismos supra expostos.

                  Nesta medida, e considerando a indisponibilidade que nos manifestou, bem como a caducidade da reserva de recrutamento (corre atualmente outro procedimento com o mesmo fim, iniciado em 2022.03.31), foi pelo Sr. Presidente do Conselho de Administração do A... proferido despacho a 2022.04.26, no qual decidiu, conforme informação do aqui signatário, o seguinte:

                  a) A trabalhadora do Serviço de Gestão do Serviço de Recursos Humanos CC, atual titular do posto de trabalho em causa, no Serviço de Gestão de Recursos Humanos, mantém-se a ocupar o respetivo posto de trabalho, uma vez que este deixou de ser passível de ser preenchido de forma sucessiva em 2022.05.02;

                   b) A candidata AA, seja informada da impossibilidade que o seu recrutamento venha a ter lugar, em virtude de estar indisponível para iniciar funções na data determinada;

                  c) A candidata Dr.ª AA seja convidada a candidatar-se à reserva de recrutamento cuja constituição se encontra presentemente em curso, destinada à hipotética contratação futura para posto de trabalho de técnico superior no Serviço de Recursos Humanos do A... que venha eventualmente a vagar ou para o qual haja autorização.”

                  15.º - A contratação da candidata AA pressupunha a possível transferência da técnica dos Recursos Humanos, CC, para o serviço de urgência geral do A..., que aquela iria substituir para dar continuidade na ocupação do posto de trabalho nos Recursos Humanos.

                  16.º - No dia 17/05/2022 foi efetuada Advertência à Arguida pela Senhora Inspetora Autuante no sentido de “regularização na contratação da referida candidata”.

                  17.º - A Arguida deu resposta à Advertência, em 01/06/2022, via email.

                  18.º - A Arguida não contratou qualquer dos candidatos ordenados no âmbito do referido procedimento de 30/09/2020.

                  19.º- O procedimento concursal referido não visava preencher uma qualquer vaga aberta, mas antes tornar mais célere o processo de admissão de candidatos pré-ordenados, no caso de vir a abrir uma vaga.

                   20.º - O prazo de validade da lista ordenada pelo concurso era de 18 meses, contados da data de homologação da lista unitária de ordenação final, o que sucedeu por deliberação de 30/09/2020, ocorrendo a respetiva caducidade em 30/03/2022.

                  21.º- Quando a Arguida abre uma vaga para ocupar um posto de trabalho, seja temporário ou por tempo indeterminado, consulta a lista, auferindo do interesse e da disponibilidade efetiva dos candidatos para o início de funções na data pretendida.

                  22.º- Não havendo disponibilidade ou interesse, a Arguida contacta o candidato ordenado no lugar subsequente.

                  23.º- A Arguida pretendia com a contratação da candidata AA a disponibilidade efetiva da mesma para o trabalho no primeiro dia útil de maio de 2022 porque era essencial assegurar o preenchimento efetivo do posto de trabalho e causa por forma a garantir a organização de escalas e o pagamento dos serviços prestados às entidades prestadoras de cuidados de saúde à Arguida.

                   24.º- Não se tendo concretizado a contratação da candidata AA, a técnica superior CC, que ocupava o posto de trabalho em questão, já não foi mobilizada e não chegou a abrir a vaga para contratação de um novo técnico superior para aquele posto de trabalho.

                   25.º- A Arguida apresentou, no ano de 2020, um volume de negócios de €105.339.629,00.

                   2 - Factos Não Provados

                  Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão final deste recurso.”

                   FUNDAMENTOS DE DIREITO

                  Saber se a arguida cometeu a contraordenação de que foi absolvida na sentença recorrida

                  Na sentença recorrida considerou-se: “Em face desta factualidade verificamos que a candidata AA acabou por não ter sido contratada pela Arguida importando saber se, como se refere na decisão administrativa, foi preterida a garantia de igualdade e não discriminação em função do sexo porventura por ter exercido o direito ao gozo da licença parental.

                  Importa referir que a contratação da candidata AA pressupunha a (possível) transferência da técnica dos Recursos Humanos, CC, para o serviço de urgência geral do A..., que aquela iria substituir para dar continuidade na ocupação do posto de trabalho nos Recursos Humanos. Essa transferência não se concretizou. E dessa não concretização não pode extrair-se a conclusão que a Arguida pretendeu criar alguma situação de desigualdade ou discriminar a referida candidata nomeadamente em razão do sexo. De facto, a Arguida pretendia com a contratação da candidata AA a disponibilidade efetiva da mesma para o trabalho no primeiro dia útil de maio de 2022 porque era essencial assegurar o preenchimento efetivo do posto de trabalho e causa por forma a garantir a organização de escalas e o pagamento dos serviços prestados às entidades prestadoras de cuidados de saúde à Arguida. E, na verdade, a Arguida não contratou qualquer dos candidatos ordenados no âmbito do referido procedimento de 30/09/2020 sendo ainda que o prazo de validade da lista ordenada pelo concurso era de 18 meses, contados da data de homologação da lista unitária de ordenação final, o que sucedeu por deliberação de 30/09/2020, ocorrendo a respetiva caducidade em 30/03/2022.

                  De notar ainda que nada nos permite concluir que a candidata estivesse efetivamente disponível para iniciar as funções, desconhecendo-se, designadamente, qual o vínculo laboral que tinha na altura em que foi contactada pela Arguida e no momento em que gozava a licença parental.

                   Por outro lado, considerar que a contratação apenas não foi efetuada porque a candidata queria gozar a licença parental é inverter o sentido das coisas e significa extrair conclusões que não assentam em factos concretos. Importa ter presente que as conclusões apenas podem ser extraídas com base em factos concretos que as sustentem. No caso vertente a vaga nem sequer chegou a ser aberta e estava na livre disponibilidade da Arguida tomar a decisão de contratar. Consequentemente, nenhuma discriminação, concretamente em função do sexo, se vislumbra possa ter sido cometida (precisamente porque o lugar não foi preenchido) não tendo existido também preterição desta candidata em benefício de outrem.

                   Em suma, tendo em vista a factualidade apurada, as normas legais citadas e as considerações expostas, temos que não se verificam os elementos necessários para imputar objetiva e subjetivamente a contraordenação à Arguida, a qual deverá, a final, ser absolvida.”

                   Sustenta em síntese o MP que estava na disponibilidade do A... tomar a decisão de contratar. Porém, depois de tomar essa decisão não lhe é licito deixar de contratar com fundamento em que a candidata, por causa do exercício da licença de maternidade, não tinha disponibilidade para iniciar de imediato a prestação laboral.

                   Vejamos:

                  O direito à igualdade está genericamente consagrado no artigo 13.º da Constituição da República e a sua concretização laboral é feita no mesmo diploma (artigo 59.º, n.º 1, através do princípio da igualdade de tratamento).

                   E o artigo 67.º- Família -consagra:

                   “1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. 2. Incumbe, designadamente, ao Estado para proteção da família: a) a g) (…);

                  h) Promover, através da concertação das várias políticas sectoriais, a conciliação da atividade profissional com a vida familiar.”.

                  Por sua vez, o artigo 68.º- Paternidade e maternidade –prescreve:

                   “1. Os pais e as mães têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país.

                   2. A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes.

                  3. As mulheres têm direito a especial proteção durante a gravidez e após o parto, tendo as mulheres trabalhadoras ainda direito a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer regalias.

                   4. A lei regula a atribuição às mães e aos pais de direitos de dispensa de trabalho por período adequado, de acordo com os interesses da criança e as necessidades do agregado familiar.”.

                  A Diretiva 2006/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5.07.2006 alude à construção jurisprudencial do princípio da igualdade de oportunidades e igualdade de tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados ao emprego e à atividade profissional. De acordo com os considerandos 23 e 24 da referida Diretiva é expressamente referido que: “(…) Ressalta claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que qualquer tratamento desfavorável de uma mulher relacionado com a gravidez ou a maternidade constitui uma discriminação sexual direta em razão do sexo. (…) O Tribunal de Justiça tem repetidamente reconhecido a legitimidade, em termos do princípio da igualdade de tratamento, de proteger a condição biológica da mulher na gravidez e na maternidade e de adotar medidas de proteção da maternidade como meio de atingir uma igualdade concreta. (…) ”.

                  Na verdade, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, em 30 de abril de 1998 – Acórdão Thibault – esclareceu inequivocamente que: “25. (…) A atribuição de tais direitos, reconhecidos na diretiva1, tem por objetivo garantir a concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere tanto ao acesso ao emprego (artigo 3.º, n.º 1) como às condições de trabalho (artigo 5.º, n.º 1). Portanto, o exercício dos direitos conferidos às mulheres em conformidade com o artigo 2.º, n.º 3, não pode ser objeto de um tratamento desfavorável no que se refere ao seu acesso ao emprego assim como às suas condições de trabalho. Nesta perspetiva, a diretiva tem em vista atingir uma igualdade substancial e não formal.”

                   Na lei ordinária, o artigo 24.º -Direito à igualdade no cesso a emprego e no trabalho - do CT prescreve:

                  1- O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.

                  2 - O direito referido no número anterior respeita, designadamente:

                  a) A critérios de seleção e a condições de contratação, em qualquer setor de atividade e a todos os níveis hierárquicos;

                  b) A acesso a todos os tipos de orientação, formação e reconversão profissionais de qualquer nível, incluindo a aquisição de experiência prática;

                   c) A retribuição e outras prestações patrimoniais, promoção a todos os níveis hierárquicos e critérios para seleção de trabalhadores a despedir;

                   d) A filiação ou participação em estruturas de representação coletiva, ou em qualquer outra organização cujos membros exercem uma determinada profissão, incluindo os benefícios por elas atribuídos.

                  3 - O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação:

                  a) De disposições legais relativas ao exercício de uma atividade profissional por estrangeiro ou apátrida;

                  b) De disposições relativas à especial proteção de património genético, gravidez, parentalidade, adoção e outras situações respeitantes à conciliação da atividade profissional com a vida familiar. (…)”.

                  De acordo com o n.º 1 do artigo 25.º-Proibição de discriminação- o empregador não pode praticar qualquer discriminação, direta ou indireta, em razão dos fatores enunciados no n.º 1 do artigo anterior, ou seja, será discriminatória a conduta do empregador que privilegie, beneficie, prejudique, prive de qualquer direito ou isente de qualquer dever um trabalhador ou candidato a emprego, em razão da ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, doença crónica, nacionalidade, raça ou origem étnica, religião, convicções políticas ou religiosas, filiação sindical, território de origem, língua, grau de instrução, situação económica e condição social.

                  Mas, são, igualmente, de integrar nas condutas discriminatórias, as condutas do empregador que tenham motivos relacionados com a parentalidade (artigo 25.º, n.º 6), bem como o assédio discriminatório e o assédio sexual.

                  O legislador procede, assim, a um elenco dos fatores de discriminação através da remissão para o artigo anterior, mas não faz de forma taxativa, uma vez que utiliza o advérbio “nomeadamente”.

                  Ao mesmo tempo, estabelece as situações em que não haverá discriminação, definindo que não será considerada como tal o comportamento do empregador baseado num dos fatores enunciados no n.º 1 do artigo 24.º, desde que (artigo 25.º, n.º 2):

                  – esse fator constitua uma requisito justificável e determinante para o exercício da atividade profissional;

                  – em virtude da natureza da atividade em causa ou do contexto da sua execução;

                  – devendo o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.”[1]

                  Por sua vez, o artigo 30º- Acesso ao emprego, atividade profissional ou formação- dispõe:

                 “1 - A exclusão ou restrição de acesso de candidato a emprego ou trabalhador em razão do sexo a determinada atividade ou à formação profissional exigida para ter acesso a essa atividade constitui discriminação em função do sexo.

                  2 - O anúncio de oferta de emprego e outra forma de publicidade ligada à pré-seleção ou ao recrutamento não pode conter direta ou indiretamente, qualquer restrição, especificação ou preferência baseada no sexo.

                  3 - Em ação de formação profissional dirigida a profissão exercida predominantemente por trabalhadores de um dos sexos deve ser dada, sempre que se justifique, preferência a trabalhadores do sexo com menor representação, bem como, sendo apropriado, a trabalhador com escolaridade reduzida, sem qualificação ou responsável por família monoparental ou no caso de licença parental ou adoção.

                  4 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos nºs 1 ou 2.”

                  O artigo 35º-A-Proibição de discriminação pelo exercício dos direitos de maternidade e paternidade- no seu nº 1 acrescenta:

                  “É proibida qualquer forma de discriminação em função do exercício pelos trabalhadores dos seus direitos de maternidade e paternidade.”

                   E o artigo 40º-Licença Parental Inicial, nos seus nºs 1, e 2- estabelece:

                   “1- A mãe e o pai trabalhadores têm direito, por nascimento de filho, a licença parental inicial de 120 ou 150 dias consecutivos, cujo gozo podem partilhar após o parto, sem prejuízo dos direitos da mãe a que se refere o artigo seguinte.

                  2- O gozo da licença referida no número anterior pode ser usufruído em simultâneo pelos progenitores entre os 120 e os 150 dias.”

                   Por fim, o artigo 41º- Períodos de licença parental exclusiva da mãe- no seu nº 2- preceitua:

                   “É obrigatório o gozo, por parte da mãe, de seis semanas de licença a seguir ao parto.”

                  O tratamento diferenciado de trabalhadora por razões ligadas ao exercício de direitos atinentes à maternidade é de qualificar como conduta de discriminação em razão do sexo.

                   Com interesse para a questão em apreço, importa sublinhar os seguintes factos dados como provados:

                  2- Por deliberação de 15/07/2020 do Conselho de Administração do A... foi aberto um procedimento concursal para ordenação de uma lista de pessoas como reserva de recrutamento para as funções de técnico superior na Arguida e no qual a candidata AA obteve o primeiro lugar da classificação para o exercício do cargo de técnico superior de recursos humanos.

                  3- Em 27/01/2022 o Dr. BB contactou telefonicamente a candidata AA para aferir da sua disponibilidade para iniciar funções em 01/03/2022.

                   4 - A candidata AA manifestou interesse em iniciar funções e informou que se encontrava grávida, com data prevista para o parto no início de abril de 2022.

                  5 - O Dr. BB informou-a que pretendia saber da disponibilidade da candidata, não sendo certa a sua admissão na medida em que a mesma dependia também da transferência de uma outra trabalhadora para outro serviço.

                   6 - Em 17/02/2022 a candidata contactou telefonicamente o Dr. BB, o qual informou não ter mais informação quanto ao momento da admissão, mas que esta, a ocorrer, poderia não ter lugar em 01/03/2022.

                  7 - Em 28/03/2022 o Dr. BB contactou a candidata questionando-a quanto à sua disponibilidade para iniciar funções no dia 01/05/2022.

                  8 - A candidata solicitou um dia para pensar, tendo informado o Dr. BB, no dia 29/03/2022, que tinha disponibilidade e interesse para iniciar funções na data pretendida.

                  11- Aquando da sua deslocação, em 11/04/2022 à sede/instalações da arguida para proceder à entrega de documentos, a candidata informou o Dr. BB que não poderia iniciar funções no dia 01/05/2022 porque ainda estaria a gozar a licença parental exclusiva da mãe, mas que o poderia fazer logo no dia 05/05/2022, indo trabalhar uma semana, a que se seguiria o gozo da restante licença parental (de três meses).

                   12- O Dr. BB informou a candidata que o pressuposto para a sua contratação tinha assentado na sua disponibilidade anteriormente demonstrada quanto à data de 02/05/2022 para início efetivo de funções e que assim sendo, a contratação não poderia concretizar-se.

                   13- Nesse dia 11/04/2022 a candidata preencheu, a pedido dos Recursos Humanos da arguida, a documentação necessária ao processo de admissão, bem como entregou cópia do requerimento entregue na Segurança Social para efeitos de subsídio parental.

                  14- A candidata AA voltou a ser contactada pelo Dr. BB no dia 27/04/2022, através de email, no qual refere, além do mais, o seguinte: “(…) Face à indisponibilidade manifestada por V.ª Ex.ª, aliás, em contradição com o anteriormente indicado, tornou-se impossível o preenchimento dos condicionalismos supra expostos.

                  Nesta medida, e considerando a indisponibilidade que nos manifestou, bem como a caducidade da reserva de recrutamento (corre atualmente outro procedimento com o mesmo fim, iniciado em 2022.03.31), foi pelo Sr. Presidente do Conselho de Administração do A... proferido despacho a 2022.04.26, no qual decidiu, conforme informação do aqui signatário, o seguinte:

                  a) A trabalhadora do Serviço de Gestão do Serviço de Recursos Humanos CC, atual titular do posto de trabalho em causa, no Serviço de Gestão de Recursos Humanos, mantém-se a ocupar o respetivo posto de trabalho, uma vez que este deixou de ser passível de ser preenchido de forma sucessiva em 2022.05.02;

                   b) A candidata AA, seja informada da impossibilidade que o seu recrutamento venha a ter lugar, em virtude de estar indisponível para iniciar funções na data determinada;

                  c) A candidata Dr.ª AA seja convidada a candidatar-se à reserva de recrutamento cuja constituição se encontra presentemente em curso, destinada à hipotética contratação futura para posto de trabalho de técnico superior no Serviço de Recursos Humanos do A... que venha eventualmente a vagar ou para o qual haja autorização.

                   15 - A contratação da candidata AA pressupunha a possível transferência da técnica dos Recursos Humanos, CC, para o serviço de urgência geral do A..., que aquela iria substituir para dar continuidade na ocupação do posto de trabalho nos Recursos Humanos.

                  18- A arguida não contratou qualquer dos candidatos ordenados no âmbito do referido procedimento de 30/09/2020.

                  19- O prazo de validade da lista ordenada pelo concurso era de 18 meses, contados da data da homologação da lista unitária de ordenação final, o que sucedeu por deliberação de 30/09/2020, ocorrendo a respetiva caducidade em 30/03/2022.

                  23- A arguida pretendia com a contratação da candidata AA a disponibilidade efetiva da mesma para o trabalho no primeiro dia útil de maio de 2022 porque era essencial assegurar o preenchimento efetivo do posto de trabalho e causa por forma a garantir a organização de escalas e o pagamento dos serviços prestados às entidades prestadoras de cuidados de saúde à arguida.

                  24- Não se tendo concretizado a contratação da candidata AA, a técnica superior CC, que ocupava o posto de trabalho em questão, já não foi mobilizada e não chegou a abrir a vaga para contratação de um novo técnico superior para aquele posto de trabalho.

                  Concorda-se, pois, com o Exmº Procurador Geral Adjunto quando afirma que “se a arguida logrou, em termos de organização dos seus serviços, que a funcionária que ocupava o cargo em causa continuasse a ocupá-lo permanentemente sem necessidade de admissão imediata de qualquer outro funcionário, então a arguida poderia perfeitamente ter admitido AA apenas no dia 5/05/2022 e ter ainda permitido à mesma o gozo da licença parental restante (de três meses), desempenhando a referida funcionária, FF, de 1 a 4 de maio e nos três meses de gozo da licença parental de AA, o cargo em causa.

                  É certo que estava na disponibilidade da arguida tomar a decisão de contratar. Porém, não lhe era licito deixar de contratar com o fundamento em que a candidata (por causa do exercício da licença de maternidade) não tinha disponibilidade para iniciar de imediato a prestação laboral.

                  A arguida apenas não admitiu AA ao seu serviço porque não quis, devido aos motivos indicados: Por se encontrar em gozo de licença parental exclusiva até ao dia 5/05/2022, por ter de gozar ainda licença parental e, assim, por ter sido mãe e ser mulher”.

                  Discordamos também da sentença recorrida quando considerou que não houve discriminação em função do sexo, porque o lugar não foi preenchido, não tendo existido também preterição desta candidata em beneficio de outrem, porquanto a simples “restrição de acesso de candidato a emprego”, em razão do sexo, nos termos do art.º 30º do CT não exige a preterição de um candidato a favor de outro.

                   Por fim, e no que respeita à caducidade da validade da lista ordenada pelo concurso (que não foi invocada para fundamentar a decisão de não contratação), convém referir que as diligências para seleção dos candidatos são efetuadas dentro da vigência da reserva, ainda que a contratação propriamente dita possa ocorrer já após o seu termo.[2]

                   O comportamento da arguida constituiu, pois, um manifesto ato discriminatório relativo ao direito à igualdade no acesso ao emprego em função da maternidade, em virtude de a trabalhadora AA pretender exercer os direitos que a lei – comunitária, constitucional e ordinária – lhe reconhecem na sua condição de mãe, nos termos supra descritos.

                   Procede, pois o recurso do Ministério Público.

                   DECISÃO

                  Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, e, em consequência, revoga-se a decisão judicial, confirmando-se, a decisão administrativa da Diretora do Centro Local do Lis da Autoridade para as Condições de Trabalho que aplicou à arguida A..., E.P.E. a coima de €15.300,00, pela prática da contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos nºs 1 e 3 do art.º 30º , n.º 1 do art.º 35.º-A, nos n.ºs 1, 2 e 11 do art.º 40.º e n.º 2 do art.º 41.º, todos do Código do Trabalho.

                   Custas pela arguida.

                                                                                                              Coimbra, 12 de janeiro de 2024

                   Mário Rodrigues da Silva- relator

                   Jorge Loureiro- adjunto

                   Paula Maria Roberto- adjunta

                                                              

                   Sumário:

                   (…).

                  Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original


([1]) Paulo Morgado, Ónus da prova em caso de discriminação, pp. 115, 116 e 117, file:///C:/Users/MJ01646/Downloads/9959-Artigo-17098-1-10-20210405%20(5).pdf.

[2] Cfr. depoimento da testemunha GG, Diretor do Serviço de Recursos Humanos da arguida- auto de inquirição de testemunha perante a ACT- fls. 54-55.