Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
874/03.3TMAVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI BARREIROS
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
ACORDO
HOMOLOGAÇÃO
MODIFICAÇÃO
DIVÓRCIO
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1410º E 1411º DO CPC
Sumário: Perante a alteração das circunstâncias, admite-se a modificabilidade da decisão homologatória do acordo de atribuição da casa de morada de família no âmbito de processo de divórcio.
Decisão Texto Integral: (.............)

2. Objecto do recurso.
O presente recurso de agravo tem por objecto o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de alteração de atribuição da casa de morada de família.
3. Enquadramento da pretensão da recorrente.
Na sequência da convolação de uma acção de divórcio litigioso em mútuo consentimento, a recorrente e o seu ex-marido acordaram, entre ouras coisas, na atribuição a ambos da casa de morada de família, o que foi homologado por sentença.
Veio agora, a recorrente pedir a alteração da atribuição da casa de morada de família, alegando alteração das circunstâncias.
Concluso o processo, foi proferido o despacho recorrido.
4. Alegações.
A recorrente alega que, estando separada de facto do ex-marido de há longa data, anterior ao pedido de divórcio, admitiu a possibilidade de continuar a viver na mesma casa do que ele, como vinha acontecendo, razão do acordo. Contudo, após o divórcio, o ex-marido começou a ter atitudes de desprezo em relação ao filho, portador de deficiência profunda, tentou expulsar a filha da casa, restringiu a circulação dentro da casa e agrediu fisicamente a recorrente e a filha, na altura grávida. Estes factos consubstanciam uma alteração superveniente que altera os pressupostos do acordo, estando em causa os princípios legais que devem presidir à atribuição de casa de morada de família, os interesses e a ordem familiar, pelo que, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 1411º do Código de Processo Civil, o despacho recorrido deve ser alterado, com vista à alteração do acordo referido.
...
II – Fundamentação.
6. Os factos.
A recorrente e o seu ex-marido, J ..., em 13 de Janeiro de 2005, convolaram a acção de divórcio que corria entre eles numa acção de divórcio por mútuo acordo, tendo acordado, entre ouras coisas, o seguinte: «o direito a habitar a casa de morada de família é atribuído a ambos os cônjuges até à partilha. Enquanto ambos os cônjuges habitarem a casa de morada de família, o autor entregará até ao dia dez de cada mês e com início no próximo mês, a quantia de 50,00 € como participação nas despesas de água, luz e gás. De momento não se fixam quaisquer outras quantias a título de alimentos entre os cônjuges, ficando sem efeito os alimentos provisórios fixados no despacho saneador de fls. 81 a 87». O acordo foi homologado por sentença.
Em 20 de Junho de 2006, num processo de inventário para separação de meações, no que respeita à casa de habitação e não havendo acordo entre a recorrente e o ex-marido, foi considerado que ela tinha sido edificada em momento anterior ao casamento, ocorrido em 22 de Junho de 1994, e foi a questão remetida para os meios comuns.
Em 24 de Outubro de 2006, a recorrente deu entrada a um pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família, alegando, entre outras coisas, que «na presente data existe a impossibilidade total de um relacionamento minimamente cordial entre o ora requerido e a restante família», o que concretizou alegando que o requerido rejeita o filho, portador de deficiência profunda, que agrediu a recorrente e a filha, na presença do filho, e que fecha portas à chave, impedindo a utilização da casa pela restante família.
Concluso o processo, foi proferido o despacho recorrido: «Indefere-se liminarmente o pedido, pois na acção de divórcio litigioso convertido em mútuo consentimento, os cônjuges, ora Requerente e Requerido, acordaram, singelamente, que o direito a habitar a casa de morada de família era atribuído a ambos os cônjuges (fls. 115 dos Autos principais), tendo tal acordo sido homologado por sentença transitada em julgado (fls. 116 e 117 dos mesmos)».
7. O Direito.
Não há unanimidade na questão de saber se a decisão de atribuição da casa de morada de família (AtCMF) pode ser posteriormente modificada, perante alteração das circunstâncias, ou não.
Dos mais recentes, decidiram pela imodificabilidade os seguintes Acórdãos:
a) o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Fevereiro de 1993 [1];
b) o Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Fevereiro de 2000 [2];
c) o Acórdão da Relação de Lisboa, de 13 de Fevereiro de 2003 [3;
d) o Acórdão da Relação de Guimarães, de 7 de Maio de 2003 [4];
e) o Acórdão da Relação do Porto, de 5 de Maio de 2005 [5];
f) o Acórdão do STJ de 2 de Outubro de 2003 [6].
Decidiram pela modificabilidade, o Acórdão da Relação do Porto, de 30 de Setembro de 2002 [7], e o da Relação de Lisboa, de 27 de Maio de 2003 [8], que cita outros em favor desta tese e, ainda, a posição do Dr. Nuno de Salter Cid [9] de que não parece tão evidente a inadmissibilidade de alteração do acordo, acrescentando que «ainda que assim se entenda, segundo o disposto no art. 437º, nº 1, do CC, havendo alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, a parte lesada tem direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos do contrato...» [10]. Em artigo posterior, este Autor reafirma com clareza a sua adesão à tese da modificabilidade, com fundamento no artigo 1.411º do Código de Processo Civil (CPC) [11].
Ao número dos primeiros não corresponde diversidade de argumentação, uma vez que todos seguem os argumentos do referido na alínea a): o da alínea b) só com parte deles; os das alíneas c) e e) com um único argumento do primeiro; o da alínea d) de forma muito chegada; o do STJ é relatado pela mesma pessoa que relatou o primeiro, sendo vogal também pessoa que já o havia sido no primeiro, sendo que o outro vogal votou contra. Assim, seguiremos fundamentalmente os argumentos do primeiro Acórdão.
Estamos com a posição que defende a modificabilidade da decisão de AtCMF, quer por termos posição diferente dos primeiros referidos Acórdãos (nº 7.1.) quer porque há uma circunstância neste processo que sempre levaria à admissibilidade da alteração do já decidido (7.2.).
7.1.1. Vejamos os argumentos do primeiro Acórdão.
a) Não obstante a jurisdição voluntária não se sujeitar a critérios de estrita legalidade, o divórcio por mútuo consentimento só pode ser decretado quando se verificarem os requisitos estabelecidos na lei [12].
O princípio da conveniência e da oportunidade, que predomina na jurisdição voluntária [13], não significa que não se tenha de respeitar as normas imperativas quanto às resoluções e às sentenças, como é o caso dos requisitos do divórcio.
E, mesmo fora do domínio imperativo, não se estar sujeito a critérios de estrita legalidade, não significa que não se esteja subordinado ao que está disposto normativamente, sendo que, na jurisdição voluntária, aquela observância tem de conjugar-se com factores de oportunidade, pelo que o princípio da legalidade não vincula de forma estrita; mas, não desaparece, sendo o seu espaço mais amplo ou mais restrito consoante cada caso em concreto, como se estipula no artigo 1.410º do CPC. Assim, também a AtCMF está sujeita a requisitos legais, tal como o divórcio, os alimentos devidos a filhos maiores ou emancipados [14], etc., a partir dos quais há espaço para o princípio da oportunidade. Mas, tal como no divórcio o juiz não pode deixar de o decretar, quando verificados os respectivos requisitos, também nos restantes processos tem de decretar a providência adequada, verificados os respectivos pressupostos. O que pode haver é maior ou menor espaço de conformação dispositiva: não se pode decretar mais ou menos divórcio, mas já se pode atribuir mais ou menos alimentos. E o que também se verifica é que os requisitos do divórcio consensual são mais objectivos do que noutros processos.
b) A inalterabilidade das resoluções não é um princípio absoluto, pois «é inadmissível que a sentença, na parte em que decretou o divórcio, possa vir a ser alterada ao abrigo do artigo 1.411º do C.P. Civil» [15].
É verdade que não pode. Mas, com a afirmação não se explica se a não extinção do poder jurisdicional, de onde resulta a possibilidade de alteração de decisões já tomadas, é ou não um princípio da jurisdição voluntária; ou seja, a questão é a de saber se, por causa do que se passa no divórcio, outra ou outras providências de jurisdição voluntária não são alteráveis ou se o são por força do princípio constante do nº 1 do artigo 1.411º do CPC.
Na primeira hipótese, a que parece resultar do argumento do Acórdão, faltaria explicar qual o critério a seguir: quando se seguia o preceito do nº 1 do artigo 1.411º do CPC e quando se seguia o exemplo do divórcio.
Na segunda hipótese, que parece ser a correcta, falta explicar porque é que no divórcio se verifica a inalterabilidade.
E a explicação passa por se tratar de uma decisão sobre o estado das pessoas (diferentemente do que se passa nas outras providências cautelares), com a dificuldade e inconveniente de alterações avulsas nesse domínio, e acaba no facto de não ser possível a constituição (neste caso a reconstituição) do estado de casado em sede do poder judicial. Assim, o juiz que homologou o divórcio esgota o seu poder jurisdicional (artigo 666º do CPC), não por inalterabilidade da decisão, mas porque não lhe é possível decretar mais divórcio ou divórcio diferente, nem tem competência para decretar um novo casamento.
Só por isso, a afirmação em análise pode ser feita, mas sem que dela resulte nenhum “beliscão” no princípio da modificabilidade das resoluções na jurisdição voluntária. Pudessem as pessoas casar-se em processo judicial e nenhum entrave haveria em que o casamento viesse a ser um incidente do processo que decretara o divórcio.
Só por esta razão, digamos extrínseca à natureza graciosa do processo, é que a alteração não pode ser feita no foro judicial.
c) Responder-se-á que o critério para se saber em que providências se segue o princípio da alterabilidade das resoluções, diferentemente do caso do divórcio, é o legal: o acordo sobre a prestação de alimentos a favor do cônjuge que deles careça pode ser alterado porque tal está previsto no artigo 2.012º do CC e «o ritualismo processual adequado está previsto no artigo 1.121º do C.P.Civil» [16]; tal como o acordo sobre a regulação do exercício do poder paternal, pode ser alterado, por força do disposto no artigo 1.920º-A do CC e 182º, nº 1 da OTM [17].
O artigo 2.012º do Código Civil (CC), onde se prevê a alterabilidade dos alimentos fixados, não diz respeito à jurisdição voluntária; está incluído num Título do Código Civil que disciplina os alimentos em geral, para os mais diversos casos. Então, nesse contexto, não poderia deixar de enunciar o princípio da alterabilidade para que o respectivo regime ficasse, realmente, completo, para além de que, se assim não fosse, os alimentos que fossem do âmbito da jurisdição voluntária eram alteráveis e os que o não fossem não o eram. Ora é da natureza da prestação alimentícia a sua alterabilidade.
Por seu lado, o artigo 1.121º do CPC faz parte de um processo especial, fora dos processos de jurisdição voluntária, e tem como finalidade disciplinar os actos processuais com vista à alteração dos alimentos. Ou seja, esta norma adjectiva a norma substantiva da alterabilidade dos alimentos, prevista no artigo 2.012º do CC.
O que poderia estar em causa era o artigo 186º da OTM, caso se tratasse de uma acção de alimentos autónoma [18], o que não é o caso. E tratando-se de uma acção autónoma, o artigo 186º da OTM limita-se a estabelecer a tramitação de alteração admitida em preceito substantivo. Agora o que não está em causa é o referido artigo 1.121º do CPC, que nada tem a ver com a alterabilidade das resoluções na jurisdição voluntária.
A única coisa que se poderá dizer é que, quando a prestação de alimentos é objecto de um processo de jurisdição voluntária, como é o caso que nos ocupa - alimentos devidos aos filhos na sequência de divórcio - a sua alterabilidade decorre quer da sua natureza (artigos 150º da OTM, 463º, nº 1, e 1.411º, nº 1, do CPC) quer do regime geral aplicável aos alimentos (artigo 2.012º do CC). Mas, o que não se poderá dizer é que o legislador decidiu a alterabilidade dos alimentos devidos na sequência de divórcio por o ter estabelecido numa regulamentação geral dos alimentos. Não, o legislador quer que quaisquer alimentos possam ser modificados, por isso teve que o dizer, mas em geral, não em particular para o divórcio, porque, se fosse só essa parte que estivesse em causa, não tinha que o dizer, nem vemos que o tenha dito (referimo-nos aos alimentos que integram a regulação do exercício do poder paternal; por outro lado, o artigo 186º da OTM limita-se a estabelecer a tramitação da alteração admitida em preceito substantivo).
E mesmo que o dissesse, ainda assim era necessária a cautela sobejamente aconselhada com as interpretações a contrario: se o legislador o disse nos alimentos devidos na sequência de divórcio (concedendo), é porque o quis, se não o disse relativamente à CMF é porque o não quis; ora, poderia não o ter dito, por desnecessidade, ao passo que não o dizendo para os alimentos, em geral, ficariam inalteráveis os alimentos que não fossem objecto dos processos de jurisdição voluntária, como já referimos.
No que respeita à regulação do exercício do poder paternal, para além de também podermos dizer que a norma substantiva não qualifica nem pressupõe a jurisdição voluntária, tem de dizer-se mais: é que ela não diz respeito ao exercício do poder paternal resultante de um divórcio; ela prescreve a alterabilidade das «decisões que decretem providências ao abrigo do disposto nos artigos 1918º a 1920º», ou seja, refere-se às providências adequadas às situações de «perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação do filho» [19], incluindo o exercício do poder paternal «enquanto se mantiver a providência» [20] e não na sequência de um divórcio (o artigo 1920º do CC respeita à protecção patrimonial quando o menor dela careça, o que não interessa para aqui).
O exercício do poder paternal é regulado numa Subsecção, onde se prevê que «nos casos de divórcio, ..., o destino do filho, os alimentos a este devidos e forma de os prestar serão regulados por ...» [21], ao passo que o artigo que serviu de base à argumentação do Acórdão está previsto na Subsecção seguinte, intitulada “Inibição e limitações ao exercício do poder paternal”.
A categoria de menores em perigo moral foi importada da OTM, com a redacção de 1962. Por isso, é matéria que constava quer da OTM quer do CC, com repetições: o artigo 1.918º do CC corresponde ao artigo 19º da OTM, na sua última redacção. Então, já antes do CC de 66, porque a limitação do exercício do poder paternal, ínsita nas respectivas medidas, deveria limitar-se ao mínimo possível, incluindo temporalmente, logo se previa o regime do exercício do poder paternal «durante o cumprimento das medidas tutelares» [22], tal como veio a constar e consta do artigo 1.919º do CC; e, pela mesma ou mais razão, ainda, se previa a revisão das decisões: «as decisões relativas ao ... e à aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares podem ser a todo o tempo revistas, ...» [23]. Ora, é esta norma que também foi escrita no artigo 1.920º-A do CC. Para além deste “copiar” de normas e regimes, com sobreposições no anterior e actual direito tutelar, no direito tutelar cível [24] e no CC, nenhuma ilação se poderá tirar e muito menos em sede de AtCMF; repetimos: o que se quis inicialmente - e foi “passando” para outras sedes -, foi que as restrições ao poder paternal fossem excepcionais e o mais limitadas possíveis, pelo que eram objecto de revisões periódicas.
Na disciplina relativa ao exercício do poder paternal, incluindo na sequência de divórcio, o CC nem sequer enuncia uma regra de alterabilidade! Como o faz nos alimentos, precisamente porque aí estabeleceu um regime geral, para menores e maiores, e a regulação do exercício do poder paternal só se aplica a menores e a regra resulta da qualificação que a OTM faz dos seus processos tutelares cíveis - são processos de jurisdição voluntária -.
Assim, onde está prevista a característica da alterabilidade é no artigo 182º da OTM. Mas, não como enunciação de um princípio, somente como disciplina processual a seguir nos casos em que se pretende alterar o anteriormente decidido: legitimidade (nº 1), forma de apresentação dos factos, documento a juntar e forma de autuação (nº 2), citação e prazo para alegação do requerido (nº 3) despacho liminar (nºs. 4 e 5). Ou seja, nos processos de jurisdição voluntária as decisões são modificáveis, por força dos artigos 150º da OTM, 463º, nº 1, e 1.411º, nº 1, do CPC, e a OTM regula a forma de o fazer no seu artigo 182º.
Voltando aos perigos da interpretação a contrario, podemos acrescentar que, mesmo que houvesse norma a reafirmar a alterabilidade dos acordos relativos aos alimentos e ao exercício do poder paternal, não poderíamos concluir pela inalterabilidade do acordo relativo à CMF com base no argumento de não haver reafirmação, por duas razões:
1ª) a matéria dos alimentos e da RPP é, por natureza, conjuntural e muito mutável, ao passo que a relativa à CMF, em princípio, é dotada de maior estabilidade e estruturante da vida das pessoas; ainda estruturante, porque, no nosso País, o mercado do arrendamento ainda não chegou aos níveis de mobilidade que atingiu noutros Países.
Assim, é inevitável que a decisão sobre alimentos se modifique, até anualmente; que, a relativa à RPP, também conheça muitas alterações, conforme o nível de conflitualidade entre os progenitores; e que a decisão sobre a CMF conheça poucas modificações, podendo mesmo dizer-se que terá uma tendência para a estabilidade. Mas, isto é uma mera constatação sócio-jurídica que não interfere com as normas estritamente jurídicas.
O Acórdão do STJ de 2 de Outubro de 2003 acrescenta um argumento, no qual, fazendo esta mesma afirmação, retira conclusão contrária: «já referida estabilidade familiar (subjacente à utilização da casa da morada da família) impõe que o respectivo acordo não possa ser alterado, ao abrigo do referido princípio estabelecido no nº 1 do artigo 1411º do CPC» [25]. Mas, então, se alterações na vida das pessoas levarem a que a situação derivada da primeira decisão leve a instabilidade familiar, para já não falar de violência ou situações próximas, como é a que a recorrente alega? Então, nesses casos, a estabilidade familiar impõe que o respectivo acordo possa ser alterado. Caso contrário, estar-se-ia a sacrificar a funcionalidade do direito (e a vida das pessoas) à sua estrutura estatítico-sociológica, que nem sequer jurídica.
2ª) A matéria dos alimentos e da RPP foi objecto de uma regulamentação completa e sistematizada, pelo que não surpreenderia que se voltasse a enunciar a alterabilidade das respectivas decisões - o que não acontece na RPP nem com os alimentos fixados no seu âmbito, como se viu -. Mais a mais que entre o Código de Seabra e o Código de 1966, surgiu a OTM, onde estas matérias conheceram uma regulamentação sistematizada, com importação e até cópia, com a consequente sobreposição, de algumas matérias e normas para o CC, como é o caso da constante do artigo 1.918º do CC. Contrariamente, a CMF, que só teve regulamentação mais cuidada com a Reforma de 1977 [26], não é objecto de um “corpo” normativo, de uma regulamentação sistematizada, mas sim de normas avulsas, em que já não faz sentido estar a anexar por aqui e por ali aspectos que resultam já de outras normas gerais (artigo 150º da OTM e 1.411º do CPC).
d) Se o legislador quisesse a alterabilidade das decisões sobre a atribuição da CMF tê-lo-ia dito [27] e teria introduzido uma disposição semelhante à última parte do nº 2 do artigo 1793 do C.Civil no sentido de se poder fazer caducar o arrendamento «quando circunstâncias supervenientes o justifiquem» [28].
E, quanto a nós, disse-o, conforme resulta do que já dissemos atrás: resumidamente, o legislador inscreveu a matéria num processo de jurisdição voluntária, é materialmente possível uma alteração, cuja competência pertence à actividade judicial.
Para que as decisões sobre a CMF não fossem alteráveis, era necessário é que o legislador o dissesse expressamente, por se tratar de uma excepção.
Quanto ao referido segmento da norma citada (parte final do nº 2 do artigo 1.793º), ela não tem a ver com uma alteração à decisão anterior, em sentido próprio, mas sim com a cessação de um regime de protecção à família (à família modificada com a separação), por se ter tornado desnecessária. Do que vimos tratando é de situações em que se mantenha a necessidade de protecção da família separada.
E obviamente, numa circunstância daquelas, o legislador tinha que o dizer; não se trata da regra da alterabilidade das decisões, trata-se de fazer cessar uma situação: «uma coisa é a caducidade e outra a modificabilidade do direito atribuído», como se disse no Acórdão da Relação do Porto, de 5 de Maio de 2005 [29], apesar de defender a posição maioritária. E, de qualquer maneira, sempre teria de o dizer por se tratar de um arrendamento em condições inabituais para a nossa ordem jurídica, a que o Prof. Antunes Varela chama de “verdadeira medida de expropriação prévia” [30], o que também é referido, como relevante, pelo citado Acórdão da Relação do Porto.
O Acórdão do STJ de 2 de Outubro de 2003 veio acrescentar um argumento novo: o legislador poderia ter aproveitado a reforma de 95 para introduzir no artigo 1.413º do CPC a possibilidade de alteração de decisão anterior [31].
Mas, o legislador já o dizia dois artigos antes e manteve-o. Salvo o devido respeito, poderíamos era dizer o contrário: o legislador poderia ter aproveitado a reforma de 95 para afastar a regra da modificabilidade das decisões relativamente à AtCMF, caso o entendesse dever fazer.
7.1.2. O despacho recorrido afirma a existência de caso julgado [32], não enunciando, naturalmente, razões. Mas, no despacho de sustentação, parece colocar-se num momento já posterior e argumenta com a inviabilidade da «aferição da alegada “alteração superveniente das circunstâncias”, pois não se conhecem, por não constarem dos autos, as circunstâncias de facto em que as partes se basearam para celebrarem o seu acordo nos autos de divórcio quanto ao destino da casa de morada de família. Ali acordaram no seguinte: “O direito a habitar a casa de morada de família é atribuída a ambos os cônjuges até à partilha”».
Não concordamos com esta posição: as circunstâncias de facto em que as partes se basearam para acordar o regime inicial assentaram na possibilidade de viverem em comum na mesma casa, o que foi considerado que acautelava suficientemente os interesses dos progenitores e de seus filhos, fundamento da sua homologação [33]; ora, os factos alegados pela recorrente mostram situação absolutamente diferente, estando em perigo a saúde física e mental da recorrente e de seus filhos, pelo que a situação nunca seria homologada. Eis a alteração, radical, das circunstâncias.
7.1.3. Concluímos, então, que nenhuma razão existe para que o regime de AtCMF, na sequência de acordo em processo de divórcio por mútuo consentimento, possa ser alterado, tal como o podem ser os outros acordos - o relativo ao exercício do poder paternal, incluindo a prestação de alimentos -. E procurámos demonstrar que, por um lado, não existe nenhuma obstáculo a que isso seja assim e, por outro lado, que é esse é o regime próprio dos processos de jurisdição voluntária.
Vejamos agora que a alteração do acordo relativo à AtCMF corresponde à preocupação do legislador com a estabilidade familiar e deve ter lugar no mesmo processo em que teve lugar o acordo.
7.1.3.1. Na relação familiar, sobretudo quando há filhos, mesmo que haja alterações, mantêm-se sempre interesses comuns, que subsistem por si mesmos e que devem ser protegidos e regulamentados. Contrariamente a qualquer outra relação jurídica, na familiar, a sua extinção não significa realmente um fim; a relação entre duas pessoas terminou do ponto de vista afectivo, mas o seu relacionamento jurídico mantém-se na medida em que ambos tenham filhos comuns ou haja prestações de um ao outro dos progenitores. É sobre esta realidade que a produção legislativa e a sua interpretação assenta.
Assim, a passagem que foi citada no Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Fevereiro de 1993 [34], não “encaixa” nessa tese nem no raciocínio que é feito para chegar a tal conclusão, mas, segundo nos parece, ajusta-se perfeitamente à perspectiva da alterabilidade. A passagem é do Prof. Pereira Coelho e diz o seguinte: «Em qualquer destes aspectos, o quadro legal que o nosso direito oferece, sobretudo depois da Reforma de 1977, apresenta-se conforme, de um modo geral, à política de protecção da casa de morada da família com carácter global e integrado a que atrás se fez referência» [35]. O que o Mestre pretende é chamar a atenção para o que chama de “perigos internos à estabilidade da habitação familiar”: «Trata-se, de um modo geral, de defender a estabilidade da habitação familiar – de a defender, agora, não apenas contra ameaças ou perigos externos [36], senão também contra ameaças ou perigos internos -, no interesse dos próprios cônjuges e eventualmente dos filhos, tanto no decurso da vida conjugal em termos normais como nas situações de crise provocadas, quer pelo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens quer pelo falecimento de qualquer dos cônjuges» [37].
Ora, na parte que nos interessa, o que está em causa é que, decretado o divórcio, a CMF «possa ser utilizada pelo … ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro» [38]. Então, parece ser inquestionável que a justeza na AtCMF pode variar de momento para momento, conforme as circunstâncias (sem prejuízo do que se disse sobre a natureza pouco variável destas circunstâncias, e, até, repetimo-lo, da tendência para a estabilização dessas circunstâncias); parece inquestionável que as necessidades de um e de outro podem alterar-se. Relativamente à vida de cada um dos ex-cônjuges, no aspecto patrimonial, no de saúde e no de guarda dos filhos, podem sobrevir modificações de vulto e até inversões. Num caso destes, “amarrar” cada membro da família à justeza do passado seria cometer uma injustiça e esquecer a protecção real da habitação familiar.
Não estamos de acordo com a classificação de prestação espontânea aplicada ao regime de AtCMF, como o fez o Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Fevereiro de 2000 [39]. A classificação assenta na forma como, temporalmente, se realiza a prestação debitória e a distinção entre prestação instantânea e duradoura é controvertida [40]. Pensamos que a prestação devida pelo cônjuge a quem não é atribuída a CMF é tão espontânea como a que se verifica no acordo de regulação do exercício do poder paternal ou, se se quiser, tão continuada como esta, porque uma e outra se protelam no tempo, mantendo até se extinguirem, tornando-se definitivo, no caso da CMF, o direito sobre a casa do ex-cônjuge que já lá estava ou o do que não estava ou passando esse direito para terceiros. De qualquer maneira, entendemos que não deveria ser o critério da realização temporal da prestação que decidiria da alterabilidade ou não do acordo, mas, sim, estes interesses e realidades mutáveis que subjazem à regulamentação da matéria.
Também por esta razão, não tomámos posição sobre o argumento de que cada cônjuge deve acautelar os interesses que pretender na altura do acordo, não podendo depois voltar atrás para os voltar a acautelar. Mesmo que este fosse um critério moderno de encarar um problema como este, ainda assim, faltaria explicar qual a culpa dos filhos por os progenitores não terem sido cautelosas na procura da melhor solução para a estabilidade da sua vida.
7.1.3.2. E as questões relativas à vida familiar após o divórcio devem ser tratadas em sede do direito de família e não do das obrigações, remetendo-se as pessoas para questões de usufruto ou para a divisão de bens comuns.
É no processo de divórcio que deve ser regulada a utilização e a AtCMF e é no âmbito do mesmo processo que deve ser acautelada qualquer alteração, sempre com os olhos postos na estabilidade da vida familiar de que a habitação é factor importantíssimo. Como adverte o Prof. Pereira Coelho, «as regras do direito comum não dariam satisfação adequada a estes interesses …» [41].
7.2. Finalmente, pensamos que este caso concreto sempre mereceria uma solução que admitisse a alteração do acordo, uma vez que a CMF não foi atribuída a um só deles, mas facultado «o direito a habitar a casa de morada de família» a ambos. Então, não foi, ainda, decidida a atribuição da CMF, trata-se de uma situação, materialmente, provisória, o que decorre de todo o contexto do acordo: «o direito a habitar a casa de morada de família é atribuído a ambos os cônjuges até à partilha. Enquanto ambos os cônjuges habitarem a casa de morada de família, ... . De momento não se fixam quaisquer outras quantias ...».
Nunca a decisão poderia ficar inalterável, por não ter ainda sido decidida a atribuição com carácter definitivo, não sendo possível forçar os contraentes a cumprirem o que foi decidido.
Seria uma violência.
E é desta forma que a situação se apresenta, tal como é alegada pela recorrente. O que justifica uma solução rápida e eficaz, eventualmente com medidas provisórias, de forma a preservar a saúde e o bom desenvolvimento dos filhos.
III – Decisão.
Nestes termos, concede-se provimento ao agravo, devendo substituir-se o despacho que indeferiu liminarmente o pedido por outro que dê prosseguimento ao incidente de alteração de atribuição de casa de morada de família.

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1 CJ XVIII, 1, 149.
2 CJ XXV, 1, 218.
3 CJ XXVII, 1, 101.
4 CJ XXVIII, 3, 279.
5 CJ XXX, 3, 160.
6 CJ STJ XI, 3, 74.
7 procº nº D250994, in www.dgsi.pt.
8 CJ XVIII, 3, 91.
9 A protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, pág. 310.
10 cf. CJ XVIII, 3, pág. 92, 1ª e 2ª cols..
11 A Alteração do Acordo sobre o Destino da Casa de Morada da Família, in “Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, Coimbra Editora, vol I, págs. 275 e ss.
12 pág. 150, 1ª col. 2º 4.
13 artigo 1410º do CPC.
14 artigo 1.412º do CPC.
15 pág. 150, 1ª col., 6º §.
16 pág. 150, 1ª col., 9º §.
17 pág. 150, 1ª col., 11º §.
18 Delimitação dos campos de aplicação dos processos tutelares de regulação do exercício do poder paternal e de alimentos devidos a menores, Cons. Alberto Baltazar Coelho, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXVIII, nº 3, págs. 461 a 487.
19 artigo 1.918º do CC.
20 artigo 1.919º do CC.
21 artigo 1905º do CC.
22 artigo 26º da OTM.
23 artigo 46º da OTM.
24 artigos 194º e ss da OTM.
25 CJ STJ XI, 3, pág. 76, 1ª col., final do 5º §.
26 Prof. Antunes varela, Direito da Família, Livraria Petrony, 1993, pág. 525.
27 pág. 150, 1ª col. 14º §.
28 pág. 150, 2ª col. 1º §.
29 CJ XXX, 3, pág. 161, 2ª col., 5º §.
30 Professores Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1992, vol. IV, 2ª edição revista e actualizada, pág. 570, anot. ao artigo 1.793º.
31 CJ STJ XI, 3, pág. 75, 2ª col., último §.
32 nos processos de jurisdição voluntária forma-se caso julgado, nos mesmos termos da jurisdição contenciosa (art. 677º do CPC), mas as resoluções não são irrevogáveis (Prof. Alberto dos Reis, Processos Especiais, Coimbra Editora, 1982, vol. II, pág. 403). O Prof. Castro Mendes afirma que «o conteúdo da resolução graciosa é um princípio imutável rebus sic stantibus e mutável em face de circunstâncias supervenientes, essencialmente nos mesmos termos em que o conteúdo da decisão contenciosa; do art. 1411 só resulta uma amplitude maior dos factos ou circunstâncias supervenientes relevantes» (Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pág. 20.
33 artigo 1.776, nº 2 do CC.
34 CJ XVIII, 1, pág. 150, 1ª col., último § e 2ª col., que nos serviu de referência para os argumentos da tese da inalterabilidade.
35 RLJ 122º, pág. 137, 2ª col., 2º §.
36 refere-se, sobretudo, ao perigo de denúncia ou resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio.
37 RLJ 122º, pág. 136, 2ª col..
38 RLJ 122º, pág. 137, 1ª col., 1º §.
39 CJ XXV, 1, 218.
40 cf. o Prof. Rui de Alarcão, Direito das Obrigações – síntese das lições ao 2º ano jurídico, 1977-78, pág. 46.
41 RLJ 122º, pág. 137, 1ª col., 2º §.