Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
53/06.8IDAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES.
Descritores: FRAUDE FISCAL
SIMULAÇÃO DE CONTRATO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
DOLO
DISPENSA DE PENA
Data do Acordão: 06/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 103.º E 22.º, N.º 1 DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS; ARTIGOS 14.º; 73.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E C) DO CÓDIGO PENAL.
Sumário: I. – O crime de fraude fiscal constitui para alguns autores um crime comum porquanto “o preceito a nenhuma delimitação expressa em relação à autoria procede, nem parece que as condutas ilegítimas tipificadas tenham de ser cometidas – motus proprio ou em comparticipação –, por quem tenha a qualidade de contribuinte ou de sujeito passivo de imposto, antes nos parecem poder ser cometidas por qualquer pessoa» Isabel Marques da Silva, (Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º5, 2.ª edição, p. 157 e 158) e Nuno Pombo (A fraude fiscal – a norma incriminadora, a simulação e outras reflexões, Almedina, 2007, pp. 56 e segs.).
II. – Já para outros o crime de fraude fiscal é um crime específico pois exige a intervenção de pessoas de um determinado círculo (sujeitos passivos de relações tributárias), mas podendo, contudo, ser imputado a qualquer pessoa (A tutela penal das deduções e reembolsos indevidos de imposto, Revista do Ministério Público, Ano 23, n.º 91, p. 58).
III. – Ainda para outros “a delimitação do círculo de autores que definiria o crime em causa, no seu entender, como específico, apenas se reporta às omissões previstas nas alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 103.º do R.G.I.T”.
IV. - Diversamente, quando a conduta típica se realiza no quadro da alínea c), por acção, esta autora entende que o tipo pode ser preenchido por qualquer pessoa, o que faz que a fraude fiscal, nessa modalidade de conduta, seja um crime comum (Os crimes fiscais: Análise dogmática…, Coimbra Editora, 2006, pp.98 e 99).
IV. – Tendo ocorrido um negócio simulado entre duas pessoas quanto ao valor, como foi o caso, tendo em vista a finalidade de diminuir a prestação de imposto, há co-autoria na prática do crime de fraude fiscal, ainda que apenas um dos outorgantes seja o sujeito passivo da relação tributária.
V. - Nessa situação, que é uma das vias de execução vinculada do crime (que apenas pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas do n.º1 do citado artigo 103.º), estamos perante uma infracção por natureza plurissubjectiva, o que equivale a dizer que só mediante o acordo de vontades em que se traduz o contrato celebrado é possível cometer o crime de fraude fiscal.
VI. - A circunstância de um dos intervenientes no contrato não ser sujeito passivo e, por conseguinte, não retirar para si vantagem patrimonial da simulação, não sendo, patrimonialmente, beneficiado ou prejudicado, não significa que não deva ser considerado como co-autor (neste sentido, Nuno Pombo, ob. cit., pp. 180 e segs.).
VII. - O crime em causa, sendo essencialmente doloso, pode consumar-se sob todas as formas de dolo: dolo directo, necessário ou eventual.
VIII. – Na dispensa da pena o que está, primordialmente, em causa é uma exigência de prevenção especial.
IX. - Do ponto de vista da prevenção geral, a dispensa da pena será admissível sempre que, verificados os restantes pressupostos, o tribunal considere que, com a circunstância de o agente ser declarado culpado – o que o instituto da dispensa de pena necessariamente supõe –, ligada à natureza condenatória da sentença (…..) e à sua comunicação ao registo criminal (…..) se alcança o limiar mínimo de prevenção geral de integração ou de defesa do ordenamento jurídico, não sendo por isso, do ponto de vista da prevenção geral, necessária a imposição de uma pena.».
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
1. Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular registados sob o n.º53/06.8IDAVR, a correr termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Ílhavo, foram julgados e condenados:
- a arguida AA., pela co-autoria de um crime de fraude fiscal, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 103.º, n.º1 alínea c), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 25 (vinte e cinco euros), perfazendo o montante global de € 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros);
- o arguido BB. pela co-autoria de um crime de fraude fiscal, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 103.º, n.º1 alínea c), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €12 (doze euros), perfazendo o montante global de € 1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros);
- a arguida CC pela co-autoria de um crime de fraude fiscal, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 103.º, n.º1 alínea c), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 20 (vinte euros), perfazendo o montante global de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros).
2. Inconformada, a arguida CC a interpôs o presente recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
«1. ° Mesmo com base na matéria dada como provada, impõe-se a absolvição da recorrente, uma vez que o crime de fraude fiscal, p.p. pelo art. 103.º, n.º 1, alínea c), do RGIT só é punível a título de dolo directo e não já em qualquer outra das formas dolosas;
2. ° A verificação de tal crime exige a intenção específica do agente de obter vantagem patrimonial por não pagar receita fiscal devida e já não comportamento de qualquer agente que não vise aquele objectivo específico, nem sequer tenha obtido vantagem patrimonial com o acto, apenas se tenha conformando com a conduta intencional de terceiro;
3.º Dos depoimentos atrás referidos e referenciados aos respectivos suportes digitais e à acta de discussão e julgamento, deve dar-se como assente também que a ora recorrente nada ocultou nem pretendeu ocultar designadamente os elementos constantes das alíneas a) a d) do cap. IV da presente motivação de recurso, e que, com o acto de celebração do negócio, não só não adquiriu, como não podia adquirir, qualquer vantagem patrimonial, como dele resultou prejuízo para a recorrente na eventual celebração de negócio posterior;
4.° Se porventura se não concluir pela absolvição - o que apenas por mera hipótese de raciocínio se tem que conceder - deve então a recorrente beneficiar de dispensa de pena, nos termos do art.º 22.º, n.º 2, do RGIT, por se encontrarem verificados todos os pressupostos daquele instituto;
5. ° Ao não decidir deste modo, violou a douta sentença recorrida os preceitos legais acima referidos, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que decida em conformidade com o que nesta motivação de recurso se peticiona, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!»
3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo do seguinte modo (transcrição):
«1.O crime de fraude fiscal do art. 103.º do RGIT, é um crime de perigo, pois que não se exige a obtenção da vantagem patrimonial em prejuízo do Fisco e apenas a conduta tipificada que vise essa vantagem; e menciona-se ainda “a vantagem patrimonial pretendida” e não a obtida, que se consuma quando o agente, com a intenção de lesar, patrimonialmente, o Fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidos na relação Fisco-contribuinte, através de qualquer das modalidades de falsificação previstas no n.º 1 do referido art.23.º, ainda que nenhum dano / enriquecimento indevido venha a ter lugar.
2. Os arguidos, omitiram o valor real da compra e venda da farmácia, agindo todos de comum acordar de modo livre, deliberado e consciente, todos sabedores que os arguidos AA e BB não pagariam o imposto devido por aquela transacção ao Estado e que, com aquela actuação provocavam, todos, uma diminuição da receita tributária pois que, ao conformar-se com a exigência que lhe foi feita, sabendo que era ilícita e punida por lei, a arguida Ilda fê-lo agindo com dolo necessário, não podendo ser absolvida.
3. Deverá, pois, a sentença recorrida manter-se no que à condenação da arguida concerne. Porém,
4. O crime pelo qual a arguida foi condenada é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
5. O valor do Imposto em falta 1108 cofres do Estado, foi integralmente pago pelos seus devedores, co-autores do crime em apreço, acrescido dos respectivos juros compensatórios. Por outro lado,
6. In casu, mostram-se preenchidos os requisitos exigidos no artigo 22.º do RGIT, relativamente à arguida recorrente, sendo que não são conhecidas razões de prevenção especial que à dispensa de pena se oponham. E,
7. Como resulta claramente do artigo 22.º do RGIT, nos crimes previstos neste diploma, aqueles fins de defesa do ordenamento jurídico não são postos em causa pela dispensa de pena, se o arguido pagar as quantias em dívida e a ilicitude e a culpa não forem muito graves. Verificados os pressupostos das als. a) e b), não há razões relacionadas com a afirmação da validade e vigência da norma violada que obstem à dispensa da pena. De outro modo, sob pena de quebra da harmonia do sistema, não se compreenderia o alcance das referidas als. a) e b) do n.º 1 do art. 22.º do RGIT.
8. Assim, e pelo que fica exposto, entendemos que, nesta parte, deve o recurso merecer provimento sendo a recorrente dispensada de pena.»

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, manifestou a sua concordância com o teor da resposta apresentada, sustentando que o recurso deverá improceder quanto à impugnação da matéria de facto, o mesmo não acontecendo no que concerne à medida da pena, pelo que, no seu parecer, deverá ser concedido provimento parcial.
5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo a recorrente respondido, após o que, efectuado exame preliminar e corridos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Como dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma doravante designado de C.P.P.), os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva transcrição, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Efectivamente, segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271). Sempre que o recurso para a Relação, no que respeita à decisão de facto, se reveste de maior amplitude, impõe-se, metodologicamente, que se comece pela impugnação alargada da matéria de facto, só depois entrando, se necessário, nas restantes questões atinentes à decisão sobre o facto, ou seja, na apreciação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2 (cfr. Ac. do S.T.J., de 5.07.2007, proc. 07P2279, disponível em www.dgsi.pt).
Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões a apreciar e decidir: a reapreciação da matéria de facto, tendo em vista o aditamento de outros factos: a pretendida absolvição da recorrente por falência do elemento subjectivo do crime pelo qual foi condenada; a aplicação da dispensa de pena, caso a recorrente não seja absolvida.

2. A sentença recorrida
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados o seguintes factos (transcrição):
1. Os arguidos AA e BB são casados entre si e, à data dos factos, eram donos do estabelecimento comercial de farmácia denominado “FF”, instalado e a funcionar em nome da arguida AA, na …., concelho de Aveiro.
2. No dia 19 de Fevereiro de 2002 foi celebrada, no, a escritura de trespasse daquele estabelecimento, na qual figuravam como primeiros outorgantes os arguidos AA e BB e como segunda outorgante a arguida CC, sendo que aquele trespasse incluía “a cedência da chave e dos direitos e obrigações de arrendatários do local bem como a cedência de todos os seus pertences, designadamente móveis, mercadorias, medicamentos, respectivas licenças e alvarás”.
3. O valor atribuído ao aludido trespasse, constante da escritura notarial, foi de 199.519,16 € (cento e noventa e nove mil quinhentos e dezanove euros e dezasseis cêntimos).
4. Em data não concretamente apurada, mas anterior ao primeiro trimestre de 2006, foi efectuada acção inspectiva à arguida CC, pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Aveiro, tendo sido constatada a realização daquele trespasse cujo valor suscitou dúvidas face ao conhecimento dos valores de mercado praticados nas aquisições de farmácias.
5. Assim, os Serviços de Inspecção Tributária procederam à análise dos fluxos financeiros na contabilidade da arguida Ilda de Sousa, tendo sido detectada a existência de um empréstimo contraído no no montante de 1.382.388,44 € (um milhão trezentos e oitenta e dois mil trezentos e oitenta e oito euros e quarenta e quatro cêntimos).
6. Do extracto bancário referente à conta com o, da agência …, do Banco …e da qual é titular a arguida CC, constata-se que, com a data de 19 de Fevereiro de 2002, esta arguida emitiu dois cheques, a saber:
- cheque visado n.° …., no valor de x€ (cento e noventa e nove mil quinhentos e dezanove euros), à ordem de “AA”; e
- cheque visado n.° …, no valor de y € (um milhão cento e oitenta e dois mil cento e cinquenta e um euros), à ordem de “DD”, marido da arguida AA, que, por sua vez, o endossou aos arguidos AA e BB, que procederam ao seu levantamento em numerário.
7. Tais cheques destinavam-se ao pagamento do valor do trespasse do mencionado estabelecimento de farmácia que, ao contrário do que os arguidos fizeram constar na escritura de trespasse, totalizou a quantia de x€ (um milhão trezentos e setenta e um mil seiscentos e noventa e sete mil euros e vinte e um cêntimos), e ao acerto de contas referentes à utilização, pela vendedora, do Multibanco da farmácia ali instalado, no montante de €
8. Com a realização do descrito negócio e com a omissão do valor real pelo qual a transacção foi efectuada, os arguidos diminuíram a receita tributária no que ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) concerne, devido pelos arguidos Paula Dias e marido.
9.Com efeito, ao actuarem da forma descrita, os arguidos AA e BB deixaram de pagar à Administração Fiscal, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), referente ao ano de 2002, o montante de x € (quatrocentos e setenta mil novecentos e setenta e dois euros e catorze cêntimos), como era seu propósito e com o que a arguida CC se conformou.
10. Em 01 de Abril de 2006, os arguidos AA e BB apresentaram uma declaração de substituição relativamente aos rendimentos obtidos no ano de 2002 e, em Junho de 2006, efectuaram o pagamento do valor apurado em sede de liquidação de IRS, no montante …de acrescido de …a título de juros compensatórios.
11. Os arguidos agiram todos de comum acordo, de modo livre, deliberado e consciente, todos sabedores que com a descrita actuação os arguidos AA e BB não pagariam o imposto devido por aquela transacção ao Estado e que assim provocavam uma diminuição da receita tributária, no montante de …€, o que estes pretendiam e com o que a arguida CC se conformou, apesar de bem saberem que aquela conduta é proibida e punida por lei.
12. As negociações prévias à escritura foram efectuadas entre a arguida AA e CC
13.Os arguidos AA e BB têm dois filhos e vivem em casa própria. Ela é licenciada em farmácia, é sócia, conjuntamente com a testemunha EE, de uma sociedade que adquiriu a farmácia onde trabalha e ele tem o 12º ano de escolaridade, é técnico de farmácia noutra farmácia, auferindo vencimento mensal de 1.000,00 €.
14. A arguida CC é casada, o marido é advogado, tem cinco filhos, com idades compreendidas entre os 9 e 25 anos, vive em casa própria, é licenciada em farmácia e trabalha na farmácia que adquiriu aos co-arguidos.
15. Os arguidos são considerados pelas pessoas que os conhecem como pessoas bem integradas do ponto de vista familiar, social e profissional.
16. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.

2.2. Quanto à matéria de facto não provada, consignou-se (transcrição):
«Para além dos que também já resultam logicamente excluídos em face da factualidade provada, não se provaram os seguintes factos:
- Foi referido aos arguidos AA e BB por pessoas amigas com quem na altura trocaram impressões, que no valor total do negócio, a parte correspondente ao trespasse seria o que consta da escritura pública, sendo essa a única e exclusiva razão por que o declararam.
- O restante valor, dizia respeito às mercadorias, que facturaram, aos créditos que ainda tinham sido recebidos do Sistema Nacional de Saúde e a algum equipamento.
A demais matéria alegada é meramente conclusiva, de direito ou simplesmente irrelevante para a decisão da causa.»
2.2. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«1. No que concerne aos factos provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise e valoração crítica, à luz das regras da experiência comum, dos seguintes meios de prova:
- As declarações prestadas pelos arguidos que descreveram as suas condições pessoais e, na sua essência, relataram a sua participação nas negociações que antecederam a escritura de trespasse, sendo de realçar que a arguida Paula afirmou que não teve qualquer intenção de se furtar ao pagamento do imposto total devido pela transacção efectuada e que apenas declarou um valor significativamente inferior ao real porque a tal foi aconselhada por uma pessoa, que não identificou, e porque havia um acerto a fazer por causa do Multibanco e dos valores a receber do sistema nacional de saúde. Tal versão dos factos, obviamente, não nos mereceu qualquer credibilidade por variada ordem de razões. Primeiramente porque, desde logo, não é credível que uma pessoa com formação académica superior não tivesse conhecimento das implicações fiscais de tal comportamento. Em segundo lugar, além de não se mostrar lógica e consistente a construção da tese de defesa da aludida arguida, foi completamente abalada pelas declarações da co-arguida Ilda de Sousa, que afirmou, em resumo, que as negociações prévias à escritura foram feitas entre si e a arguida AA e que esta exigiu que o valor declarado na escritura fosse o que lá consta, francamente inferior ao real, sob pena de o negócio não se realizar, e que o acerto de contas foi feito algum tempo antes da escritura, o que é corroborado pelo facto de os dois cheques terem sido emitidos na data da escritura, o que indicia, sem margem para dúvidas, que nessa altura era do conhecimento de todos o valor real do negócio. O arguido BB, que segundo relato do próprio e das co-arguidas, não terá tido intervenção activa nas negociações prévias à celebração da escritura, sustentou também que não teve intenção de prejudicar o Estado, todavia, confrontado com a razão pela qual não levou à sua declaração de rendimentos referente a esse ano o valor efectivamente recebido, não soube responder, limitando-se a fazer um gesto que interpretámos como significando não haver explicação para tal.
- O depoimento da testemunha GG, que depôs de forma isenta, relatando do modo coerente em que circunstâncias foi efectuada a acção inspectiva à arguida Ilda, onde detectaram factos que indiciavam que o trespasse da farmácia teria sido feita por um valor substancialmente superior ao declarado, na sequência do que inspeccionaram a arguida Paula, tendo detectado a discrepância entre o valor declarado na escritura de trespasse e o valor efectivamente recebido por aquela, através dos dois cheques emitidos na mesma data da escritura.
- Os depoimentos das testemunhas de defesa indicadas pelos arguidos que, na sua essência, limitaram-se a descrever as condições de vida dos arguidos e a atestar o seu habitual bom comportamento familiar, social e profissional.
- Os diversos documentos juntos aos autos, mormente a cópia da escritura pública de trespasse, dos dois cheques visados, um deles emitido a favor do marido da arguida CC e endossado por este à arguida AA e cópias da documentação atinente à regularização do pagamento do imposto em falta pelos arguidos AA e BB.
- Os certificados de registo criminal referentes aos arguidos, que atestam a ausência de antecedentes criminais.
2. Quanto aos factos não provados, e para além dos que se mostram excluídos em face da matéria provada, não foi feita prova bastante pelas razões já enunciadas para justificar porque não se atendeu à versão sustentada pela arguida Paula, que aqui damos por reproduzida.»
3. Apreciando
3.1. Recurso da matéria de facto
3.1.1. Como se disse supra, a Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, caso tenha sido suscitada e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
O artigo 412.º, n.º3 e 4, do C.P.P. (na redacção vigente à data em que o recurso foi interposto), relativamente à impugnação (ampla) da matéria de facto, dispõe:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.»
A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
No caso em análise, a recorrente identificou, na motivação, os pontos de facto questionados – que se traduzem, afinal, em factos que lhe são favoráveis e que pretende sejam aditados à matéria de facto provada, com base no depoimento prestado na audiência de julgamento pelo inspector fiscal Nuno Gonçalves Almeida.
Quer isto dizer que a recorrente não invoca a o erro de julgamento quanto aos factos concretamente considerados provados, mas antes a omissão na factualidade provada de outros factos relevantes para a decisão, resultantes da discussão da causa e que lhe são favoráveis.
3.1.2. Examinado o depoimento gravado da testemunha Nuno Gonçalo Gonçalves Almeida, verifica-se que este efectuou a acção inspectiva à recorrente que permitiu detectar factos que indiciavam que o trespasse da farmácia em causa teria sido feito por um valor substancialmente superior ao escriturado, tendo por base o valor de mercado do trespasse das farmácias no distrito (resultante da multiplicação de um factor de ponderação pelo valor do volume de negócio).
Foi na sequência da acção inspectiva levada a cabo junto da recorrente que se partiu para a inspecção à arguidaAA..
No que toca ao empréstimo bancário contraído pela recorrente para comprar a farmácia em causa, a testemunha limitou-se a dizer os juros respectivos constavam da contabilidade da recorrente, mas logo adiantando que o mesmo não acontecia com o próprio empréstimo. Por outras palavras: só os juros estavam contabilizados e não a parte de amortização do capital que integrava as prestações, pelo que não se vê qualquer interesse no aditamento pretendido, como circunstância de valor atenuante.
No que concerne à não ocultação pela recorrente de quaisquer elementos ou que a mesma não auferiu qualquer benefício fiscal com a celebração do negócio, nos termos em que ocorreu, podendo vir a ser prejudicada em futuros negócios, certo é que a acusação se reporta à concreta simulação do preço de trespasse em causa, com o correspondente benefício para os arguidos AA e BB que não pagariam o imposto devido por aquela transacção ao Estado, pelo que a matéria de facto provada é já completamente elucidativa quanto à circunstância de não ser a recorrente a pessoa beneficiada, em termos fiscais, com o negócio em apreço, mas sim os outros arguidos, sendo desnecessário acrescentar outros factos sobre a matéria, para mais de sentido conclusivo ou de mero prognóstico quanto a eventuais negócios futuros.
No entanto, reconhece-se que o depoimento em apreço salientou a colaboração da recorrente com a actividade inspectiva, no sentido de facultar os elementos de escrituração comercial, extractos bancários e as explicações solicitadas, o que, podendo relevar como circunstancialismo de valor atenuante, merece ser traduzido na factualidade provada.
Assim sendo, decide-se aditar à factualidade provada o seguinte facto que, seguindo a ordem, assume o n.º 17:
No decurso da acção inspectiva, a arguida CC forneceu à inspecção tributária todas as explicações e elementos da escrituração comercial e extractos bancários sempre que lhe foram solicitados.
No mais, mantém-se a factualidade provada.
3.1.3. Não se verificando qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., considera-se assente, com o apontado aditamento, a matéria de facto provada.
3.2. Da condenação da recorrente
3.2.1. A recorrente foi condenada pela prática, em co-autoria, sob a forma consumada, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art. 103.º, n.º 1, alínea c), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo D.L. n.° 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 20,00 €, perfazendo o montante global de 1.400,00 €.
Dispõe o artigo 103.º do R.G.I.T.:
«1. Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
2. Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15000.
3. Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.»
A recorrente pretende que não pode ser condenada por um crime de fraude fiscal, com base nos factos provados, já que tal crime exige a verificação de dolo directo, não bastando a invocada existência de dolo necessário.
No caso, estamos perante um negócio de trespasse de um estabelecimento de farmácia, com intervenção da recorrente como trespassária, em que se fez constar da respectiva escritura um valor de trespasse muito inferior ao real, o que se subsume à conduta descrita na mencionada alínea c) do n.º1 do artigo 103.º do R.G.I.T.
De acordo com os factos provados, com a realização do negócio e com a omissão do valor real pelo qual a transacção foi efectuada os arguidos AA e BB (trespassantes) deixaram de pagar à Administração Fiscal, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), referente ao ano de 2002, o montante de 470.972,14 € (quatrocentos e setenta mil novecentos e setenta e dois euros e catorze cêntimos), como era seu propósito e com o que a arguida CC se conformou.
3.2.2. Tem-se discutido se o crime de fraude fiscal constitui um crime comum, em que o autor pode ser qualquer pessoa que pratique a conduta típica, ou um crime próprio ou específico, que só pode ser cometido pelo sujeito passivo da relação tributária.
No sentido de que se trata de um crime comum pronunciou-se Isabel Marques da Silva, afirmando: «O preceito a nenhuma delimitação expressa em relação à autoria procede, nem parece que as condutas ilegítimas tipificadas tenham de ser cometidas – motus proprio ou em comparticipação –, por quem tenha a qualidade de contribuinte ou de sujeito passivo de imposto, antes nos parecem poder ser cometidas por qualquer pessoa» (Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º5, 2.ª edição, p. 157 e 158).
Também no sentido de que o crime de fraude fiscal pode ser perpetrado por qualquer pessoa, ainda que pressuponha a intervenção de sujeitos passivos de relações jurídicas de imposto, se pronunciou Nuno Pombo (A fraude fiscal – a norma incriminadora, a simulação e outras reflexões, Almedina, 2007, pp. 56 e segs.).
Já para Paulo Dá Mesquita, o crime de fraude fiscal é específico, pois exige a intervenção de pessoas de um determinado círculo (sujeitos passivos de relações tributárias), mas podendo, contudo, ser imputado a qualquer pessoa (A tutela penal das deduções e reembolsos indevidos de imposto, Revista do Ministério Público, Ano 23, n.º 91, p. 58).
Atente-se que para Susana Aires de Sousa, a delimitação do círculo de autores que definiria o crime em causa, no seu entender, como específico, apenas se reporta às omissões previstas nas alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 103.º do R.G.I.T.
Diversamente, quando a conduta típica se realiza no quadro da alínea c), por acção, esta autora entende que o tipo pode ser preenchido por qualquer pessoa, o que faz que a fraude fiscal, nessa modalidade de conduta, seja um crime comum (Os crimes fiscais: Análise dogmática…, Coimbra Editora, 2006, pp.98 e 99).
A nosso ver, havendo um negócio entre duas pessoas, simulado quanto ao valor, como foi o caso, tendo em vista a finalidade de diminuir a prestação de imposto, há co-autoria na prática do crime de fraude fiscal, ainda que apenas um dos outorgantes seja o sujeito passivo da relação tributária.
Nessa situação, que é uma das vias de execução vinculada do crime (que apenas pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas do n.º1 do citado artigo 103.º), estamos perante uma infracção por natureza plurissubjectiva, o que equivale a dizer que só mediante o acordo de vontades em que se traduz o contrato celebrado é possível cometer o crime de fraude fiscal. A circunstância de um dos intervenientes no contrato não ser sujeito passivo e, por conseguinte, não retirar para si vantagem patrimonial da simulação, não sendo, patrimonialmente, beneficiado ou prejudicado, não significa que não deva ser considerado como co-autor (neste sentido, Nuno Pombo, ob. cit., pp. 180 e segs.).
Revertendo ao caso concreto, a circunstância de a recorrente não beneficiar da simulação do valor do trespasse e de serem os trespassantes a retirar benefício, pela diminuição da prestação tributária devida, não impede que deva ser considerada co-autora do crime de fraude fiscal, nos termos em que o foi pela sentença recorrida, atenta a conjunção de vontades e a contribuição objectiva conjunta para a realização típica, constituindo a actuação da recorrente um elemento indispensável para essa realização.
3.2.3. Invoca a recorrente que o crime em questão exige a verificação de dolo directo.
Afigura-se-nos que carece de razão.
O crime em causa, sendo essencialmente doloso, pode consumar-se sob todas as formas de dolo: dolo directo, necessário ou eventual (neste sentido, Isabel Marques da Silva, ob. cit., p. 160; em sentido contrário, mas em termos dubitativos, Nuno Pombo, ob. cit., pp. 205 e segs.), não se vislumbrando, igualmente, que postule a verificação de dolo específico do agente (neste sentido, Isabel Marques da Silva, ob. cit., p. 160; ver, igualmente, Susana Aires de Sousa, ob. cit., pp. 93 e segs.).
3.2.4. Quanto à medida concreta da pena, consta da sentença recorrida:
«O crime de fraude fiscal é, como vimos, punível com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
Estatui o art. 22º, nº 2, do RGIT que “1. Se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos, a pena pode ser dispensada se: a) A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves; b)A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos; c) À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção. 2. A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado”.
Ora, os arguidos AA e BB apresentaram, em 01 de Abril de 2006, uma declaração de substituição relativamente aos rendimentos obtidos no ano de 2002 e, em Junho de 2006, efectuaram o pagamento do valor apurado em sede de liquidação de IRS, no montante de … acrescido de … a título de juros compensatórios.
Verifica-se, pois, um dos requisitos previstos para a dispensa de pena. Todavia, não se mostram verificados os demais, sendo certo que estes são cumulativos com aquele. Efectivamente, mercê do elevadíssimo montante de imposto que foi omitido o grau de ilicitude é muito intenso e, por outro lado, considerando a frequência deste tipo de crimes e a conjuntura que se vivência de incentivo ao combate à evasão fiscal, as exigências de prevenção geral que se fazem sentir não são compatíveis com a dispensa de pena.
Afastada que está a possibilidade de opção, em concreto, pela dispensa de pena, há que considerar a atenuação especial da pena prevista no nº 2 do art. 22º do RGIT, mercê da qual a moldura fica reduzida a prisão até 2 anos ou multa até 240 dias (cfr. art. 73º, nº 1, als. a) e c), do Código Penal).
Nos termos do disposto no art. 70º do Código Penal “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, o tribunal dará preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Segundo o art. 40º, n.º 1, do mesmo diploma, tais finalidades são, por um lado, de prevenção especial de ressocialização, visando a reintegração do agente na sociedade e prevenindo-se a prática de futuros crimes, atendendo-se a diversas variáveis como por exemplo a conduta, a idade, a vida familiar e profissional e os antecedentes do agente, e, por outro, de prevenção geral ou de integração, que, dirigida à satisfação da consciência colectiva com o objectivo de repor a conformidade para com o direito, procura restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida. Atende-se sobretudo ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, como a frequência e o espaço em que o mesmo ocorre e o alarme que está a provocar na comunidade.
Os arguidos são todos primários, sendo esta a primeira vez que são confrontados com o sistema judicial, pelo que se nos afigura que a pena de multa é perfeitamente compatível com a satisfação das finalidades da punição.
Importa agora determinar as penas concretas, seguindo o modelo que comete à culpa a função (única) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, cabendo à prevenção geral fornecer uma moldura cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos (dentro do que é consentido pela culpa) e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, cumprindo, por último, à prevenção especial encontrar o quantum exacto da pena dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de ressocialização do delinquente.
Para tanto, atender-se-á a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra o agente (art. 71º, n.º 2, do Código Penal).
Os arguidos AA e BB actuaram com dolo directo e, por isso, intenso, revelando culpas acentuadas e arguida Ilda com dolo necessário, menos intenso, logo com culpa menos acentuada.
Quanto à ilicitude dos factos, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre o comportamento do agente, afigura-se-nos ser de grau muito elevado, atenta a grandeza da vantagem patrimonial (470.972,14 €) que os arguidos AA e BB pretendiam alcançar ilegitimamente.
Em benefício de todos os arguidos, destacam-se a sua integração familiar, social e profissional e, ainda, no que respeita à arguida Ilda, a confissão dos factos, embora sem grande relevo para a descoberta da verdade, evidenciando de qualquer forma uma postura de colaboração com o Tribunal.
Pese embora os arguidos sejam primários, o que apazigua as exigências de prevenção especial de ressocialização, há que destacar que estas são mais prementes quanto à arguida AA do que relativamente aos demais arguidos uma vez que esta não assumiu os factos, nem demonstrou arrependimento, continuando a sua actividade no ramo da farmácia, sendo, por isso, de recear o cometimento de novos ilícitos.
As exigências de prevenção geral são consideráveis, tendo em conta a frequência deste tipo de crimes, sobretudo na actual conjuntura em que o Estado faz um apelo a todos os cidadãos para que se combata a evasão fiscal e se contribua para uma maior justiça fiscal, sendo, por isso, comportamentos como os dos autos, motivo de forte censura comunitária.
Ponderando os factores acabados de referir, afigura-se-nos adequadas as penas de 150 dias de multa para a arguida AA, 120 dias de multa para o arguido BB e 70 dias de multa para a arguida CC.
Nos termos do art. 47º, nº 1, do Código Penal, a taxa diária deverá atender à situação económica e financeira do condenado.
Conforme se decidiu no acórdão da Relação de Coimbra de 13.07.95, in CJ, Ano XX, tomo 4, pág. 48, “o montante diário da pena de multa não deve ser doseado por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os Tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de injustiça, de insegurança, de inutilidade e de impunidade”.
A factualidade apurada em sede de audiência neste conspecto, acima enunciada, evidencia, em face das regras da experiência comum, que os arguidos gozam de uma situação sócio-profissional e financeira claramente acima da média. Atendendo, todavia, por um lado que se desconhece se os arguidos AA e BB, pese embora casados entre si, vivem em economia financeira comum, considerando a diversidade do estatuto remuneratório de um e de outro fixa-se a taxa diária em 25,00 € para ela e 12,00 € para ele; quanto à arguida CC, com a mesma profissão que a arguida Paula, tendo cinco filhos, fixa-se a taxa diária em 20,00 €.»
Verifica-se que a sentença recorrida trilhou uma metodologia essencialmente correcta na sempre espinhosa tarefa de determinação da medida concreta da pena dos arguidos.
Porém, quanto à recorrente, em consonância com o entendimento perfilhado pelo Ministério Público junto da 1.ª instância e nesta Relação, afigura-se-nos ajustada a opção pela dispensa de pena.
Realmente, como se salientou, a recorrente não retirou para si qualquer vantagem patrimonial da simulação praticada.
A prestação tributária e demais acréscimos foram pagos, tendo sido integralmente reposta a verdade fiscal.
A recorrente colaborou na acção inspectiva, não ocultando quaisquer elementos e antes fornecendo todas as explicações e elementos da escrituração comercial e extractos bancários sempre que lhe foram solicitados.
A sua culpa revela-se menos grave do que a dos co-arguidos.
Referindo-se, em termos gerais, à dispensa de pena, ensina Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 319 e segs.):
«Do ponto de vista da prevenção especial, o conjunto de pressupostos mencionados dá imediatamente a perceber que não tenha sentido falar-se de exigências de “neutralização” ou “inocuização” do delinquente, ou de “segurança” face a ele: tais exigências são não só obviadas primacialmente através de medidas de segurança, antes que de penas, como pressupõem um mínimo de gravidade objectiva do facto para que este assuma função indiciadora de uma perigosidade criminal (….) O que aqui pode estar em questão é pois, unicamente (como de resto o confirma o texto do art. 75.º - 1), a exigência de prevenção especial de socialização: esta pode, na verdade, opor-se a que se dispense a pena, apesar da verificação dos restantes pressupostos, v. g., a um condutor de veículo inconsiderado ou arriscado; mas já se não opor à dispensa de pena de um agente “não carente de socialização” (supra § 333), nomeadamente de um agente ocasional ou situacional.
Do ponto de vista da prevenção geral, a dispensa da pena será admissível sempre que, verificados os restantes pressupostos, o tribunal considere que, com a circunstância de o agente ser declarado culpado – o que o instituto da dispensa de pena necessariamente supõe –, ligada à natureza condenatória da sentença (…..) e à sua comunicação ao registo criminal (…..) se alcança o limiar mínimo de prevenção geral de integração ou de defesa do ordenamento jurídico, não sendo por isso, do ponto de vista da prevenção geral, necessária a imposição de uma pena.»
No caso dos crimes tributários, os pressupostos da dispensa da pena são menos exigentes que na lei geral, não se antevendo, relativamente à recorrente, particulares exigências de prevenção especial de socialização. Por outro lado, afigura-se-nos que a prevenção geral ficará suficientemente acautelada com a circunstância de a recorrente ser declarada culpada, alcançando-se, por esta via, o limiar mínimo de prevenção geral de integração ou de defesa do ordenamento jurídico.
Em conclusão, verificam-se, no caso concreto, todos os pressupostos de que depende a aplicação à recorrente do instituto da dispensa da pena, a que se reporta o art. 22.º, n.º 1, do R.G.I.T.
III – Dispositivo
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em, concedendo provimento parcial ao recurso:
- Proceder ao aditamento à matéria de facto nos termos supra indicados;
- Revogar a condenação da recorrente em pena de multa;
- Condenar a recorrente Ilda dos Anjos Pereira Marques Caetano de Sousa como co-autora de um crime de fraude fiscal, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 103.º, n.º1 alínea c), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/2001, dispensando-a, porém, de pena nos termos do artigo 22.º, n.º1, do mesmo diploma.