Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/07.1GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
DETECÇÃO QUANTITATIVA DE ÁLCOOL 30 MINUTOS APÓS TESTE QUALITATIVO
ORDEM
NOÇÃO
Data do Acordão: 11/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MANGUALDE – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 348.º, N.º 1, B) DO C.PENAL- ART.º 2º, 1 DECRETO REGULAMENTAR Nº 24/98, DE 30 DE OUTUBRO
Sumário: 1. Não existe impedimento legal para a realização do teste quantitativo decorridos que sejam mais de 30 minutos após a realização do teste qualitativo.
2. Uma ordem, para ser compreendida e para ser eficaz, não exigirá, normalmente, um tom imperativo, uma ríspida intimação ou uma autoritária imposição, bastando-se com uma declaração polida cuja eficácia advirá da compreensão, pelo destinatário, do seu sentido e das obrigações que sobre si impendem.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum provenientes do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Mangualde, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença decidindo nos seguintes termos:
(…)
Tudo visto e ponderado, julgamos a acusação procedente por provada e condenamos o arguido A...:
a) como autor material dum crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, b) do C.Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5 € (cinco euros) o que perfaz o montante de 450 € (duzentos e setenta euros), a que correspondem 60 dias de prisão subsidiária.
b) Condenar o arguido, nos termos do art. 69.º, n.º 1, c) do C.P. na inibição de conduzir pelo período de 90 dias;
c) Condenar ainda o arguido no pagamento da taxa de justiça que se fixa 4 Uc’s, acrescida de 1 % (art. 13.º, n.º 3 do D.L. n.º 423/91 de 30/9) em ¼ de procuradoria e demais custas.
(…)

Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
a) A decisão quanto à matéria de facto mostra-se incorrecta porquanto não deu como assente, face ao depoimento da testemunha C…, que o arguido efectuou o teste qualitativo só se tendo recusado ao teste quantitativo;
b) E mostra-se igualmente errada, ao dar como provado que foi solicitado ao arguido que efectuasse o sopro no aparelho DRAGER modelo 7110MKIIIP devidamente aprovado e autorizado pela DGV através do oficio nº 0011DGVIALCI98 de 06.08.98, porque a tal respeito nada consta do auto de noticia, e o depoimento da testemunha C… foi hesitante e não esclarecedor relativamente ao aparelho que se pretendia utilizar;
c) Deverá, pois, ser alterada a decisão relativa a matéria de facto, de forma a que se dê como provado que o arguido efectuou o teste qualitativo e que a recusa se refere ao teste quantitativo, e que não se dê como provado que o aparelho que se pretendia usar para este último era o referido na alínea anterior;
d) Tais alterações à decisão quanto à matéria de facto implicarão a alteração da decisão condenatória porquanto se ignora se foi observado o prazo de 30 minutos previsto no Decreto Regulamentar 24/98 de 30/10 e se o aparelho a utilizar se encontrava devidamente homologado;
e) Ainda que não seja alterada a decisão relativa à matéria de facto elou que não se dê provimento à conclusão anterior, terá que se revogar a decisão condenatória por não se mostrar provado que o agente da autoridade ordenou e/ou mandou que o arguido soprasse no aparelho em uso e que o tenha advertido de que a recusa seria punida como desobediência;
f) Efectivamente, a decisão recorrida só deu como assente que o agente solicitou que o arguido soprasse no aparelho;
g) Violou, pois, tal decisão, nesta parte, o disposto no art. 348° do CP;
h) A acusação do M. P. pela qual o arguido foi submetido a julgamento é omissa no que toca à imputação da medida acessória do art. 69º, n° 1, alínea b) do CP;
i) Tal peça processual é que define a temática do objecto do processo e por ela se rege a defesa do arguido, tendo presente a estrutura acusatória do regime processual penal português;
j) Não podia, pois, o arguido ser condenado na proibição de conduzir veículos, prevista no citado preceito legal, imputando-se nesse aspecto à decisão recorrida a violação do disposto nos arts. 283° n° 3 alineas b) e c) do CPP e 69° nº 1 alínea b) do CP;
I) Impor-se-á, pois, e ainda que se mantenha a condenação pelo crime de desobediência, que seja revogada a decisão no tocante à proibição de condução de veículo com motor;
Decidindo-se nos termos expostos e naqueles que V, Exas. doutamente suprirem, será feita a habitual justiça!

O M.P. respondeu, pugnando pela parcial procedência do recurso, por se ter verificado uma alteração de qualificação jurídica dos factos sem que tenha sido cumprido o disposto no art. 358º, nº 3, do CPP, resultando em nulidade de sentença, a obrigar à reabertura da audiência.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, sufragando parcialmente a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância e pronunciando-se pela procedência do recurso, ainda que por razões diversas das alegadas, com declaração da nulidade da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
- Impugnação da matéria de facto;
- Relevância da submissão do agente ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue para além de 30 minutos após a realização do teste qualitativo;
- Sentido da expressão “… solicitou-lhe se submetesse à prova estabelecida para a detecção do estado de influencia pelo álcool, através de análise do ar expirado…”, constante da sentença;
- Falta de referência, na acusação deduzida, da aplicabilidade da pena acessória prevista no art. 69º do Código Penal.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
1. No dia 26/01/2007, pelas 17h 15m, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula 89-CO-56 na Rotunda do Pingo Doce, em Mangualde
2. Foi então o arguido interceptado e mandado parar pelo Cabo C… do DT de Viseu da GNR, o qual ali se encontrava devidamente uniformizado, no exercício das suas funções de fiscalização do trânsito em geral.
3. Quando o arguido imobilizou a viatura, foi abordado pelo referido agente de autoridade, que, a fim de o fiscalizar, lhe solicitou-lhe se submetesse à prova estabelecida para a detecção do estado de influencia pelo álcool, através da análise do ar expirado, para o que teria de efectuar o competente sopro no aparelho DRAGER modelo 7110MKIII P. devidamente aprovado e autorizado pela D.G.V., através do ofício n.º 001/DGV/ALC/98, 06.08.98
4. O arguido disse que se recusava terminantemente a ser sujeito a tal exame, tendo-se efectivamente recusado a soprar.
5. O arguido agiu com o propósito de faltar como faltou, à obediência que sabia devida a ordem legitima, regularmente comunicada e emanada de autoridade competente, o que fez deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo criminosa a sua conduta.
6. O arguido não compareceu em audiência, apesar de devidamente notificado.

7. O arguido tem os antecedentes criminais constantes de fls. 84.


A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
A convicção do tribunal quanto aos factos apurados, baseou-se na análise dos documentos juntos aos autos, no depoimento da testemunha C…. Agente da GNR/BT, o qual confirmou os factos constantes da acusação, designadamente que o arguido efectuou o teste qualitativo e que acusou álcool no sangue pelo que lhe solicitou que efectuasse o teste quantitativo, ao que este se recusou mesmo depois de lhe ter comunicado que tal o faria incorrer em crime de desobediência e no C.R.C. de fls. 84.

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A primeira questão suscitada pelo recorrente prende-se com a impugnação da decisão relativa ao julgamento da matéria de facto. A divergência entre o que na sentença se teve como provado e aquilo que deveria ter sido dado como provado traduz erro de julgamento da matéria de facto, sindicável pelo tribunal superior apenas se tiver havido documentação da prova produzida em audiência e se o recorrente interessado na respectiva impugnação observar, em sede de recurso, o que pertinentemente dispõe o art. 412º do CPP (código a que se reportam também as demais disposições legais citadas sem indicação do diploma de origem).
Como resulta patente das “conclusões” do recurso acima transcritas, estas não dão cumprimento aos imperativos legais concernentes à impugnação da matéria de facto, o que releva na exacta medida em que tais conclusões servem, entre outras finalidades, a da delimitação do objecto do recurso - Jurisprudência constante dos tribunais superiores., que opera a vinculação temática do tribunal superior, definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que, como tal, podem sempre ser oficiosamente apreciadas independentemente de terem ou não sido suscitadas pelo recorrente na motivação.
Voltemos, pois, uma vez mais, ao tema da impugnação do julgamento de facto. Comecemos pela estrutura do recurso, a que o Código de Processo Penal dedica o art. 412º:
Todo o recurso é motivação! Di-lo o nº 1 do art. 412º: “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões…”.
Como referem Simas Santos e Leal-Henriques, “o actual legislador usa o termo motivação num sentido que não difere daquele que era atribuído às alegações do código anterior, e que se materializa na demonstração da razão que assiste à parte recorrente, ou seja, na justificação do ponto de vista que se quer fazer vingar em oposição ao decidido” - “Recursos em Processo Penal”, 5ª Ed., pag. 91.
. Simplesmente, a motivação divide-se em duas partes perfeitamente distintas, mas dialecticamente imbricadas, cumprindo cada uma delas a sua própria função:
- A motivação propriamente dita, ou motivação stricto sensu, constituída pelo conjunto de argumentos ou razões que consubstanciam o inconformismo do recorrente com a decisão atacada (os fundamentos do recurso, no dizer da lei);
- As conclusões, constituídas por uma síntese ou resumo dos fundamentos desenvolvidos no corpo da motivação, concretizando os aspectos que foram mal decididos (onde se decidiu mal), as razões que justificam decisão diversa (porque se decidiu mal) e o sentido da decisão pretendida (como se deveria ter decidido).
Dissemos, supra, que entre estes dois elementos da estrutura do recurso intercede uma relação de imbricação dialéctica. Justifiquemo-lo, pois:
O corpo da motivação é constituído pelo conjunto fundamentado de argumentos da mais diversa ordem em que o recorrente estriba a sua discordância com a decisão do tribunal recorrido, sejam os erros do julgamento de facto ou de direito ou os vícios da decisão. Mas, para além de concatenar, numa sequência lógica ou orgânica, a razão da discordância relativamente ao decidido, fixa definitivamente a abordagem que o recorrente pretende fazer da decisão recorrida, em ordem a obter a sua alteração ou revogação, isto é, delimita o âmbito do recurso, que já não poderá ser alterado e que também não poderá ser excedido pelas conclusões.
Já as conclusões, enquanto resumo da motivação stricto sensu, delimitam o objecto do recurso, em obediência às imposições legais, nos seguintes termos:
- Sintetizando os argumentos expendidos na motivação;
- Indicando as normas jurídicas violadas e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, indicando a norma que o recorrente entende dever ser aplicada;
- Indicando o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou o sentido com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que deveria ter sido aplicada;
- Indicando os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
- Indicando as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, estas por referência ao consignado na acta e com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação;
- Indicando ainda, se for caso disso, as provas que devem ser renovadas, também por referência ao consignado em acta e com a mesma indicação concreta dos fundamentos da impugnação;
- E indicando, por fim, se houver recursos retidos, quais os que mantêm interesse.

A delimitação do objecto do recurso pelas conclusões formuladas estabelece uma fronteira que se impõe ao tribunal superior, de tal sorte que se o recorrente tratar uma questão na motivação e não a retomar nas conclusões, a questão ficará arredada do âmbito do recurso.
Se porventura as conclusões faltarem ou se delas não for possível deduzir as indicações acima referidas, o relator convidará o recorrente a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las, sob pena de rejeição do recurso ou de não conhecimento parcial. Com uma importantíssima limitação, contudo: o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso já fixado na motivação (nº 4 do art. 417º). Assim, não pode o recorrente aproveitar o convite previsto no nº 3 deste art. 417º para tratar questões não abordadas na motivação que inicialmente apresentou, assim como não poderá tratar em sede de conclusões aspectos não abordados na motivação. E se o fizer, não serão conhecidos, por essas “conclusões” não traduzirem a síntese de matéria antes tratada no corpo da motivação.

No caso em análise, o recorrente limita-se, na motivação stricto sensu, como nas conclusões, a uma genérica indicação do teor dos depoimentos, o que não constitui modo admissível de impugnação, por não traduzir a indicação das passagens em que esta se funda. Simplesmente, a lei adjectiva não é letra morta nem é de cumprimento facultativo. Querendo impugnar a matéria de facto, o recorrente tem que organizar o recurso com observância do formalismo previsto nos nºs 3 e 4 do art. 412º; nomeadamente, tem que indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e tem que indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
A indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados faz-se pela indicação precisa dos factos, escrevendo-os ou, pelo menos, indicando as alíneas correspondentes.
Tratando-se de facto omisso, vale exactamente o mesmo princípio. O recorrente indicará o facto em falta tal como ele deveria constar da enumeração do provado. Não se pretende uma indicação genérica, uma indicação explicativa ou a indicação do sentido do facto, mas a indicação precisa. Só assim se atinge a concretização exigida pela lei, que não resulta de mero capricho do legislador, antes serve uma finalidade prática: o tribunal de recurso, confrontado com a impugnação da matéria de facto, tem que conhecer exactamente o sentido e o alcance da impugnação; tem que saber exactamente – nem mais, nem menos – o que é que o recorrente entende que está mal julgado!
Não basta, contudo, indicar o que se considera mal julgado. Dizer apenas que um determinado facto foi mal julgado é conclusivo e as meras conclusões de nada valem. Há que explicar por que razão se entende ser incorrecto o julgamento de facto. Também neste particular aspecto a estatuição legal é clara e inequívoca: essa indicação faz-se com a menção das concretas provas – para cada facto, obviamente – que impõem decisão diversa, mais uma vez em obediência a um objectivo prático, que é o de garantir que a impugnação apresentada tem subjacente fundadas razões de discordância.
E como se faz essa indicação, tendo a prova sido gravada?
A lei também o diz: faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do nº 2 do art. 364º, acrescido da indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação. É este o sentido útil da lei.
Expliquemo-lo mais detalhadamente:
Segundo o nº 2 do art. 364º, “quando houver lugar a gravação magnetofónica ou áudio-visual, deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração”.
Por seu turno, o nº 4 do art. 412º diz que as especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, “…devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Portanto, impugnando um determinado ponto de facto, que concretizará, o recorrente terá que indicar as provas que fundamentam a impugnação, identificando os depoentes ou declarantes cujas afirmações corroboram a posição sustentada, indicando, por referência ao consignado na acta, as passagens concretas que fundamentam a discordância relativamente ao aspecto em análise.
Esta indicação concreta implica a indicação dos segmentos relevantes da gravação (é o que resulta da conjugação dos nºs 4 e 6 do art. 412º); o que não significa que apenas os segmentos indicados pelo recorrente venham a ser ouvidos. O tribunal de recurso procederá à audição “… das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa” (nº 6 do art. 412º).
Subjacente a estas exigências legais estão, mais uma vez, razões de ordem prática: garantir que o recorrente não reduz a sua impugnação a considerandos genéricos sobre o sentido da prova e a credibilidade dos depoimentos e assegurar, simultaneamente, a racionalização da actividade do tribunal superior. Por um lado, responsabiliza-se o recorrente pela indicação precisa dos elementos que impõem uma decisão diversa da recorrida, indicando o trecho do depoimento que pretende invocar e a sua localização; e ao mesmo tempo, faculta-se um acesso simples do tribunal de recurso aos elementos que o recorrente invoca.
Estas exigências têm uma justificação óbvia: feita a indicação nos termos legais, o tribunal de recurso pode aceder de imediato ao trecho da gravação relevante, enquanto que feita a referência ao depoimento, o tribunal de recurso ver-se-ia na contingência de ter que ouvir todo o depoimento para encontrar aquele trecho. A diferença de procedimento, consoante a complexidade do caso e o volume de prova produzida em audiência, poderia traduzir-se em horas, ou dias, ou semanas de trabalho inútil, assim se frustrando um dos objectivos da lei, que já acima se enunciou: a racionalização da actividade do tribunal de recurso.

Como se referiu supra, se as conclusões faltarem ou se delas não for possível deduzir as indicações acima referidas, o relator convidará o recorrente a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las, sob pena de rejeição do recurso ou de não conhecimento parcial; procedimento que deverá ser adoptado apenas se através desse convite for possível ultrapassar a limitação decorrente da omissão verificada e conhecer da matéria de facto, já que a lei obsta à prática de actos inúteis. E no caso vertente, inútil se revela o convite para correcção, porquanto o vício vem da própria motivação e esta é inalterável, não podendo as conclusões exceder os limites definidos por aquela.
Mostra-se, assim, prejudicado, pelas razões apontadas, o conhecimento do recurso no que concerne à impugnação da matéria de facto
Consequentemente – e porque também não se vê que a decisão padeça de qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP – a matéria de facto há-de ter-se por definitivamente fixada.

Questão que de seguida importa tratar é a da relevância da submissão do agente ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue para além de 30 minutos após a realização do teste qualitativo. Isto porque o recorrente veio sustentar que ignorando-se o tempo decorrido entre a realização deste último teste e a interpelação do arguido para se submeter ao teste quantitativo, podendo ter ocorrido para além dos 30 minutos previstos, não estava obrigado a submeter-se a esse teste.
O Decreto Regulamentar nº 24/98, de 30 de Outubro, previa um regime de verificação sucessiva de detecção de álcool no sangue e de quantificação do respectivo teor. Num primeiro momento, a autoridade fiscalizadora procedia a um teste de despistagem nos condutores fiscalizados, verificando a presença de álcool no sangue através de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo. Caso o teste se revelasse positivo, indiciando a presença de álcool no sangue, o condutor era então submetido a novo teste, desta vez em analisador quantitativo, visando a quantificação da taxa de álcool no sangue por meio de teste no ar expirado, “(…) devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos” (art. 2º, nº 1, parte final, do referido Decreto Regulamentar).
Não é imperativo o teor da parte da norma transcrita nem é de protecção ao arguido a finalidade por ela visada. Bem pelo contrário, na medida em que apenas o resultado obtido pelo teste quantitativo se revestia de relevância penal, a recomendação legal “sempre que possível” advertia para a necessidade de realização do teste quantitativo num curto período de tempo após a análise qualitativa, de modo a obviar a que, por força de incúria do agente fiscalizador ou de desnecessárias delongas ou expedientes criados pelo próprio condutor fiscalizado, o decurso do tempo permitisse a redução dos valores de álcool no sangue, impedindo a determinação do valor ajustado ao momento em que ocorreu a condução, permitindo que o condutor fiscalizado se eximisse à sua responsabilidade. Na génese deste conteúdo da norma está a constatação cientificamente reconhecida de que “a fase de eliminação do etanol corresponde à diminuição da sua concentração devido à oxidação bioquímica, que ocorre principalmente no fígado” - M. Céu Ferreira e António Cruz, “Controlo Metrológico de Alcoolímetros no Instituto Português da Qualidade” (2º Encontro Nacional da Sociedade Portuguesa de Metrologia)., sendo de esperar uma redução progressiva da concentração de álcool no sangue após a concentração máxima alcançada.
Segue-se, do exposto, que é manifestamente desprovida de fundamento a tese sustentada pelo arguido segundo a qual, decorrido o referido período de 30 minutos, não estava obrigado a submeter-se ao teste quantitativo.

Questiona o arguido o sentido da expressão “… solicitou-lhe se submetesse à prova estabelecida para a detecção do estado de influencia pelo álcool, através de análise do ar expirado…”, constante da sentença, sustentando que solicitar não corresponde a uma ordem, pelo que não estaria verificado um dos requisitos do tipo legal de crime imputado ao arguido.
Lemos algures, sem que hoje saibamos precisar onde, que não basta o recurso a um bom dicionário para subverter o sentido da lei, afirmação cujo bem fundado vamos uma vez mais corroborar, repetindo o que em ocasiões similares tivemos ocasião de afirmar relativamente a questões em tudo idênticas: É no contexto das significâncias vertidas no texto que haverá que encontrar a dimensão que se pretendeu imprimir à palavra escrita. A própria linguagem, segundo Nietzsche, é metáfora do real, no sentido em que ele nela cria uma transposição que se afirma em dois planos distintos: na relação do locutor com o interlocutor e nas comparações que assemelham ou diferenciam elementos significáveis, tornando a palavra compreensível. Nessa medida, a palavra escrita acaba por ser um jogo de «significâncias» - Sobre o tema, veja-se “Enciclopédia Einaudi – Vol. 11 – Oral / escrito / argumentação, pags. 118 e ss. e 146 e ss., cuja decifração, no entanto, exige a ponderação dos interesses que a movem e das interpretações que se lhes ajustam, particularmente numa língua tão rica de conteúdos como é a língua portuguesa, em que são frequentes, entre uma palavra e o seu antitético, progressivas graduações de significado.
No caso vertente, basta ler nas palavras utilizadas aquilo que elas efectivamente significam para que a dimensão jurídica do que começou por ser apenas vocabular se ofereça com cristalina transparência. No caso, a palavra “solicitou-lhe”, por referência a uma situação de fiscalização policial em que se visou submeter o ora arguido ao teste de pesquisa no ar expirado para medição do teor de álcool no sangue, já depois de ter sido submetido ao teste qualitativo, como este, aliás, reconhece na motivação do seu recurso, não significa, obviamente, que lhe tenha sido pedido o obséquio de se submeter ao teste, mas sim que lhe foi determinado que o fizesse, ainda que, certamente, com educação e urbanidade, como convém a um agente da autoridade. De resto, uma ordem, para ser compreendida e para ser eficaz, não exigirá, normalmente, um tom imperativo, uma ríspida intimação ou uma autoritária imposição, bastando-se com uma declaração polida cuja eficácia advirá da compreensão, pelo destinatário, do seu sentido e das obrigações que sobre si impendem. Estamos, uma vez mais, no domínio das «significâncias» a que já acima aludimos. E sobre este tema, é despiciendo acrescentar o que quer que seja, tão evidente é a falta de razão subjacente ao argumento.

Suscita ainda o recorrente a questão da falta de referência, na acusação deduzida, da aplicabilidade da pena acessória prevista no art. 69º, nº 1, al. b), do Código Penal.
Neste particular aspecto oferece-se como manifesta a razão que assiste ao recorrente. A sentença recorrida é nula por ter condenado em pena acessória cuja aplicabilidade jamais foi comunicada ao arguido, já que não constava da acusação deduzida [em violação do disposto no art. 283º, nº 3, al. c), que impõe que a acusação contenha, sob pena de nulidade, a indicação das disposições legais aplicáveis] nem foi cumprido em audiência o previsto no art. 358º, nºs 1 e 3, donde decorre a verificação da previsão do art. 379º, nº 1, al. b) – nulidade da sentença.
A questão dispensa tratamento mais alargado, visto constituir jurisprudência uniformizada pelo STJ (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/2008) - Publicado no DR, Série I, nº 146, e 30/07/2008. Fixou jurisprudência nos seguintes termos: “Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º deste último diploma legal”.

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A Exmª Procuradora-Geral Adjunta suscitou ainda, pertinentemente, a nulidade da sentença decorrente também do facto de a condenação ter tido lugar com enquadramento da conduta do arguido na al. b) do art. 348º, quando esta integrava – e o arguido tinha sido acusado – pelo crime previsto na al. a) do mesmo artigo.
Independentemente da discussão sobre o enquadramento ajustado ou do eventual lapso do Mmº juiz a quo, como refere o M.P. (esse não é tema de conhecimento oficioso e não foi suscitado nas conclusões do recurso), há que convir, no entanto, que também a condenação por alínea diversa da indicada na acusação implicava o cumprimento do disposto no art. 358º, nºs 1 e 3, do CPP, pelo que também por esta via a inobservância daquele dispositivo legal é gerador da nulidade da sentença recorrida.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, dá-se provimento ao recurso, ainda que por razões distintas das invocadas e consequentemente, anula-se a sentença recorrida, determinando-se que o tribunal recorrido, reabrindo a audiência, sane as nulidades apontadas, proferindo nova sentença.
Sem tributação.

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Coimbra, ____________
(texto processado pelo relator e
revisto por todos os signatários)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Maria Pilar de Oliveira)