Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
244/08.7TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CRIME CONTINUADO
QUEIXA
Data do Acordão: 10/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 410.º N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS B) E C) DO C.P.P., , 115.º, 118.º N.º 1 , ALÍNEA C), 119.º, N.º 2, B) E 205.º N.ºS 1 E 4, AL. A), DO C.P
Sumário: A natureza pública ou semi-pública no crime continuado determina-se através do valor mais alto de qualquer das actividades continuadas.
Decisão Texto Integral: Relatório

Nos presentes autos de instrução que correm pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, em que figura como ofendido A..., após realização do debate instrutório, o Ex.mo Juiz de Instrução, por despacho de 3 de Abril de 2009 , decidiu não pronunciar o arguido C... pela prática de um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 205.º, n.ºs 1 e 4, al. a) e 30.º, n.º 2, do Código Penal, pelo qual o Ministério Público deduzira acusação e, consequentemente, determinou o arquivamento dos autos.

Inconformado com o douto despacho de não pronúncia dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1.º - A qualificação do ilícito em apreço nos autos encontra-se bem delineada, pelo menos no que tange ao crime continuado, como se refere na decisão de que ora se recorre;
2.º - Encontramo-nos perante um ilícito de natureza pública e não semi-pública como é referido na decisão ora posta em crise;
3.º- Tratando-se de um crime público e de um crime continuado, o prazo para a extinção do procedimento criminal corre desde a data da prática do último acto e pelo menos durante o prazo de 5 anos, nos termos do disposto nos art.ºs 118.º n.º 1 -c), 119.º n.º 2-b) ( vide ainda os art.ºs 205.º n.º s 1 e 4-a) ), todos do CPenal;
4.º- O direito de queixa foi exercido dentro do aludido prazo e é, pois, tempestivo;
5.º- Donde que a decisão deveria ser a de pronúncia do arguido pelo ilícito por que se encontra acusado e não o contrário como ficou decidido;
5ª A sentença ora em recurso violou as disposições dos art. 410.º n.º 1 e 2-b) e c), 712.º n.º 3 do CPCivil e 115.º, 118.º n.º 1 -c), 119.º n.º 2-b) e 205.º n.ºs 1 e 4-a), estes do C. Penal.
Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que pronuncie o arguido C… pelo crime que lhe é imputado na acusação pública, como é de Justiça e Direito.

O arguido respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público pugnando pela manutenção integral da decisão recorrida.

A Ex.ma Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

Do despacho recorrido consta , designadamente e com interesse para a decisão , o seguinte:
« Nos presentes autos de instrução o arguido, após a notificação da acusação de fls. 432 e seguintes, requereu a abertura da instrução invocando dois aspectos:
• caducidade do direito de queixa;
• prescrição do procedimento criminal.
Procedeu-se a debate instrutório do qual resultaram além do mais a questão de saber qual a origem das dívidas e cobranças fiscais, bem como a origem e cobranças das contribuições para a Seg. Social.
Importa pois apreciar e decidir:
Dá-se aqui por reproduzida a acusação pública de fls. 432 a 436, em termos de imputação, à excepção do momento do conhecimento dos factos objecto da mesma por parte do queixoso.
Quanto ao momento do conhecimento o tribunal conclui haver indícios de que:
A... foi notificado em data não apurada mas antes de 12 de Maio de 2006 que se encontrava pendente, contra si uma execução fiscal por dívidas à Seg Social na qual o capital era € 18.201,06 e juros de mora no montante de € 6.104,35.
Do documento de fls. 5 não resulta que tipo de contribuições são devidas e qual o período em causa.
A declaração de fls. 6 não diz que obrigações são e para quem são, só podendo ser entendidas como as obrigações perante quem das declara, ou seja, perante a CT....
A fls. 230 consta um listagem decorrente de uma consulta efectuada em 16-06-2006 junto do sitio da Seg. Social de onde resulta que valores se encontram em dívida, qual o tipo de tributo, qual o período em causa.
O maior dos valores por cada período, e recorde-se que as declarações têm periodicidade mensal e devem ser efectuadas e pagas até ao dia 15 do mês seguinte ao do processamento dos salários relativos ao mês de Julho de 2007 no valor de € 754,93.
E a mais antiga foi emitida em 2006 referente ao mês de Dezembro de 1994.
Ora perante tais elementos importa desde logo determinar qual o crime em causa, e qual o regime processual penal.
O artigo 205º - abuso de confiança - contem no seu n.º 3 a natureza do crime, dizendo que o mesmo depende de queixa, ou seja, para haver procedimento criminal o titular do património atingido com a acção deverá apresentar queixa, sendo que a mesma, nos termos do artigo 49.º do Código de Processo Penal conjugado com o artigo 115.º do Código Penal determina que o prazo da mesma é de 6 meses contados a partir do momento em que o titular tenha conhecimento do facto e dos seus autores.
Nos termos do artigo 30.º do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente, sendo que constituí um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Quanto ao concurso de crimes há que distinguir claramente duas situações:
º uma que vulgarmente é denominada na doutrina por concurso aparente, ou seja, um concurso de normas, que ocorre sempre que uma conduta preenche várias normas penais, sendo que este concurso de normas será resolvido pelas regras da especialidade, da consumpção (pura ou impura), da subsidiariedade e da regra do facto posterior não punível;
º e a outra, sempre que ocorra uma pluralidade de factos, ou até apenas um (concurso ideal), que se traduz, não num concurso de normas, mas num concurso efectivo de crimes.
Nos presentes autos não há dúvidas que a provarem-se os factos constantes dos autos os mesmos encerram a figura do crime continuado.
A figura surgiu por dois motivos uma pela indeterminação do número de vezes que o agente praticou o crime, e a outra por razões de equidade, pois provando-se o número de vezes cair-se-ia em penas exageradas o que no caso concreto determinaria uma moldura penal entre 30 dias de prisão e mais do que 300 anos de prisão.
Mas a figura não permite uma aglutinação pura e simples dos factos, importa, antes de mais que cada facto em concreto preencha os elementos do tipo, e sendo o valor um elemento que poderá resultar numa qualificação diversa, num tipo qualificado ou agravado, ter-se-á que verificar esse elemento num dos actos.
Ora da acusação resulta que o valor total de que o arguido se apropriou foi de € 18.201,06, no entanto o valor mais alto dos actos, como já foi referido é de € 754,93.
Tendo o Ministério Público qualificado a acção no n.º 4 do artigo 205.º do Código Penal, falta o elemento do valor ser superior a 50 UC.
Assim, ter-se-á que qualificar os factos como um crime de abuso de confiança na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal.
Atendendo ao n.º 3 do mesmo preceito a procedibilidade depende de queixa, sendo que nos presentes autos a mesma foi apresentada no dia 18-12-2008.
Ora, tendo havido, conhecimento dos factos e do seu autor pelo menos em 16 de Junho de 2006 já haviam decorrido mais do que dois anos desde o conhecimento dos factos e seus autores (cfr. fls. 230 e fls. 6).
Perante tal dilação de tempo ter-se-á que concluir que o direito de queixa se encontra extinto.
Tal extinção é impeditiva da aplicação ao arguido de qualquer sanção penal. (…).
Por tudo o exposto é manifesto que a eventual pronuncia iria sempre naufragar em sede de julgamento, devendo, por isso ser não pronunciado o arguido, sem prejuízo da responsabilidade civil que exista.
Decisão:
Por tudo o exposto o tribunal não pronuncia o arguido C... pelos factos que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução, e consequentemente determina o arquivamento dos autos. »

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:
- se a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 410.º n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c) do C.P.P., , 712.º, n.º 3 do C.P.C. e 115.º, 118.º n.º 1 , alínea c), 119.º, n.º 2, b) e 205.º n.ºs 1 e 4, al. a), do C.P., uma vez que o crime imputado ao arguido na acusação é de natureza pública e continuado, e o direito de queixa foi exercido tempestivamente.
Passemos ao conhecimento da questão.
Antes de passar directamente ao objecto do recurso e para melhor entendimento do que está em causa, importa aqui recordar que o arguido C... foi acusado pelo Ministério Público da prática de factos pelos quais teria cometido um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 205.º, n.ºs 1 e 4, al. a) e 30.º, n.º 2, do Código Penal.
Quer o Ministério Público, quer a decisão recorrida, defendem que os factos descritos na acusação integram um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos artigos 205.º e 30.º, n.º 2, do Código Penal.
O Ministério Público entende que o crime de abuso de confiança, sob a forma continuada, é agravado pela al. a), n.º 4, do art.205.ºdo Código Penal, ou seja, pelo “valor elevado” porquanto o arguido se apropriou do montante € 18.201,06, no período que medeia entre Janeiro de 1994 a Julho de 2005, como resulta da relação de folhas 160 a 163.
Integrando-se indiciariamente a conduta do arguido na al.a), n.º4 do art.205.º do Código Penal, o crime de abuso de confiança será de natureza pública, não estando a perseguição do arguido dependente de queixa.
A decisão recorrida, entendeu por sua vez, que sendo o crime de abuso de confiança imputado ao arguido, sob a forma continuada, há que atender, para fixação da incriminação, ao valor mais alto da prestação devida à Segurança Social que o ofendido entregou ao arguido para este entregar à instituição, e não ao valor total das prestações de que o arguido se apropriou e que lhe haviam sido entregues pelo ofendido.
Como o valor mais alto das prestações constantes da listagem de folhas 230 ( que corresponde à que consta de folhas 160 a 163) é de € 754,93, então o crime de abuso de confiança não é agravado pelo “valor elevado” , uma vez que não é superior a 50 UCs. O crime de abuso de confiança indiciariamente praticado pelo arguido será assim o do n.º1 do art.205.º, n.º1 do Código Penal, o que o torna num crime semi-público (n.º 3). Como o ofendido apresentou queixa no dia 18-12-2008 e houve conhecimento dos factos e do seu autor pelo menos em 16 de Junho de 2006, já haviam decorrido mais do que dois anos desde o conhecimento dos factos e seus autores, pelo que ter-se-á que concluir que o direito de queixa se encontra extinto.
Vejamos.
O art. 205.º do Código Penal , estatui, designadamente, o seguinte:
« 1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
4. Se a coisa referida no n.º 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5. Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.».
Nos termos do art. 202.º do Código Penal , valor elevado é “ aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto;” (alínea a) e valor consideravelmente elevado é “ aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto;” (alínea b).
A legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação por um crime semi-público depende do prévio exercício do direito de queixa pelo titular respectivo ( art.49.º do C.P.P.).
Um dos titulares do direito de queixa é o ofendido, na definição dada na alínea a), n.º 1 do art.68.º do Código de Processo Penal, ou seja, o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Nos crimes de natureza semi-pública há que tomar em consideração que « O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.» - art.115.º, n.º1, do Código Penal.
O crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205.º, n.º1 do Código Penal é de natureza semi-pública, como resulta claramente do seu n.º 3.
Já reveste natureza pública nas situações previstas nos n.ºs 3 e 4 do art.205.º do Código Penal.
A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicia; um só crime na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo; e um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.
No primeiro caso a reiteração é punida como uma unidade, com soma dos valores para a determinação da pena; no crime continuado, quando se verificarem os pressupostos descritos como essenciais ao respectivo conceito, a moldura da pena determina-se através do valor mais alto por qualquer das actividades continuadas; e, no último caso, quando os diversos crimes praticados forem inteiramente independentes, seguem-se as regras comuns da punição do concurso. - cfr Prof. Eduardo Correia, “Unidade e pluralidade de infracções”, páginas 288/289.
No seguimento da doutrina do Prof. Eduardo Correia, ficou estabelecido no art.30.º, n.º2 do Código Penal que “ constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime , ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” e, no art.79.º do mesmo Código, que “ o crime continuado é punível com pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.”.
De acordo com este último preceito a punição do crime continuado determina-se em função da moldura punitiva da infracção mais grave que integra a continuação – ponderando-se os outros factos de menor gravidade da continuação criminosa na medida concreta da pena.
No caso em apreciação, a moldura penal mais grave que se detecta indiciariamente nos diversos actos singulares de apropriação ilegítima de prestações entregues ao arguido pelo ofendido destinados à Segurança Social, que vão Janeiro de 1994 a Julho de 2005, é a referente à quantia de € 804,77, respeitante ao mês de Novembro de 2004 – e não a quantia no valor de € 754,93, mencionada no despacho recorrido -, pois foi a quantia mais elevada de que se terá apropriado.
Este acto singular, integrado indiciariamente na continuação criminosa, não integra a definição legal de valor elevado ( 50 Ucs, em 2005, correspondiam a € 4450 ), nem de valor consideravelmente elevado (200 Ucs, em 2005, correspondiam a € € 17 800 ). E é evidente que a conduta do arguido também não se integra – nem aqui está em causa – na qualificativa prevista no n.º5 do art.205.º do Código Penal, uma vez que o arguido não recebeu indiciariamente as quantias ilegitimamente apropriadas “em depósito imposto por lei”.
Temos assim de concluir que a conduta do arguido apenas preenche os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.205.º, n.º1 do Código Penal.
Antes de retirar as conclusões desta tomada de posição decisão, importa considerar que o Ministério Público defende na motivação do recurso - com alguma expressão nas conclusões da motivação -, que a decisão recorrida padece dos vícios da contradição insanável na fundamentação e do erro notório na apreciação da prova a que aludem, respectivamente, as alíneas b) e c), n.º 2 do art.410.º do Código de Processo Penal.
Alega para o efeito o seguinte:
« Diz a decisão a fls. 484, após discorrer sobre o tema que “ ­­nos presentes autos não há dúvidas que a provarem-se os factos constantes dos autos os mesmos encerram a figura do crime continuado.”
Referindo, mais abaixo, que “ da acusação resulta que o valor total de que o arguido se apropriou foi de 18.201,06 …” concluindo a seguir, que o ilícito cai na previsão do art.205.º n.º 1 do CPenal.
Ora, assim se tendo entendido e face ao disposto no art.119.º n.º2-b) do CPenal, sempre o prazo de prescrição do procedimento criminal “ …corre: Nos crimes continuados, …desde o dia da prática do último acto;”
E, à data da prática do último acto, o montante objecto do ilícito em apreço, como refere a decisão de que ora se recorre era de 18.201,06 euros.
Donde, não ocorreu, “in caso”, a prescrição do direito de queixa nos termos descritos, tendo este sido tempestivamente exercido.».
Salvo o devido respeito, a invocação dos vícios do art.410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal não têm aqui qualquer razão de ser.
O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou

c) O erro notório na apreciação da prova .

O vício da contradição a que se alude na alínea b), n.º2 do art.410.º do C.P.P. existirá quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa. Duas proposições contraditórias não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas.

O erro notório na apreciação da prova , a que alude o art.410.º, n.º 2 do C.P.P. , tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740. No mesmo sentido decidiram , entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).

De acordo com o art.426.º, n.º1 do C.P.P., sempre que por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do art.410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
O art.426-A do C.P.P. clarifica quem é o tribunal competente para o novo julgamento em caso de reenvio do processo.
Os vícios do art.410.º do C.P.P. são , pois, vícios intrínsecos da sentença, que quando existem, e o tribunal de recurso os não pode suprir, determinam o reenvio do processo para novo julgamento, parcial ou total.
No despacho de pronúncia ou de não pronúncia, decide-se apenas da existência de nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que o Juiz de Instrução possa conhecer e da existência de indícios suficientes ou não dos factos imputados ao arguido e respectivo crime ( art.308.º do C.P.P.).
A instrução situa-se numa fase anterior ao julgamento e à problemática da matéria de facto provada ou não e sua fundamentação.
No caso em apreciação o Ministério Público limita-se a invocar uma pretensa contradição na decisão recorrida e erro notório na apreciação da prova, omitindo para o efeito parte de uma frase que consta da decisão recorrida.
Na decisão recorrida não consta apenas que “ da acusação resulta que o valor total de que o arguido se apropriou foi de 18.201,06 …”. A frase integral é “ Ora da acusação resulta que o valor total de que o arguido se apropriou foi de € 18.201,06, no entanto o valor mais alto dos actos, como foi referido é de € 754,93.”.
O Ex.mo Juiz de Instrução, ao decidir que no crime continuado há que atender, não ao valor total de que o arguido se apropriou ilegitimamente, mas ao valor mais alto dos actos singulares praticados na continuação criminosa, usou um processo racional e lógico, onde não se vislumbram contradições.
A decisão recorrida não padece, assim, dos vícios da contradição na fundamentação da decisão recorrida, nem erro notório na apreciação da prova a que aludem as alíneas b) e c) , n.º2 do art.410.º do C.P.P
O crime de abuso de confiança indiciariamente praticado pelo arguido preenche apenas o n.º1 do art.205.º do Código Penal, sendo assim de natureza semi-pública.
Não é questionada a decisão recorrida na parte em que menciona que a queixa foi apresentada no dia 18-12-2008 e o ofendido A... tinha conhecimento dos factos e do seu autor pelo menos em 16 de Junho de 2006.
Assim, atento o disposto no art.115.º, n.º 1 do Código Penal, temos de concluir que o direito de queixa - traduzido numa manifestação de vontade dirigida ao Ministério Público a fim de ser instaurado o procedimento criminal - há muito havia caducado quando esta foi apresentada.
Uma vez que o direito de queixa se encontra extinto, não pode prosseguir o processo para julgamento.
Em face de todo o exposto, e não tendo o Ex.mo Juiz de Instrução violado nenhuma das normas indicadas pelo recorrente nas conclusões da motivação, resta julgar improcedente o recurso do Ministério Público e confirmar a decisão de não pronúncia do arguido.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e manter o despacho de não pronúncia.
Sem custas.
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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,