Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1740/11.4TBTMR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: INSOLVÊNCIA
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.8 CIRE
Sumário: Havendo pluralidade de processos pendentes visando a declaração de insolvência do mesmo devedor, o disposto no nº 4 do artigo 8º do CIRE é de aplicação subsidiária em relação ao disposto no 2º desse artigo.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTA RELAÇÃO DE COIMBRA O SEGUINTE:

I – Relatório:
1.Em 27.12.11, a credora "M (…), LDA", requereu a declaração de insolvência de "A (…), LDA", originando o Proc. n° 1734/11.0TBTMR do 3° Juízo.
2. Em 29.11.11, a mesma sociedade "A (…), LDA" apresentou-se à insolvência, o que originou o presente Proc. nº 1740/11.4TBTMR, do 3° Juízo.
3. Neste Proc. nº 1740/11.4TBTMR foi declarada a insolvência da devedora por sentença de 07.02.12, não sendo ali ao tempo conhecida a pendência da acção anterior.
4. No Proc. nº 1734/11.0TBTMR foi junta certidão daquela sentença que decretou a insolvência e, com base nela, em 07.02.12 foi proferido despacho declarando a suspensão da instância nos termos do disposto no artigo 8°, nº 4, do CIRE. O mesmo despacho solicitou informação sobre o trânsito em julgado daquela sentença.
A secretaria informou que foi interposto recurso da dita sentença.
Na verdade, a credora M (…) Lda interpôs neste Pº 1740/11 o presente recurso da sentença que decretou a insolvência, concluindo na sua alegação que a sentença deve ser revogada e substituída por outra que ordene a suspensão da instância, com fundamento no disposto no artigo 8°, nº 2, do CIRE, dado que a acção 1740/11 foi instaurada posteriormente à acção 1734/11.
A devedora não contra-alegou.
O Ministério Público contra-alegou, concluindo que, por não ter havido notícia da pendência da acção anteriormente instaurada, deve manter-se a suspensão do processo em que, embora instaurado primeiro, não houve sentença de insolvência, em aplicação do nº 4 do artigo 8º do CIRE.
A questão a decidir consiste em saber se a sentença que decretou a insolvência do devedor neste processo 1740/11, instaurado depois do processo 1734/11 relativo ao mesmo devedor, deve ser revogada por ter sido infringido o disposto no artigo 8°, nº 2, do CIRE e ser nele declarada a suspensão da instância ou se assim não deve ser por aplicação do disposto no artigo 8°, nº 4, do CIRE.
Porque nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II- Fundamentos:
As vicissitudes processuais relevantes constam descritas acima no relatório.
Os dois referidos processos de declaração de insolvência são relativos ao mesmo devedor e o processo 1740/11 foi instaurado depois do processo 1734/11. No Pº 1740 foi proferida sentença que decretou a insolvência e, depois desse decretamento, foi no Pº 1734 declarada suspensa a instância.



Preceitua o art 8º do CIRE, sob a epígrafe Suspensão da instância e prejudicialidade”:
1 - A instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, excepto nos casos expressamente previstos neste Código.
2 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 264.º, o tribunal ordena a suspensão da instância se contra o mesmo devedor correr processo de insolvência instaurado por outro requerente cuja petição inicial tenha primeiramente dado entrada em juízo.
3 - A pendência da outra causa deixa de se considerar prejudicial se o pedido for indeferido, independentemente do trânsito em julgado da decisão.
4 - Declarada a insolvência no âmbito de certo processo, deve a instância ser suspensa em quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor e considerar-se extinta com o trânsito em julgado da sentença, independentemente da prioridade temporal das entradas em juízo das petições iniciais.

Subjaz a esse normativo o desiderato de que não corram termos dois ou mais processos de insolvência em simultâneo a respeito do mesmo devedor ou que, pelo menos, não haja de ser decretada a insolvência em mais do que um dos vários processos pendentes que tenham sido instaurados a respeito do mesmo devedor. Na verdade, seria uma aberração decretar-se (e valer) a insolvência do mesmo devedor em vários processos simultaneamente pendentes, além do mais porque o mesmo património não pode ser liquidado duas vezes, nem ter vários administradores simultâneos, nem os mesmos créditos podem (devem) ser pagos várias vezes, nem pode haver simultaneamente vários planos de insolvência ou de pagamentos ou várias exonerações de passivo restante.
Daí a suspensão da instância. Suspensão que pode terminar no seu levantamento e prosseguimento do processo (se no outro processo houver indeferimento do pedido ou decisão transitada que revogue o decretamento da insolvência) ou terminar com a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (no caso de no outro processo haver decretamento de insolvência por decisão transitada em julgado).

O dito artigo 8º erige dois critérios para se decidir em qual dos dois processos, simultaneamente pendentes e relativos ao mesmo devedor, deve ser declarada suspensa a instância.
O primeiro critério consta do seu nº 2: o da antiguidade dos processos. Deve ser suspensa a instância no processo ou processos instaurados posteriormente: só corre termos o processo cuja petição inicial tenha primeiramente dado entrada em juízo. Esse critério é inspirado ou decalcado no regime do CPC sobre suspensão por prejudicialidade.
O segundo critério, subsidiário do primeiro, consta do nº 4: o de ter sido declarada a insolvência em um dos vários processos (simultaneamente pendentes). Ponto é que o decretamento da insolvência não esteja coberto por decisão transitada em julgado (decisão transitada que pode ser a da 1ª instância ou de tribunal superior), pois que o trânsito em julgado implica a extinção da instância e não a suspensão da instância.
Este critério subsidiário tem claramente como ratio o princípio do aproveitamento dos actos jurídicos: tendo, porventura, sido decretada a insolvência em processo que devia ter sido e não foi suspenso por prejudicialidade de outra acção de insolvência relativamente ao mesmo devedor, a lei afasta o critério do nº 2 e manda aproveitar o acto de decretamento da insolvência. Essa é uma razão de ser teleológica. Mas, etiologicamente, há uma outra razão de ser: é que há casos em que o juiz não teve conhecimento ou não foi feito ciente da existência de uma pluralidade de processos pendentes visando a declaração de insolvência do mesmo devedor, podendo acontecer que um processo mais recente andou mais celeremente até ser proferida decisão a decretar a insolvência. E esta situação é mais susceptível de ocorrer quando o processo mais recente proveio de apresentação pelo próprio devedor, o que implica abreviação dos termos do processo. E foi este o caso.

Ou seja: a aplicação do critério do nº 4 pressupõe que foi proferida sentença de decretamento da insolvência em processo no qual não foi suspensa a instância, mas devia tê-lo sido porque instaurado posteriormente. A solução estatuída no nº 4 para essa situação que contraria o disposto no nº 2 não é a de anulação ou revogação da sentença para fazer prevalecer o critério do nº 2, o que aliás seria inútil pois que não havendo o preceito do nº 4 o preceito do nº 2 valeria em qualquer caso.
A solução estatuída no nº 4 só se compreende porque implícita mas necessariamente pressupõe que o preceito do nº 2 não foi observado. E o que o preceito do nº 4 determina é uma de duas: a suspensão da instância no processo ou processos onde não foi ainda proferida decisão final, desde que haja um outro processo onde foi decretada a insolvência por decisão ainda não transitada; ou a extinção da instância no processo ou processos onde não foi ainda proferida decisão final, desde que haja um outro processo onde foi decretada a insolvência por decisão já transitada.
Consequentemente, o Ministério Público tem razão na sua contra-alegação. A sentença proferida deve manter-se, por ser aplicável o disposto no nº 4 do artigo 8º do CIRE, e o recurso deve improceder.

Em síntese final:
Havendo pluralidade de processos pendentes visando a declaração de insolvência do mesmo devedor, o disposto no nº 4 do artigo 8º do CIRE é de aplicação subsidiária em relação ao disposto no 2º desse artigo.

III- Decisão:
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Coimbra, 2012-09-11



Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira