Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/07 - RECLAMAÇÃO
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: RECURSO - MEDIDAS DE COACÇÃO
Data do Acordão: 08/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS13º,32º,165º, 1 C) DA CRP,191º219º,299º CPP
Sumário: 1. Não é admissível recurso da decisão que não aplica ao arguido medida de coacção promovida pelo Mº Pº.
2. A norma que se extrai do art. 219°-1 e 3, do CPP, não padece de inconstitucionalidade, não violando o princípio da legalidade das medidas de coacção (art.º 191º, nº 1 do CPP) ,nem violando o princípio da igualdade (art.º 13º da CRP) e a função constitucional do Mº Pº de defensor da legalidade democrática (art.º 219, nº 1 da CRP).
Decisão Texto Integral: Encontrando-se o arguido N…sujeito às obrigações decorrentes do TIR o Mº Pº considerando que as mesmas foram violadas uma vez que mudou de residência sem comunicar aos autos, ou ao defensor, promoveu que lhe fosse aplicada a medida de apresentação periódica diária junto de OPC nos termos do disposto nos art.ºs 191º a 193, 198º, 204º a) e c) do CPP.

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A Mª Juiz indeferiu o promovido por despacho que consta de fls. 127 e 128 da presente reclamação.

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Inconformado recorreu o Mº Pº .

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Por despacho de fls. 146 a Mª Juiz NÃO RECEBEU O RECURSO nos seguintes termos:

Estipula o art.º 219º, nº 1 do CPP que só o arguido e o Mº Pº em benefício do arguido podem interpor recurso da decisão que aplicar, manter ou substituir medidas previstas no presente título.

Assim, quanto ao Mº Pº , só tem legitimidade para recorrer quando o fizer em benefício do arguido.

No entanto, como se tal não bastasse estipula o nº 3 da mesma norma legal que a decisão que indeferiu a aplicação, revogar ou declara extintas as modalidades previstas no presente título é irrecorrível.

O nº 3 do art.º 219º do CPP consagra assim expressamente a irrecorribilidade da decisão que indeferiu a aplicação, revogar ou declara extintas as medidas de coacção previstas neste título do Código.

No presente caso, a decisão da qual se pretende recorrer não aplicou ao arguido a medida de coacção promovida pelo Mº Pº.

Pelo que se disse supra, facilmente se concluir que o Mº Pº não tem legitimidade para interpor o presente recurso.

Nestes termos e sem necessidade de tecer mais considerações, decide-se não admitir o recurso interposto pelo Mº Pº, pelo que fica dito supra.”

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Inconformado, reclamou o Mº Pº, concluindo do seguinte modo:
1. O objecto da presente reclamação o despacho proferido pela Mª Juiz de Instrução Criminal no qual , em resumo, decidiu não admitir o recurso interposto pelo Mº Pº de decisão em que não aplicou medida de coacção ,por a sua irrecorribilidade estar consagrada no art.º 219º, nº 3 do CPP.
2. Dispõe o art.º 219º, nº 3 do CPP(na redacção introduzida pela L. 48/07 de 29/8) que “ A decisão que indeferir a aplicação, revogar ou declarar extintas as medidas previstas no presente título é irrecorrível “, enquanto que o nº 1 do art.º 219º determina que “ Só o arguido e o Mº Pº em benefício do arguido podem interpor recurso da decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas previstas no presente título.
3. Estas normas estão feridas de inconstitucionalidade materialidade pois violam o princípio da legalidade das medidas de coacção (art.º 191º, 1 do CPPO) que é uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do processo penal (art.º 32º conjugado com o art.º 165º, nº 1 al. c) da CRP), como violam o princípio da igualdade (art.º 13º da CRP) e a função constitucional do Mº Pº de defensor da legalidade democrática (art.º 219, nº 1 da CRP).
4. Vedar a possibilidade de recurso por parte do Mº Pº contende com o seu estatuto (art.º 219º da Constituição) com o Estado de Direito (art.º 2º da Constituição) e com o acesso ao direito por parte do Mº Pº enquanto representante do Estado/Comunidade (art.º 20º da Constituição).
5. É inconstitucional , por violar os artigos 13º, 20º, nº 4, 165º, nº 1 al. c) e 219º nº 1 da CRP, a interpretação dos artigos 194º, nº 1, 219º, nº 1 e 3, 399º e 401º, nº 1 al. a) e b) do CPP, nos termos da qual se não admite a interposição de recurso pelo Mº Pº da decisão que não aplique medidas de coacção.
6. Deve, pois, o julgador desaplicar a norma dos nºs 1 e 3 do art.º 219º do CPP por inconstitucionalidade material, declarando-as como tal, e admitir o presente recurso, aplicando o regime –regra.

O arguido respondeu pugnando pela inadmissibilidade do recurso .

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Cumpre apreciar :

Pese embora o direito ao recurso, considerado em abstracto, faça parte do rol dos direitos constitucionais de defesa no âmbito do direito criminal (art.º 32.º, n.º 1, da CRP),o legislador estabeleceu a irrecorribilidade de determinadas decisões, sendo certo que apesar disso consideramos que não foram descuidados os direitos do arguido e muito menos foi violado o princípio da legalidade e da igualdade bem como a função constitucional do Mº Pº de defensor da legalidade democrática .

Senão vejamos:

O princípio da legalidade implica não só um dever para os agentes da sua aplicação, como igualmente, e é o que está ora em causa, para o legislador no sentido de se abster de criar formas processuais ad hoc, extrínsecas à estrutura do Código .( - Maia Gonçalves, CPPenal,em anotação ao art.º 2º, pag. 62)

Terá o legislador criado normas ou formas processuais desenquadradas da estrutura processual penal vigente ou em manifesto desrespeito pelos direitos dos intervenientes processuais ?

Parece-nos que não.

Na verdade a regra de irrecorribilidade das decisões judiciais tem, face ao art.º 399º do C.P.P., natureza claramente excepcional, não sendo assim passível de aplicação analógica.

Por outro lado «a Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies. E certo que a Constituição garante a todos “o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” (art.º 20°, n.º 1) e, em matéria penal, afirma que “o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa” (art.º 32º, n.º 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal. (...) A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais. Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa, a verdade é que, como se escreveu no Acórdão 31/87 do mesmo Tribunal, “se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo (...).”»(Ac. do TC nº 265/94)

Igualmente no Acórdão n.º 610/96, expõe o Tribunal Constitucional, que:

“Sendo certo que o n.º 1 do artigo 32º da Constituição impõe que se consagre o direito de recorrer de decisões condenatórias e de actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido, é admissível que o legislador determine a irrecorribilidade de outros actos judiciais desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa (cf. Acórdãos n.ºs 8/87, 31/87 e 177/88 ...) e a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal.”

Semelhante entendimento, levou a que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 30/01, entendesse que:

«Em suma, o “direito de recurso”, como imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a entender-se no quadro das “garantias de defesa” – só e quando estas garantiam o exijam – o que, pelas razões apontadas nos anteriores acórdãos deste Tribunal, não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia. (...)

No caso em apreço Ministério Público entende que o recurso deve ser admitido por a norma que se extrai do art. 219°-1 e 3, do CPP, padecer de inconstitucionalidade, suportando a sua tese em virtude deste normativo violar o princípio da legalidade das medidas de coacção (art.º 191º, nº 1 do CPP) que é uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do processo penal (art.º 32º, conjugado com o art.º 165º, nº 1 al. c) da CRP), como violam o princípio da igualdade (art.º 13º da CRP) e a função constitucional do Mº Pº de defensor da legalidade democrática (art.º 219, nº 1 da CRP).

Prescreve o art. 219°-1 e 3, do CPP (na redacção dada pela Lei 48/2007, de 29/08) o seguinte:

«1- Só o arguido e o Ministério Público em benefício do arguido podem interpor recurso da decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas previstas no presente título. (...)

3- A decisão que indeferir a aplicação, revogar ou declarar extintas as medidas previstas no presente título é irrecorrível».

Com a lei nova, art. 219°-1, do CPP,o legislador restringiu a intervenção do Ministério Público em sede de interposição de recurso: só o pode fazer em benefício do arguido (para salvaguarda dos interesses deste).

Por ter sido pedido um agravamento das medidas de coacção o arguido, por certo, não terá interesse em recorrer.

Com relatamos supra foi o Ministério Público que requereu a aplicação da medida, e quando o fez por certo que não agiu em benefício do arguido e, assim sendo, não pode recorrer da decisão.

Ora o Código de Processo Penal contém um regime geral de recursos (arti­gos 399.° e seguintes) e um regime especial para o recurso das decisões que apliquem ou mantenham medidas de coacção (artigo 219.º).

No regime geral de recursos, cabe recurso de todas as decisões cuja ir­recorribilidade não estiver previsto na lei (artigo 399.° do CPP).

No regime especial de recurso das medidas de coacção, apenas cabe re­curso das decisões que apliquem ou mantenham medidas de coacção (artigo 219.° do CPP).

Deste modo consideramos que os invocados princípios da legalidade e igualdade bem como a alegada função constitucional do Mº Pº de defensor da legalidade democrática, não podem sobrepor-se à vontade expressa e inequívoca do legislador.

Conclui-se, pois, pela inadmissibilidade do recurso.

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Nestes termos se decide:
- Indeferir a presente reclamação.

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Sem tributação.

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Coimbra, 2009-08-17 ______________________________________

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(João Trindade)