Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1940/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SERRA LEITÃO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CULPA DA ENTIDADE PATRONAL
CULPA DO TRABALHADOR
Data do Acordão: 09/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: BASES VI, Nº 1, AL. B),E XVII, NºS 1 E 2, DA LEI Nº 2127, DE 3/8/65 .ARTº 44º DO DL 41821, DE 11/8/58 .
Sumário: 1. É jurisprudência unânime que a culpa do trabalhador conducente à descaracterização do acidente tem de ser exclusiva e tem de traduzir-se num comportamento temerário e inútil, até no ponto de vista com a sua conexão com o trabalho que se desempenha, não bastando para tal a mera distracção ou imprevidência .
2. Se o acidente resultar de culpa do empregador será este o responsável pela reparação infortunística, que é agravada, presumindo-se a culpa sempre que o evento fique a dever-se à inobservância de preceitos legais e regulamentares, assim como a directivas das entidades competentes, que se refiram à higiene e segurança no trabalho .
3. Impõe-se a tomada de medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo, e sempre que possível o uso de cintos de segurança pelos trabalhadores, mas tão somente para as situações em que o trabalho em cima de telhados implique riscos acrescentados pela sua inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeitos das condições atmosféricas .
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes da Secção Social do T. Relação de Coimbra
A..., instaurou acção especial emergente de acidente de trabalho contra B... e contra a C..., ambos com os sinais dos autos, pedindo a condenação dos RR:
ao reconhecimento de que auferia €81, 40 mensais a título de subsídio de alimentação; ao reconhecimento do nexo de causalidade entre o acidente e as lesões constantes do auto de exame médico;
do primeiro réu a paga-lhe uma pensão anual e vitalícia agravada e actualizável que vier a ser fixada a partir de 01/02/16, a liquidar em 14 prestações mensais, iguais e no seu domicílio, sendo a 13ª e 14ª nos meses de Maio e Novembro, respectivamente e ainda a pagar-lhe a título de indemnização por I.T.A agravada, desde a data do acidente 01/02/15, montante de € 7 552, 74, bem como, € 5 000 a título de danos não patrimoniais.
Ou, em alternativa a condenação da segunda ré caso seja declarada culpada e, esta ainda nas despesas com tratamentos transportes dias de trabalho no montante de € 1 724, 90.
Alegou para tanto e em síntese, que no dia 23 de Novembro de 1999, por volta das 9 h, quando trabalhava na construção de uma moradia em Guarda Gare por conta do 1º réu, colocando a telha, escorregou e caiu ao solo, de uma altura de 5 m;
em consequência do acidente sofreu as lesões constantes do auto de exame médico; donde lhe resultaram I.T.A, internamento hospitalar, e uma I.P.P de 8/% que não aceitou;
o acidente resultou pelo facto de o 1º réu ter violado as regras de segurança na construção, dado que não existiam guarda-corpos e guarda-cabeças, situação que levou á sua queda em altura;
o primeiro réu tinha a responsabilidade transferida para a Seguradora, a qual, não aceitou a responsabilidade, exactamente por causa da violação das normas de segurança. Contestaram os réus.
O primeiro, alegando que o acidente se deveu única e exclusivamente á culpa do autor, porquanto no dia do acidente o telhado da obra encontrava-se coberto de gelo e geada; e por haver risco de o autor cair, foi-lhe ordenado que, da parte da manhã e enquanto a geada não derretesse, não deveria ir trabalhar para o telhado, mas sim que ocupasse o tempo a chapiscar massa na parede exterior do rés-do-chão da casa;
O A todavia desobedeceu a tais ordens, embora tivesse constatado e verificado a situação do telhado, pelo que só a ele se deve a ocorrência;
além de que, toda a bordadura da lage onde o A. se encontrava a trabalhar se encontrava protegida com guarda-corpos; só não existiam guarda-cabeças porque a sua implantação era impossível em termos técnicos, uma vez que impossibilitavam a colocação das telhas.
A segunda ré alegou que, se o A. tivesse acatado as ordens da entidade patronal não teria escorregado e caído; além de que, a contestante apenas se responsabilizou, conforme consta do contrato de seguro, aceite pelo co-réu, desde que fossem cumpridas todas as normas e regulamentos de higiene e segurança em vigor para a sua actividade- construção civil;
Ora a verdade é que tal não sucedeu( nomeadamente não havia guarda corpos ), pelo que entende não poder ser responsabilizada pelo pagamento das prestações infortunísticas.
Prosseguindo o processo seus regulares termos foi proferida decisão que:
- Absolveu a ré seguradora a qual (segundo foi entendido) apenas poderá eventualmente ser responsabilizada subsidiariamente no âmbito do disposto na Base X L III, nº4);
- condenou o empregador a pagar ao A:

-€ 8. 252,62 de I.T. A.

- uma pensão anual e vitalícia no valor de € 847,74 devida desde 02.02. 16 até 02.12. 31, sendo remível a partir de 03.01.01

- € 1.620, 90 de despesa de transportes e alimentação, com deslocações obrigatórias ao Tribunal aos serviços médicos da seguradora em Coimbra e sessões de fisioterapia em Gouveia e Seia-.

- € 100 por quatro dias de falta ao trabalho.
- € 1000 a título de danos não patrimoniais.

E ainda ao D... a quantia de € 1. 610, 93 de despesas hospitalares realizadas com o autor.

- Juros moratórios legais vencidos e vincendos

Inconformado apelou o R patronal alegando e concluindo:

1- O presente recurso é sobre matéria de facto e de direito;
2- O Recorrente nos termos do artº 690- A n.º 1 a) entende que o Mtº Juiz “ a quo” fez julgamento incorrecto, por erro na apreciação das provas, da matéria de facto que se encontra vertida nos quesitos 2º a 15º da Base Instrutória e da matéria de facto que se encontra dada como provada nos nºs 24º a 31º inclusive do Ponto 2- Fundamentação de Facto da douta sentença recorrida, matéria de facto essa que se dá aqui por reproduzida por razões de economia processual;
3- Os concretos meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diversa da proferida pelo Sr. Juiz “ a quo” são os que vêm referidos nas presentes alegações
4- Em face de todos esses elementos probatórios dos autos, incluindo a prova testemunhal que foi gravada, deveria ter sido dada resposta diferente à matéria de facto do douto questionário no sentido de que:
a)- à matéria de facto dos quesitos 2º, 3º, 4º e 4º e 5º da Base Instrutória deve ser dada resposta negativa;
b) à matéria de facto dos quesitos 6º, 7º, 8º 9º, 10º, 11º , 12º, 13º, 14º e 15º da mesma Base Instrutória deverá ser dada resposta positiva
5- Em consequência da matéria de facto assim provada terá necessariamente de concluir-se, como o recorrente respeitosamente requer, que o acidente dos autos, se deveu ao comportamento e acção negligente e grosseira do A ao desobedecer à ordem que o recorrente lhe deu de não subir ao telhado que se encontrava escorregadio por estar com geada;
6- Sabendo embora o A e disso tendo plena consciência, que o telhado estava geado e escorregadio e que podia cair se para lá fosse nessas circunstâncias;
7- O A violou de forma grosseira e por sua livre iniciativa o dever objectivo de cuidado que a todos os cidadãos incumbe de serem prudentes e cuidadosos em face de circunstâncias adversas como a dos autos e que podem causar danos, sendo por isso o A o único e exclusivo culpado na produção do acidente dos autos;
8- O recorrente, como resulta da matéria provada no seu entender, cumpriu todas as normas de segurança na execução da obra;
9- O Tribunal “ a quo” violou ou deu errada interpretação ao disposto nos artºs 44º do D.L. 41821 de Agosto de 1958; 54º do D.L. 360/71 e Bases VI, XVII, XVIII da L. 2127 de 3/8/65, já que deveria ter dado interpretação a tal matéria no sentido da total absolvição do recorrente do pedido.
10- Por todo o exposto e em consequência, deve o Recorrente ser absolvido totalmente do pedido
Contra alegaram a seguradora e o A defendendo a correcção da sentença em crise
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais cumpre decidir.
Dos Factos
Foi a seguinte a factualidade dada como assente na 1ª instância
1-O A. trabalhou por conta, sob a direcção, fiscalização e autoridade do R.

2- Este dedica-se à actividade de construção civil.

3-O A. exercia as funções de operário de construção civil, desempenhando as funções próprias dessa categoria nas diversas obras da entidade patronal, auferindo €498,80x14+€81,40x11.

4-O A. cumpria o horário de 8 horas/dia de 2ª a Sexta.

5-No dia 23 de Novembro de 1999, o A. trabalhava na construção de uma moradia em Urbanização da Quinta das Aguas, lote 2, Guarda-Gare.

6-Pelas 9horas desse dia o A. procedia ao telhamento da parte esquerda da placa de cobertura da casa acima mencionada quando caiu.

7-Segundo o Relatório do IDICT de Fls. 10 a 24 dos autos verificou-se violação das normas de segurança.

8-Em consequência do acidente, o A. sofreu as incapacidades constantes dos autos, sendo a I.P.P de 10,76% a partir de 16/12/2001, conforme auto de Junta Médica de Fls. 20 e 20 v do apenso.

9-O A. ficou com incapacidade temporária absoluta desde 1999/11/24 a 01/02/15, dos quais, com 7 dias internamento hospitalar.

10-Em 26 de Fevereiro de 2002, foi realizada a tentativa de conciliação, mas não foi possível alcançar acordo total entre as partes.
11-Como resulta da diligência processual, o 1º R. aceita a existência do acidente como de trabalho o nexo de causalidade entre a lesão e o acidente, a retribuição e a IPP atribuída ao A;, mas não aceita que tenha existido a violação das regras de segurança, e por isso não assume a responsabilidade no acidente.
12-A Ré seguradora aceitou a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre este e as lesões, o salário,
a I.P.P, mas entende que se verificou a violação das regras de segurança pela entidade patronal
13- O R transferira a respectiva responsabilidade infortunística, para a 2º Ré através de contrato de seguro titulado pela apólice nº5.260.630.
15-O co-réu propusera à R., em 10.03.99, a celebração de um contrato de acidentes de trabalho, garantindo, à mesma, que, nas respectivas obras, seriam cumpridas todas as normas e regulamentos de higiene e segurança em vigor para a sua actividade" (da "construção civil") e que, no desenvolvimento das mesmas, dispunha "de meios de protecção individual e colectiva.
16-Foi nessa pressuposição que a R. aceitou contratar o seguro.
17-O sinistrado despendeu a quantia de € 1 620,90 em transportes, alimentação, deslocações obrigatórias ao Tribunal aos serviços médicos da seguradora em Coimbra e sessões de fisioterapia em Gouveia e Seia.
18-Ao A . não foram pagos € 100 devidos por quatro dias de falta ao trabalho.
19-O autor recorreu aos serviços do D... em consequência do acidente por ter sofrido no local e no horário de trabalho.
20-Sendo certo que trabalhava por conta e no interesse de B...
21-O A. ao caminhar sobre uma parte já telhada para buscar uma régua que estava junto ao cume, escorregou e caiu ao solo de uma altura de cerca de 5metros
22- O 1° R. não havia colocado, na bordadura da laje do telhado, inclusive na parte por onde escorregou o A. para o solo, as devidas protecções.
23- Tal facto foi reconhecido, imediatamente após o acidente, pelo co-R que, com o A. ainda prostrado no solo, iniciou a colocação de tais protecções.
24- Pedindo aos Srs. subchefe e Guarda da PSP (que pretendiam tomar conta da ocorrência), para aguardarem a colocação das mesmas pois, que “ se a Inspecção do Trabalho aparecesse o desgraçava”.
25- A obra não estava dotada, frente á cobertura onde caiu o A . de guarda-corpos, nem existindo guarda-cabeças de modo a evitar o escorregamento em altura.
26- No dia em que ocorreu o acidente dos autos, 23 de Novembro de 1999, o telhado da obra em construção encontrava-se húmido.
27-O R. entidade patronal ordenou ao A, que apenas subisse ao telhado para colocar as telhas quando este se encontrasse em condições, ordenando-lhe que, se tal não acontecesse que ocupasse o tempo a chapiscar a massa na parte exterior do rés-do-chão.
28- Existia na fachada do edifício uma tábua colocada na diagonal e suportada por outras duas, a qual, era inferior ao cumprimento da mesma fachada.
29- Na bordadura da lage não havia guarda-cabeças.
30-Após o período da incapacidade temporária do A. este foi trabalhar novamente para o réu, desempenhando as mesmas funções que desempenhava anteriormente, com excepção daqueles trabalhos que exigiam grande força física.
31-O hospital Sousa Martins, com início em 23/11/1999, prestou ao A. cuidados de saúde, no montante de 322 963$0
Do Direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações, que se delimita o âmbito da impugnação- artºs 684 n.º 3 e 690º nºs 1 e 3 ambos do CPC-.
Pelo que e no caso concreto, as questões a dilucidar prendem-se com:
a- a alteração da fundamentação de facto, com a consequente responsabilização do sinistrado pela produção do evento e a consideração do respeito da impugante pelas regras de segurança a ter em conta.
b- a descaracterização do acidente por este ter ocorrido por culpa grave, indesculpável e exclusiva do trabalhador.
Ora e relativamente ao primeiro item convirá relembrar que com a admissibilidade de gravação da prova produzida em audiência, a possibilidade de modificação da fundamentação de facto, pela Relação aumentou de forma substancial, não se confinando aos estreitos parâmetros das hipóteses previstas no artº 712º do CPC.( cfr. artºs 522-B e 690º-A do CPC e artº 68 nº2 do CPT)
Porém tal não significa que o tribunal de recurso fique portador de poderes ilimitados neste domínio.
Na verdade – e como por diversas vezes se tem já escrito em acórdãos proferidos por esta Secção( cfr. p ex. o Rec. Apelação 1510/02)- a aludida admissibilidade não se traduz na realização de um novo julgamento da matéria de facto, ideia que mais se reforça quando é consabida a relutância da consagração um pleno 2º grau de jurisdição neste domínio, por razões que se prendem com o agravamento da morosidade na administração da justiça- cfr. neste sentido Helder Martins Leitão, in “ Dos Recursos em Processo Civil, 1997, pág.86-.”
Permitimo-nos sobre este aspecto remeter para o que se escreveu no Ac desta Relação, no Rec. de Apelação n.º 128/02.
Ali se disse.”...Importa ter em atenção que o princípio segundo o qual a Relação só em situações excepcionais pode alterar a matéria de facto, não é mais do que o corolário de um outro, que é base no nosso direito processual probatório- o princípio da prova livre( artº 655º do CPC). Segundo este princípio, o tribunal aprecia livremente as provas e responde de acordo com a convicção que tenha formado acerca de cada ponto da matéria de facto da base instrutória, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, pois neste caso não pode ser dispensada.
De harmonia com tal princípio que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram no espírito do julgador acerca da existência do facto.
E sendo assim, como é, a utilização da gravação dos depoimentos em audiência constitui um simples meio posto à disposição das partes para obter a reapreciação da prova. Tal reapreciação não se traduz, porém num novo julgamento; constitui apenas um remédio para os eventuais vícios de julgamento em 1ª instância.
A gravação dos depoimentos deixa assim incólume, o princípio da prova livre, não o restringe ou limita. Em nome desse princípio, sobrelevam as operações de carácter racional e psicológico, em que se baseia a convicção do julgador, o qual pode legitimamente, até porque beneficia da imediação da prova, desvalorizar a prova gravada.
Em suma, a reapreciação da prova, possibilitada pela utilização da gravação dos depoimentos, não afecta ou molda o princípio da livre apreciação da prova”.
E este implica reafirma-se, que as provas sejam valoradas livremente pelo julgador ( quer sejam testemunhais, periciais, depoimentos de parte, etc.), sem que exista qualquer hierarquização entre elas ( A. Varela, Miguel Bezerra, S. Nora, Manual do Processo Civil 2ª ed. pág. 471).
Cremos que no mesmo sentido opina o Autor acima citado quando escreve na já sua referida obra, a págs. 87:” a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento.
Aliás e no mesmo sentido aponta o texto preambular do D.L. 39/95 de 15/2, onde expressamente se refere que “ a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência , visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados as matéria de facto que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Ora se se analisarem os depoimentos prestados em audiência e no que concerne à factualidade que veio a ser dada como assente relativamente aos pontos 2 a 5 e 10 a 15 da base instrutória, conclui-se que, se por um lado alguns deles apontam para a bondade da tese do recorrente, já outros vão em sentido algo diverso.
Perante este quadro, o Ex. mo Juiz do tribunal recorrido, dentro do poder de decidir segundo a sua livre convicção, como já foi referido, entendeu que se provara determinara factologia e não se demonstrara outra, não se podendo olvidar que, nestes pontos o ónus da prova incumbia ao R patronal( artº 342º nº 2 do CCv).
Aliás e se atentarmos na análise crítica feita pelo Ex. mo Julgador aos atinentes depoimentos, é ali explicitamente referido que não foram considerados credíveis os que pretensamente poderiam alicerçar a tese do empregador.
Se esta convicção é ou não correcta, é aspecto que não é possível a este tribunal sindicar, até pela impossibilidade de exercer o princípio da imediação, que – é a prática do dia a dia que o confirma- tão relevante por vezes se mostra no domínio da definição da prova.
Logo e em resumo, neste ponto, não pode a impugnação proceder.
Entende ainda o apelante que deveria também ser modificada( ainda que não na totalidade) a matéria de facto constantes dos pontos 6 a 9 da sentença recorrida.
Crê-se salvo o devido respeito por opinião diversa, que a alteração pretendida é inócua, para a dilucidação da problemática relativa, á descaracterização do acidente em causa.
Na verdade, admitindo mesmo que o telhado, se não encontrava apenas húmido, mas com geada e que , não obedecendo às ordens do seu patrão, o A para ali subiu, estaríamos perante a tal falta grave e indesculpável da vítima, que conforme o disposto na Base VI nº 1 b) da L. 2127 de 378/65, conduz à referida descaracterização?
Uma vez mais ,salvo o devido respeito por melhor entendimento, julga-se que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Na verdade e desde logo, não ficou provado, que entre a queda do trabalhador e a existência de gelo( geada) no telhado existisse qualquer relação em termos de causalidade adequada ainda que na sua formulação negativa tal com o é acolhida pelo nosso ordenamento jurídico( cfr. artº o art.º 563º do CCv ).
Apenas se sabe que “ pelas 9h desse dia o a procedia ao telhamento da parte esquerda da placa de cobertura da casa acima mencionada, quando caiu” e que “O A ao caminhar sobre uma parte já telhada para buscar uma régua que estava junto ao cume, escorregou e caiu ao solo de uma altura de 5m”
Esta facticidade( não censurada aliás) é manifestamente insuficiente para considerar que foi a geada “ a causadora” do acidente.
Depois mesmo que assim se não entendesse, sempre a conduta do A, embora reveladora de negligência fortemente censurável, não integraria a tal falta grave, indesculpável que descaracterize o acidente.
Que o trabalhador agiu, sem usar dois cuidados exigíveis ao ser humano de mediana cautela- repete-se- não poder ser posto em causa.
Restará saber, se o aludido comportamento( mesmo dando de barato a tese do empregador) assumiu foros de tal gravidade que se possa integrar no conceito da tal “ falta grave e indesculpável”.
A culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto- cfr. Vaz Serra, RLJ, 11º- 151, podendo nela distinguirem-se três graus, digamos assim -:
o de culpa levíssima, que é aquela que só as pessoas extremamente diligentes podem evitar;
o de culpa leve, que é aquela em que não cairia uma pessoa de vigilância ou diligência média;
o de culpa grave, que é aquela em que o agente usa de uma diligência abaixo do mínimo habitual, procedendo como pessoa extremamente desleixada- cfr. Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, págs. 57/58-.
Por outro lado, é jurisprudência unânime que a culpa do trabalhador para conduzir à descaracterização do acidente, tem que para além de ser exclusiva( como o foi no caso, ou pelo menos nenhum facto existe que aponte em sentido contrário) se traduzir num comportamento temerário e inútil, até no ponto de vista com a sua conexão com o trabalho que se desempenha, não bastando para tal a mera distracção ou imprevidência- cfr. neste sentido entre muitos outros , o Ac do STJ, in C.J. /STJ, IX, II, 269 e a doutrina aí indicada -.
Não é, salvo melhor opinião, a situação que se nos depara.
Sem dúvida que o A não foi cuidadoso, pois é evidente o perigo que resulta de subir a um telhado, que esteja com gelo, ou meramente húmido.
Todavia e desde logo a sua conduta está directamente ligada ao exercício da sua actividade profissional e que no momento desempenhava.
Depois, não podemos olvidar que o lidar dia a dia com situações de risco, criam uma habitualidade que levam a que o ser humano de normal cuidado, deixe de agir com as cautelas que noutras circunstâncias teria.
Será por isso que o legislador expressamente não entende como “ falta grave e indesculpável” o acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado( artº 13º do D.L. 360/71 de 21/8).
Estamos perante uma conduta voluntarista, em que o trabalhador, não usando da previdência exigível, vai exercer uma determinada actividade, no fundo no sentido de mais rapidamente concluir a tarefa que lhe está ordenada e logicamente com benefício para o empregador.
Censurável a sua conduta, tal grau de reprovação não pode porém por tudo o que se explanou, ter a potencialidade de determinar a perda do seu direito à reparação.
Numa palavra: salvo o devido respeito por modo diverso de entender as coisas, consideramos que não se nos depara a mencionada conduta temerária e inútil, até no ponto de vista com a sua conexão com o trabalho que se desempenhava, pois foi em vista dele que assim procedeu.
Daí que a sua conduta não possa ser subsumida à previsão da alínea b) do nº1 da citada Base VI, não estando pois o acidente em causa, descaracterizado.
Significará isto todavia, que a responsabilidade da reparação incumbe à entidade patronal( e assim passamos à analise da outra temática colocada pela recorrente e que se prende com o cumprimento das normas de segurança)?
Na 1ª instância, julgou-se pela afirmativa considerando que existira por parte dela violação das normas de segurança, presumindo-se nesse caso a sua culpa.
Temos a este propósito entendimento diverso.
É certo que se o acidente resultar de culpa do empregador será este o responsável pela reparação infortunística, que é agravada, presumindo-se a culpa, sempre que o evento fique a dever-se à inobservância de preceitos legais e regulamentares, assim como a directivas das entidades competentes, que se refiram á higiene e segurança no trabalho- cfr. Base VXII nºs 1 e 2 da L. 2127 e artº 54º do D.L. 360/71 .
No caso em apreço o relatório do IDICT(fls. 21 e segs.) refere( ainda que de modo condicional) a possível existência de desrespeito por normas legais de segurança.
E na sentença em apreço, a condenação da recorrente baseou-se no não cumprimento do disposto no artº 44º do D.L. 41821 de 11/8/58( Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil).
Nesta peça se dá como demonstrada a falta de guarda corpos e de guarda cabeças.
Todavia é de atentar desde logo, que este último tipo de objectos não tem como finalidade obstar a quedas de trabalhadores, mas sim que objectos caiam sobre pessoas.
Depois quer uns, quer outros, apenas, por princípio se mostram necessários no caso de existirem aberturas nos soalhos ou plataformas de trabalho semelhantes, ou em paredes( cfr. artºs 40º e 42º do citado Regulamento de Segurança.
Em pare alguma deste processo se equaciona tal quadro fáctico.
É verdade que de acordo com o artº 44º deste mesmo diploma se impõe a tomada de medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo e sempre que tal não seja possível o uso de cintos de segurança pelos trabalhadores( parágrafo 2 do aludido artº), mas tão somente para as situações em que o trabalho em cima de telhados, implique riscos acrescentados pela sua inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeitos das condições atmosféricas.
Ora se no mencionado relatório do IDICT, se faz referência á inclinação do telhado onde o sinistrado laborava, já tal facticidade não se encontra vertida na decisão em análise.
E só da factologia desta constante pudemos curar.
Portanto resta saber – e porque outros elementos que integram a previsão do citado artº 44º não possuímos- se as condições atmosféricas que na altura se faziam sentir, obrigavam ao respeito das normas de segurança mencionadas no dito normativo.
Quer o telhado estivesse apenas húmido, ou com geada, ter-se-ia que concluir( em princípio) pela afirmativa.
Porém , no caso em apreço a solução não se nos afigura tão linear assim.
É que, como nos parece evidente, o respeito pelas referidas normas de segurança só fazem sentido se o trabalho se processar naquelas condições.
Se o empregador perante o risco acrescido, resolve interromper( ou impedir o início) da laboração, até que o perigo deixe de se fazer sentir, então torna-se perfeitamente desnecessária a observância dos cuidados legais, já que destinando-se estes à prevenção de acidentes, eles não podem acontecer, se a actividade não for exercida.
Ficou provado, que o apelante deu ordens para que nenhum trabalhador subisse ao telhado, enquanto este não estivesse em condições.
Este comando não foi respeitado pelo A, sendo certo que a ele estava obrigado( artº 20º nº 1 c) da LCT).
Ora sendo assim, não se pode considerar que a inexistência dos mecanismo de segurança, se impusessem, “ in casu”, não podendo aqui falar-se em conduta negligente do empregador ao não possuir tais equipamentos, pois que apenas exigíveis se houvesse da sua parte determinação para a laboração, ou pelo menos que nada fizesse( ou ordenasse) no sentido da sua não realização.
Como ficou demonstrado, não foi isso que aconteceu.
Pelo contrário provou-se- como oportunamente se explanou- que o R patronal determinou que apenas a actividade em cima do telhado começasse quando este estivesse em condições.
Tal facto afasta , a nosso ver, a possibilidade de imputação culposa ao empregador da inexistência dos tais instrumentos especiais de segurança.
Na verdade traduzindo-se a culpa na omissão de um dever de diligência censurável porque exigível ao ser humano de mediana cautela, não se vislumbra onde a violação desse dever, se se proíbe a actividade cuja perigosidade tais equipamentos tendem a evitar ( ou pelo menos diminuir).
E se assim é, como julgamos ser, então não pode haver responsabilização por reparação infortunística, da sua parte, já que esta tem como pressuposto que o não acatamento dos princípios de segurança, se deve a conduta negligente do empregador.
E de qualquer forma no caso em apreço nem sequer em falta de respeito por tais regras se pode falar, pois que a actividade laboral estava por ela proibida, o que naturalmente dispensava o cumprimento daquelas.
Temos assim que o A sofreu um acidente de trabalho(que não se encontra descaracterizado), reparável nos termos nomeadamente das Bases IX, XIV, XVI todas da L. 2127 mas em que – e por força do contrato de seguro existente( Base XLIII do último diploma citado) é responsável pela reparação devida, a Ré seguradora mas e apenas pelas prestações normais.
Termos em que e concluindo, na procedência da apelação e revogando-se a decisão em crise, decide-se:
A)- Absolver o R patronal de todo o peticionado;
B)- Condenar a Ré seguradora a pagar ao A as quantias de :
- € 100 por 4 dias de falta ao trabalho- artºs 22º nº 1, 23º nº 2 e), 26º nºs 1 e 2
c) todos do D.L. 874/6 de 28/12-.
- € 1620, 90 a título de despesas com deslocações obrigatórias ao tribunal, serviços médicos da seguradora e sessões de fisioterapia;
-€ 5. 440, 48 a título de ITA
- € a pensão anual e vitalícia de € 481, 91, a partir de 16/12/01, obrigatoriamente remível a partir do dia seguinte a essa data, levando-se em conta o que o A já percebeu a título de pensão provisória.
C)- Condenar a Ré seguradora a pagar ao D... a quantia de
€ 1. 610. 93 de despesas hospitalares realizadas com o A
As quantias relativas a ITA e à pensão fixada vencem juros á taxa legal desde o seu vencimento ( dia seguinte ao do acidente e ao da alta, respectivamente) até integral pagamento.
As restantes desde a citação até integral pagamento.
Custas nas duas instâncias pela seguradora.